Skyscrapers hide the heavens: a history of Indian-White relations in Canada | James Rodger Miller

É relativamente fácil encontrar livros que apresentam de forma compreensiva a história das relações entre povos indígenas brasileiros e colonizadores europeus. Dentre esses, podem-se destacar os fundamentais livros de Melatti (2014) e Almeida (2010). Com a obrigatoriedade legal do ensino da história africana e indígena nas escolas, houve um aumento de publicações sobre o tema voltadas para os ciclos iniciais de escolarização. No entanto, o mesmo não pode ser dito sobre livros que abordem a história de povos indígenas em outros países, tais como a Argentina e o Chile, ou mesmo os Estados Unidos da América.

A presente resenha almeja contribuir para diminuir esta escassez de referências ao apresentar para antropólogos, cientistas sociais, historiadores e cientistas políticos brasileiros a principal obra historiográfica sobre as relações entre povos indígenas e colonizadores europeus no Canadá. Trata-se de Skyscrapers hide the heavens: a history of IndianWhite relations in Canada (2017)3, de autoria do professor de história da Universidade de Saskatchewan, James Rodger Miller. O texto, publicado originalmente em 1989, encontra-se em sua terceira edição e foi um dos trabalhos reeditados pela University of Toronto Press por ocasião da celebração dos 150 anos do ato que estabeleceu o Canadá como estado-nação contemporâneo.

Além da introdução, a obra é dividida em três grandes partes: “cooperação”, “coerção” e “confronto”, que somam 15 capítulos ao todo. Nessa resenha, seguirei a ordem estabelecida no livro em tela, selecionando não apenas os eventos relevantes, mas sobretudo buscando delimitar as características fundamentais de tais processos políticos. Assim, nos distanciamos da história dos grandes homens e eventos e passamos a nos interessar pelo contexto de relações de poderes pelas quais a história se desenrolou nos últimos séculos.

Miller (2017) começa a sua extensiva obra apontando o que, para ele, se constituiu como o eixo central da relação entre povos indígenas e, inicialmente, comerciantes bascos, seguidos de franceses e ingleses durante quase três séculos: a cooperação econômica e militar que o autor considera como mutuamente benéfica para ambas as partes. Da primeira expedição de Jacques Cartier à “terra nova” em 1534 até o fim da guerra dos britânicos com os norte-americanos em 1812, povos indígenas canadenses e colonizadores trabalharam em regime de parceria e respeito mútuo visando as trocas de mercadorias e alianças militares, por vezes contra grupos rivais, outras escolhendo um lado diante da refrega imperialista entre Grã-Bretanha e França no decorrer do século XVIII. Segundo o autor, os europeus se estabeleceram na América do Norte em busca de quatro objetivos: fish (peixes), fur (peles), exploration (exploração do território) e faith (evangelização); ao passo que os nativos “toleraram o primeiro, abraçaram avidamente o segundo, cooperaram no terceiro e eram abençoadamente ignorantes do último [motivo]” (2017, p. 31, tradução nossa).

O processo-chave para entender esse longo período histórico é o chamado fur trade, um amplo sistema econômico centrado no comércio de peles de castor para o mercado europeu em troca de bens manufaturados e outros artigos de consumo que deitou raízes profundas no território canadense. Isso porque, para ter acesso às peles dos animais, os comerciantes europeus dependiam do conhecimento indígena de seu próprio para se aprofundar em regiões pouco exploradas pelos brancos e para chegar até os criadouros. Assim, durante os primeiros séculos da colonização, a atividade econômica que pautava as relações entre povos indígenas e colonizadores europeus pode ser considerada de baixo potencial conflitivo, uma vez que não favorecia o estabelecimento dos colonos no território de forma ostensiva, como no caso das atividades agrícolas.

