Smoking and Culture: The Archaeology of Tobacco Pipes in Eastern North America | Sean Rafferty e Rob Mann
A obra Smoking and culture ou, em português, “Fumo e Cultura”, em livre tradução, faz uma arqueologia dos cachimbos e da cultura do fumo, enfocando o leste dos Estados Unidos. Contendo onze capítulos, o livro pode ser dividido em três partes a partir de uma perspectiva temporal: período pré-colonial, a época do contato e o período histórico, ou pós-contato.
O livro é resultado dos trabalhos apresentados na reunião anual da Society for American Archaeology, em 2001, na mesa intitulada “The Sot Weed Factor”, em que pesquisas recentes sobre cachimbos foram apresentadas. Ao organizarem esse simpósio, Sean Rafferty e Rob Mann reagiam a uma tendência nas pesquisas sobre cachimbos, mas também, de uma maneira geral, a uma tendência nos estudos de cultura material em arqueologia: o foco nas descrições dos objetos arqueológicos e as preocupações de pesquisa que se restringem a cronologias e tipologias. Apesar dessa tendência produzir grandes contribuições no campo do conhecimento tecnológico do material em si, pouco informam sobre as pessoas e as sociedades que o criaram e usaram. Outra questão é que mesmo que os pesquisadores e pesquisadoras, tanto de arqueologia pré-colonial como de arqueologia histórica, considerem os cachimbos como marcadores culturais e cronológicos, há poucos estudos comparativos sobre o papel deles nas sociedades nas quais estão inseridos e sobre como podemos aprender a respeito de determinada sociedade através do uso de cachimbos, ainda que essa perspectiva venha mudando nos últimos dez anos. Portanto, nesse livro, os autores buscam superar essas perspectivas altamente descritivas e tipológicas.
Mas, como podemos ir além dessa perspectiva descritiva e tipológica e chegar a compreender a cultura e as pessoas que produziram e usaram os cachimbos que encontramos nos sítios arqueológicos que escavamos? A resposta a essa pergunta é esboçada logo na introdução da obra. Primeiramente, apresenta-se o fato óbvio de que cachimbos são dispositivos que carregam drogas, que podem atuar de maneiras diferentes no corpo humano, incluindo alterações no estado de consciência. Ou seja, não são objetos utilitários. Por esse mesmo motivo, os cachimbos são elementos interessantes para estudar questões culturais e simbólicas. Eles frequentemente possuem inscrições e desenhos que facilitam os estudos de aspectos simbólicos do passado. Ainda, por um longo tempo, a arqueologia histórica ignorou o fato de que os cachimbos foram associados a classes específicas, como a trabalhadora. Também, o fato de que o próprio ato de fumar seja uma ação feita em grupo. Essas duas características juntas figuram um ato coletivo associado a certos grupos e isso pode ser uma pista interessante de como os cachimbos poderiam ser indicadores de fronteiras étnicas, culturais, econômicas, de gênero etc.
Mas vamos aos capítulos. Os capítulos 1 e 2, o primeiro de Sean Rafferty e o segundo de Jeffrey Irwin, são os representantes do período pré-colonial. Rafferty (capítulo 1) explora uma das amostras mais antigas de cachimbos da América do Norte e nota sua importância na datação de um período específico da pré-história norte-americana, o período Woodland Inicial, em que ocorreu a ocupação do Vale do Ohio e do Nordeste dos Estados Unidos. No entanto, o autor não se limita às questões cronométricas e tipológicas desses artefatos, mas vai além, mostrando como eles cumpriam um papel ativo nas práticas culturais, em especial nas mortuárias, em uma grande extensão do continente, apresentando um modelo de como esses artefatos carregariam mensagens ideológicas nos rituais de enterramento. Já Irwin (capítulo 2) apresenta os cachimbos do período final do Woodland no litoral da Carolina do Norte. Primeiramente, ele destrincha uma valiosa tipologia desses cachimbos, baseada tanto na morfologia quanto na iconografia que frequentemente eles apresentam. Porém, seu foco está no uso ritualizado desses artefatos, especialmente em sua característica de facilitar interações sociais como parte de uma rede de comércio regional que estava florescendo no fim da pré-história daquela região. Seu argumento é o de que os rituais de fumo serviam para mediar diversas interações sociais que ocorriam.
Os capítulos de 3 a 7 abrangem o período nos quais os nativos americanos e os colonizadores europeus estabeleceram seus primeiros contatos. Esses capítulos dialogam tanto entre si quanto com os artigos de Rafferty e Irwin. Nessas pesquisas, os contextos de contato ajudam a evidenciar o importante papel que os cachimbos desempenharam como mediadores das interações sociais com as populações nativas: indicadores de status, ferramentas rituais e presentes são alguns dos exemplos das formas como os cachimbos poderiam mediar essas relações.
