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Siegfried Kracauer. Penseur de l´histoire – DESPOIX et. al (H-Unesp)

DESPOIX, Philippe; SCHÖTTLER, Peter (Orgs). Siegfried Kracauer. Penseur de l´histoire. Paris: Maison des Sciences de L´Homme, 2008, 254p., ISBN 2763783430. Resenha de: MACHADO, Carlos Eduardo. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

O livro pretende articular um diálogo entre historiadores, filósofos, teóricos da literatura e especialistas de cinema sobre teoria e escrita da história, tendo como ponto de partida o último trabalho de Kracauer – History. The Last Things Before the Last. Kracauer foi um intelectual incomum, sociólogo, romancista, crítico de cinema e das medias, etnólogo das metrópoles, deixando uma vasta obra multiforme – uma figura de proa da intelectualidade de esquerda da chamada República de Weimar. Era amigo de Theodor Adorno, Walter Benjamin, Ernst Bloch, entre outros, e como todos eles foi também obrigado a se exilar com a ascensão de Hitler ao poder no início de 1933 – aquele que descreve o “asilo dos sem-teto”, os cine-teatros em “O culto da distração” e os bulevares como “pátria dos sem pátria”, no livro sobre Offenbach, torna-se ele próprio um exterritorial, um “apátrida transcendental” (Lukács) ou conforme a figura alegórica que, antes de desaparecer, peregrina pelas épocas: Ahasver, o judeu errante, que Kracauer evoca no cap. 6 de History. O historiador que, partindo do presente, se imiscui no passado e estranha (verfremmt)) ambos.

Uma das máximas de History: “a história das idéias é a história de mal-entendidos” (History. The Last Things Before The Last. New York: Oxford University Press, 1995, p.7 – 1. ed. 1969). Disso Kracauer sempre foi muito consciente, pois, sobretudo, sua última produção realizada no exílio americano, de 1941 a 1966, gerou e tem gerado uma sucessão de equívocos. Por exemplo, De Caligari a Hitler (1947), obra em que analisa a produção cinematográfica alemã entre guerras – praticamente durante décadas seu único livro conhecido fora do mundo alemão e mesmo lá – não passa de uma mera interpretação supostamente “teleológica” da vida cultural da República de Weimar, que põe à mostra um estilo “engessado” de escrita ao escrever em inglês ou que sua Theory of Film (1961) é inatual, pois não considera o filme a cores ou que também não consegue ver além do neo-realismo italiano, para não falar que o seu livro póstumo representaria uma ruptura com sua produção intelectual anterior, sobretudo com a obra de Marx. Basta ler a Introdução à History para dissipar, de súbito, todos esses mal-entendidos. Pois, nela Kracauer pontua a continuidade entre sua produção à época em que era editor cultural do Frankfurter Zeitung (1921-1933), citando seu ensaio de 1927, “A fotografia”, e suas reflexões incompletas desenvolvidas em História. Antes das últimas coisas.

O livro organizado por Philippe Despoix e Peter Schöttler é uma iniciativa que tenta colocar por terra os jargões que se criaram em torno da obra de Kracauer e de inseri-lo no debate historiográfico-cultural de língua francesa, dando continuidade à discussão iniciada em Culture de masse et modernité. Siegfried Kracauer, sociologue, critique, écrivain (2001) – organizado pelo mesmo Despoix e Nia Perivolaropoulou. São onze ensaios no total que pretendo chamar a atenção para algumas das contribuições. Antes de tudo, todos os autores são uníssonos sobre o desconhecimento da obra de Kracauer no mundo acadêmico – e não apenas nas universidades francesas, diga-se de passagem – sobretudo em relação à sua discussão sobre a tradição historiográfica alemã, francesa e inglesa. Como destaca os organizadores na Introdução: “Apesar de uma forte representação da historiografia francesa, em particular por meio de Marc Bloch e da atualidade de sua temática, o livro de Kracauer não foi lido no meio acadêmico francófono” (p.6) A coletânea coincide com a tradução francesa de History (L´Histoire. Des avant-denière choses. Paris: Stock, 2006).

1. Despoix traça um paralelo engenhoso entre história e as mídias fotográfica e cinematográfica na reflexão de Kracauer, no ensaio: “Uma outra história?”, por meio de cinco proposições: 1. “todo documento é vestígio físico do passado” (p17); 2. “o lado de fora do arquivo enquanto o ‘fora de campo’ fotográfico” (18); 3. “a antinomia entre ‘grande plano’ e ‘plano conjunto'”(p.19);4. “o episódio (fílmico) como modo apropriado da narrativa histórica” (p.20); 5. “o paradoxo da empatia e da alienação”. Em seguida compara esse texto-fragmento de 1966 com o filme de Antonioni do mesmo ano, Blow up, ou seja, o trabalho do historiador, seu esforço em “fazer o documento falar”, com o do fotógrafo no filme que descobre, torna visível, um crime por meio de ampliações sucessivas de um negativo – trabalho de detive, um palimpsesto.