Por outro lado, “durante todo o resto da luta entre França e Inglaterra pelo controle da América do Norte, as alianças com povos indígenas foram vitais em todas as áreas do conflito” (MILLER, 2017, p. 79, tradução nossa). É importante relembrar que não houve uma reação homogênea dos povos indígenas aos conflitos militares entre as potências europeias. Dessa forma, por exemplo, enquanto os Mi’kmaq eram solidamente pró-franceses, os Iroquois tiravam vantagem de sua posição geográfica para obter benefícios ao encorajar a rivalidade entre os adversários. Após a rendição final dos franceses aos britânicos e a Proclamação Real dessa vitória em 1763, os povos indígenas continuaram importantes aliados militares da potência vencedora contra o apetite dos recém-independentes vizinhos do sul, culminando com o fim das hostilidades europeias no continente em 1812. Em todos os casos, os grupos indígenas analisaram estrategicamente os prós e os contras das alianças militares com um dos lados do conflito e buscaram avançar os seus próprios interesses e objetivos, não sendo meros apêndices dos exércitos das potências colonizadoras.

Na segunda parte da obra, Miller argumenta que, entre 1790 e 1830, as relações entre nações indígenas e colonizadores europeus mudaram profundamente, passando da cooperação à coerção. De importantes aliados militares e parceiros econômicos, os povos indígenas foram progressivamente relegados à irrelevância. O grande influxo de imigrantes leais à coroa britânica fugindo dos Estados Unidos da América e de outro contingente populacional vindo do velho continente em busca de terras agricultáveis criou grande pressão sobre as terras tradicionais dos povos indígenas, que passaram a ser vistos como obstáculos no caminho do desenvolvimento econômico. Um agressivo plano de compra e cessão de terras por meio de tratados foi posto em prática pelas autoridades coloniais durante a primeira metade do século XIX, conformando a base territorial do Canadá como a conhecemos atualmente. Assim, desprovidos das áreas tradicionais de caça e pesca e circunscritos a porções minúsculas de seus antigos territórios, assolados pela pobreza e pelas doenças, os povos indígenas passaram por um processo de genocídio. Para os administradores canadenses da época, o desaparecimento completo dos povos indígenas era apenas questão de tempo.

A despeito da situação de total abandono por parte do poder público e da contínua deterioração de suas condições de vida, os povos indígenas canadenses resistiam, o que demandou renovados esforços do governo canadense para tentar obliterá-los. Parte importante da estratégia de aniquilação dos povos indígenas por meio da assimilação ao estilo de vida euro-canadense foi o estabelecimento, a partir de 1850, das primeiras Residential Schools (também conhecidas como Pensionatos). Essas se configuravam como escolas de tempo integral geridas por ordens religiosas que se responsabilizariam pelo ensino básico para crianças indígenas, enviadas compulsoriamente para frequentá-las. Nelas, as crianças tinham os seus cabelos cortados, não podiam falar suas línguas nativas, usavam uniformes e eram obrigadas a trabalhar e a frequentar cultos cristãos. Frequentemente alojadas em condições insalubres e submetidas a regimes de trabalho extenuantes, muitas não resistiam e morriam, no que ficou conhecida como a face mais perversa da policy of the bible and the plough, a política da bíblia e do arado, levada a cabo por estas instituições.

Em 1876, entrou em vigor o Indian Act, uma legislação ampla que codifica todos os domínios da vida dos povos indígenas canadenses e é válida até hoje, em que pesem algumas emendas importantes realizadas ao longo das décadas subsequentes e certos direitos indígenas conquistados na carta constitucional de 1982. Seu objetivo primordial era o de substituir as formas tradicionais de organização política dos povos indígenas pelo sistema de representação ocidental e destruir a posse coletiva da terra em prol da titulação privada para indivíduos detentores de lotes definidos. Para o comissário de assuntos indígenas responsável por sua implantação, “a política de destruição do sistema tribal ou comunista ataca em todas as direções e todo esforço é feito para implantar, em seu lugar, um espírito de responsabilidade individual” (MILLER, 2017, p. 256, tradução nossa). Para os formuladores do Indian Act, “índios não estavam na mesma posição que o homem branco. Como regra eles não tinham educação, e eram como crianças em larga medida” (MILLER, 2017, p. 257, tradução minha). Coerção, paternalismo e racismo estavam inextricavelmente ligados e pautaram a atuação do estado canadense durante todo o período.