O artigo de Michael Nassaney (capítulo 4) propõe uma interessantíssima discussão envolvendo gênero e poder entre os nativos americanos durante o período do contato. Analisando o cemitério de Narragansett em Rhode Island, Nassaney discute o uso dos cachimbos relacionados a práticas cotidianas e rituais entre os nativos e como pode ser percebida uma mudança ocorrida nas relações de gênero. Durante o século XVII, os Narragansett foram acometidos de várias forças destrutivas como doenças e perda de terras para os colonos ingleses. Isso fez com que as práticas rituais dominadas por “especialistas espirituais”, os curandeiros, passassem a ser questionadas diante da impotência no enfrentamento das diversas ameaças às quais eles estavam submetidos. Mais uma vez então, os cachimbos foram peças importantes na compreensão das práticas coletivas devido ao seu papel integrativo nos rituais nativos americanos. Um detalhe é que, ao contrário do que se vê nos estudos pré-coloniais, passou-se a um crescente uso do fumo de cachimbos por parte de mulheres como uma forma de fortalecer sua posição na sociedade nativa, frente ao contato. O xamanismo tornou-se mais democrático à medida que mulheres e, inclusive, crianças passaram a fazer um uso ritual de cachimbos, criando outras formas de comunicação com o mundo espiritual, na busca pela melhoria das suas vidas, terrena ou futura.
Neal Trubowitz (capítulo 5), analisando uma coleção de cachimbos do Peabody Museum of Archaeology and Ethnology, explora os aspectos étnicos dos cachimbos referentes aos grupos europeus, africanos e nativos americanos. Em relação a este último grupo, os cachimbos foram os objetos mais resistentes a mudanças, quando se leva em consideração os contatos culturais aos quais os nativos estiveram sujeitos. Os cachimbos, então, podem ser vistos como marcadores culturais que definiam fronteiras étnicas.
Rob Mann (capítulo 6) enfoca o tema dos cachimbos como elementos facilitadores de relações sociais. Em seu estudo de caso, ele analisa o comércio de peles entre os europeus e os nativos. Enquanto, para os primeiros, o comércio de peles está separado das relações sociais, para os nativos, as relações são parte fundamental das transações. Para que elas pudessem ser bem-sucedidas, os rituais cumpriam um papel básico, sendo que os cachimbos de pedra eram centrais nesses rituais. Por meio deles, estranhos eram transformados em parentes, encobrindo-se as diferenças entre as partes envolvidas no comércio de peles, mesmo que temporariamente.
O último artigo referente ao contexto do contato é o de Richard Veit e Charles Bello (capítulo 7). Nele os autores analisam uma coleção de cachimbos dos séculos XVIII e XIX, em especial aqueles feitos de metal. Devido às técnicas envolvidas na confecção desses artefatos, eles têm sido associados a uma manufatura europeia. Porém, os autores mostram evidências significativas de que esses cachimbos são, em sua maioria, de manufatura nativa. Sua forma e distribuição, bem como as representações utilizadas, foram fundamentais para rechaçar a ideia de uma manufatura externa.
A última sessão do livro engloba os estudos relacionados ao período histórico, em contextos euramericanos. São os quatro últimos capítulos do livro (8 a 11). Diane Dallal (capítulo 8) apresenta cachimbos de barro dos séculos XVII e XVIII, encontrados em alguns sítios da cidade de Nova Iorque; e traz um novo elemento para estudar os cachimbos holandeses. Existia e, possivelmente, ainda existe, uma ideia corrente nos estudos arqueológicos, ou uma premissa da qual os autores partem, de que a produção de cachimbos é uma atividade masculina. Porém, a partir de evidências documentais, Dallal mostra a presença de mulheres na fabricação de cachimbos na Holanda. Mas elas não só estavam presentes como manipulavam a confecção desses objetos como uma forma de empoderamento em um meio dominado por uma cultura masculina. A pesquisa de Paul Reckner (capítulo 9), discute como alguns tipos específicos de cachimbos participaram da construção de identidades irlandesas na classe trabalhadora estadunidense em Paterson, na Nova Jérsei oitocentista. Já o trabalho de Anna Agbe-Davies (capítulo 10) ressalta alguns elementos técnicos da elaboração de cachimbos de produção local e regional da região da costa do tabaco nos EUA para aventar possibilidades interpretativas e inovadoras sobre produção e consumo desses itens fumageiros. Por fim, Patricia Capone e Elinor Downs (capítulo 11) apresentam e discutem os resultados de análises petrográficas de cachimbos feitos a partir de argilas vermelhas no século XVII, encontrados na cidade de Jamestown, na Virgínia.
Pelo que foi exposto até aqui, o livro é uma ferramenta útil para os que pesquisam cachimbos, tanto de contextos pré-coloniais, como coloniais e de contato. Mesmo que inserido em um contexto norte-americano, o livro traz importantes contribuições gerais no campo das reflexões antropológicas acerca da cultura material, indo além das meras tipologias e classificações cronológicas. Ainda que este seja um ponto importante da discussão e muitas vezes o meio pelo qual as interpretações serão feitas, as análises morfológicas e tipológicas são aqui utilizadas de maneira rica gerando discussões complexas. O livro é uma contribuição importante para o tema.
Resenhista
Anaeli Queren Xavier Almeida – Museu de História Natural e Jardim Botânico/UFMG. E-mail: anaeliq@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
RAFFERTY, Sean; MANN, Rob. (Orgs.). Smoking and Culture: The Archaeology of Tobacco Pipes in Eastern North America. Knoxville: The University of Tennessee Press, 2016. Resenha de: ALMEIDA, Anaeli Queren Xavier. Vestígios – Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, v. 16, n.2, p. 176-178, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]