2. Peter Schöttler é o autor de “O historiador entre objetivismo e subjetivismo”, uma das melhores contribuições dessa coletânia, faz uma instigante aproximação entre Kracauer e Marc Bloch. Começa indagando sobre a dificuldade de ler History, ou seja, a dificuldade em responder, afinal o livro é direcionado a quem? Aos historiadores? Aos filósofos? A quem afinal? Extremamente interessante é o diálogo que reconstrói entre Kracauer e o autor de Apologie de l´histoire, é a partir dele que formula, elegendo a fotografia como um modo de percepção sutil e produtiva, a teoria da “passividade ativa” do processo fotográfico, comparando com o trabalho do historiador em relação às suas fontes, evocando a técnica da “clicagem automática” (déclencheur automatique) como aquele máximo de objetivismo na aproximação subjetiva do real. (Cf.85). É de Marc Bloch também a expressão “o tátil das palavras” (tact des mots), aquela “característica da última fase do trabalho do historiador” (p.89). Aquele átimo, em que o historiador vislumbra elementos utópicos “antes das últimas coisas”, ao encontrar, conforme se lê na última frase de History,“a terra incógnitanuma vala comum entre países que nos são familiares” (p.90)

3. Jean-Luis Leutrat mostra que Theory of FilmHistoryformam um díptico: “O diptico de Kracauer, ou como ser presente na sua própria ausência”. O próprio Kracauer enfatiza que o segundo livro é um prolongamento do primeiro. Como ressalta Leutrat: O primeiro, que é um livro sobre cinema, fala muito de fotografia, o segundo, pelo menos por meio de certos nomes de sua referência (Proust, Tolstoi, Griffith, Valéry ou Kafka…), não é uma obra ‘ortodoxa’ sobre a História à época de sua publicação” (p. 211). Para Kracauer história e imagem estão imbricadas e Leutrat faz uma aproximação inusitada entre Kracauer, Gogard e Grifftith: “Kracauer e Godard são próximos igualmente pela utilização de fragmentos como fonte. Kracauer para compreender a ‘lei dos níveis’ que comanda o vai e vem entre micro e macrohistória e se refere a um exemplo extraído de Theory, aquele grande plano das mãos da atriz Mãe Marsh no filme de D. W. Griffith Intolerance” (p. 222). O tema da tensão dialética entre micro e macro história é retomado também no ensaio de Carlo Ginzburg, “Detalhes, grandes planos, micro-análise” (Ver também GINZBURG, C. O fio e os rastros. São Paulo: Cia das Letras, 2007, 231-248).

4. O ensaio de Christian Delage, “Kracauer, o Museum of Modern Arte a propaganda nazi” lança luz sobre aspectos pouco discutidos e conhecidos de sua obra, que é sua analise da propaganda e dos cine-jornais nazistas à época da II Guerra. “Quando de seu exílio em Paris – observa Delage -” Siegfried Kracauer recebeu no dia 3 de maio de 1937 uma carta de Horkheimer que lhe chama atenção sobre a criação recente da cinemateca do Museu de Arte Moderna de New York, e lhe encoraja, sobretudo por meio de Meyer Shapiro, a tomar conhecimento de sua coleção de filmes e a entrar em contato com Íris Barry que era a responsável” (p.188). Graças a este contato que Kracauer pode finalmente obter visto para ir em 1941 para os Estados Unidos e realizar sua paciente pesquisa sobre os filmes de ficção e dos noticiários de Guerra nazistas, parte deste material foi publicado em anexo ao Caligari a Htitler. Delage pontua também o modo de análise de Kracauer: “uma análise estrutural que parte da visão dos filmes de seu corpuse não de um esquema semiológico abstrato. O filme de propaganda nazista se lhe apresenta constituído de três modos de expressão: ‘o comentário -compreendendo por sua vez as expressões verbais e as constatações ocasionais’; ‘ a imagem -compreendendo a realidade da câmara e os numerosos mapas’; ‘o som -composto de efeitos sonoros e a música, e incluindo canções” (p.202)

5. Por último não podemos deixar de chamar atenção sobre dois estudiosos pioneiros da obra de Kracauer na França, Nia Perivolaropoulou e Olivier Agard. Nia em seu ensaio, “O Jacques Offenbachde Kracauer. Biografia, história e cinema”, discute uma faceta pouco conhecida (o de roteirista) do autor de Jacques Offenbach e a Paris de sua época(1937), que é o roteiro que Kracauer escreveu para a filmagem de algumas passagens de seu livro, roteiro de humor incomum que infelizmente nunca foi filmado. Agard, por seu lado, mostra como história e auto-biografia se entrelaçam no pensamento de Kracauer: “Os elementos de autobiografia intelectual em History“. Colaboram também neste volume com contribuições importantes: Sabina Loriga, Jacob Tanner, Walter Moser, Bertrand Muller.

O livro é sem dúvida muito instigante para se compreender o universo intelectual de Kracauer, a relação entre imagem fotográfica e história, a tensão entre micro e macrohistória, a dialética entre tempo físico e história etc. Uma boa oportunidade para elucidar, também àqueles leitores mais curiosos, os comentários críticos de Kracauer desenvolvidos em History – e o presente livro é excelente contribuição de precisão cartográfica nesta direção -, sobre a concepção de história em autores como Hegel, Marx e Benjamin entre outros, e registrar a originalidade deste outsider.

Carlos Eduardo J. Machado – Professor Doutor do Departamento de História – Faculdade de Ciências e Letras – FCL – UNESP – Campus de Assis – 19806-900 – Assis – SP – Brasil. E-mail: machado@assis.unesp.br.

Itamar Freitas

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