Na terceira e última parte do livro, Miller demonstra como o cerco estatal aos povos indígenas continuou e se aprofundou durante as primeiras décadas do século XX. Ao mesmo tempo, iniciava-se um período de forte mobilização e articulação política indígena com a significativa atuação de lideranças cada vez mais hábeis no trato com o sistema político canadense. Além disso, após a valorosa contribuição de membros das First Nations no esforço bélico do país durante a Segunda Guerra Mundial, a sociedade canadense não pode se furtar a um amplo debate público sobre as péssimas condições de vida dos povos nativos. O contexto da luta dos movimentos de grupos historicamente subalternizados que reivindicavam direitos civis nos Estados Unidos adicionou lenha na fogueira de tensões que culminou com a forte mobilização dos povos indígenas em reação à tentativa do governo liberal de Pierre Trudeau de simplesmente acabar com o status étnico diferenciado desses grupos por meio da revogação do Indian Act e do desmonte do ministério responsável pela política indigenista do país.

A década de 1970 marca o retorno dos povos indígenas ao palco político canadense em uma dinâmica oscilando entre o consenso e o confronto. Em 1972, o governo lança uma nova política de reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas, visando a realização de tratados compreendendo, dentre outras provisões, a devolução da gestão autônoma de um conjunto de políticas públicas para os próprios povos indígenas e o pagamento de compensações financeiras. Em 1982, após intenso lobby parlamentar, protestos públicos e uma ousada ofensiva de lideranças indígenas, os povos indígenas canadenses conseguiram afirmar constitucionalmente os seus direitos, um marco da luta destes grupos por melhores condições de vida e com pleno gozo do direito à diferença.

Por fim, o autor conclui a obra aqui resenhada apontando que os muitos avanços políticos obtidos pelos povos indígenas canadenses nas últimas cinco décadas não prescindiram de momentos de tensão e de confronto aberto4. Ganha destaque, neste sentido, a chamada Crise de Oka em 1992, quando forças policiais da província do Québec enfrentaram membros do povo Mohawk no âmbito de uma disputa por um território sagrado para este grupo, resultando na morte de um policial. Pouco mais de vinte anos depois, o movimento Idle no More manteve viva a chama da revolta do povos indígenas canadenses, ainda o segmento populacional que apresenta os piores indicadores sociais de toda a próspera sociedade daquele país. Em suma, pode-se afirmar que a história da relação entre povos indígenas e a settler society (ou sociedade colonial) está em constante tensionamento, não sendo possível nem recomendável tomar as conquistas de direitos obtidas pelos primeiros como dados inalteráveis da história.

Finalizamos a presente resenha assinalando a importância da leitura dessa obra de referência sobre a relação entre povos indígenas e o estado canadense. Assim, esperamos fornecer subsídios históricos que possam, no futuro, ser utilizados por pesquisadores interessados em aprofundar os seus conhecimentos sobre os povos indígenas no Canadá, em particular, e de outros países, em geral.

Notas

2 Gostaria de agradecer aos dois pareceristas anônimos, que se engajaram na leitura da resenha e cujos comentários certamente foram de grande valia.

3 A quarta edição da obra foi lançada em 2018 pela University of Toronto Press.

4 Para uma visão de conjunto sobre os principais atos de protesto indígena no Canadá, ver Belanger e Lackenbauer (2014).

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

BELANGER, Yale, D; LACKENBAUER, P.Whitney (ed.). Blockades or breakthroughs? Aboriginal peoples confront the Canadian state. McGill-Queen’s University Press, 2014.


Resenhista

Leonardo Barros Soares1 – Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA, Brasil orcid.org/0000-0002-1049-1881 E-mail:  leobarros@ufpa.br


Referências desta Resenha

MILLER, James Rodger. Skyscrapers hide the heavens: a history of Indian-White relations in Canada. University of Toronto Press, 2017.2. Resenha de: SOARES, Leonardo Barros. O que sobrou do céu?: uma história das relações entre povos indígenas e colonizadores no Canadá. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 46, n. 1, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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