Sidereus nuncius – O mensageiro das estrelas – GALILEI (SS)
GALILEI, Galileu. Sidereus nuncius – O mensageiro das estrelas. Tradução, estudo introdutório e notas de Henrique Leitão. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. Resenha de: SILVA, Paulo Tadeu da. A mensagem, o mensageiro e o tradutor: a propósito da tradução portuguesa do Sidereus nuncius. Scientiæ Studia, São Paulo, v.11, n. 4, p. 937-46, 2013.
A Fundação Calouste Gulbenkian publicou, em 2010, a primeira tradução portuguesa de um dos textos mais importantes da história da ciência e, sem qualquer dúvida, aquele que causou o mais profundo impacto no mundo científico europeu das primeiras décadas do século xvii, a saber, o Sidereus nuncius, de Galileu Galilei. A publicação dessa tradução ocorreu quatrocentos anos após a primeira publicação do Sidereus nuncius, ocorrida em março de 1610 e, como diz Sven Dupré (p. 8), que escreve a nota de abertura à tradução portuguesa, no momento em que o pó de intensas e numerosas atividades e eventos comemorativos do Ano Internacional da Astronomia começava a assentar. Segundo Dupré, diversos estudiosos têm voltado sua atenção para esse pequeno texto, explorando diferentes aspectos, como, por exemplo, a importância do mecenato, a relação entre o contexto artístico e as imagens lunares produzidas por Galileu, os aspectos literários do texto ou, ainda, os aspectos técnicos relacionados com a produção de lentes e a invenção do telescópio. Essa diversidade de abordagens, como afirma Dupré (p. 8), coloca em evidência o caráter interdisciplinar dos estudos dedicados ao texto, bem como mostra a sua importância não apenas no contexto científico mais restrito, mas também no âmbito cultural mais amplo.
Apenas a tradução do texto para a língua portuguesa já mereceria destaque e reconhecimento. Contudo, Henrique Leitão vai além de uma tradução segura e cuidadosa do original latino. Além dela, Leitão oferece ao seu leitor um estudo introdutório e um bom conjunto de notas explicativas que contribuem para uma melhor compreensão dos aspectos históricos, filosóficos e científicos com os quais o livro de Galileu esteve envolvido. Antes de considerar o estudo introdutório, convém destacar alguns pontos do prefácio de Leitão.
Henrique Leitão inicia o prefácio afirmando que o Sidereus nuncius é “uma obra que pode, sem qualquer exagero, ser considerada a mais emblemática, a mais perturbadora, mas também a mais acessível de todas quantas compõem o excepcional panteão dos textos da ‘revolução científica’” (p. 11). Tal importância, entretanto, contrasta justamente com a ausência, em Portugal, de uma tradução desse texto. Como sabe o leitor brasileiro, não se trata da inexistência de qualquer tradução para a língua portuguesa. E, de fato, Leitão não deixa escapar esse detalhe. Depois de uma breve referência no prefácio, Leitão faz uma menção mais detalhada no estudo introdutório, avaliando as duas edições da tradução brasileira, feita por Carlos Ziller Camenietzki, bem como o estudo introdutório e as notas que a acompanham. De acordo com Leitão, a tradução brasileira visou um público bastante amplo, ao passo que a tradução portuguesa, ainda que não esteja endereçada ao especialista na obra de Galileu, tem em vista um público culto e informado. O principal motivo da afirmação quanto ao escopo da tradução portuguesa está no fato de que “o especialista nunca dispensará a leitura do texto de Galileu na sua versão latina original” (p. 12). Não obstante os propósitos alegados por Leitão, cumpre avaliar a natureza e o alcance desta edição do Sidereus nuncius, bem como o lugar deste pequeno texto de Galileu no longo processo que marcou a defesa do copernicanismo.
O primeiro aspecto que chama a atenção é justamente o título da primeira seção do estudo introdutório: “Uma Gazeta Sideral com ‘osservazioni di infinito stupore”. Como Leitão adverte na nota 8 do estudo, bem como na nota 1 da tradução, o termo gazeta foi adotado por Carlos Solís Santos, responsável pela tradução espanhola do Sidereus nuncius. Santos, além de deixar clara sua decisão de romper com a tradição, justifica que o termo avviso,1 além de significar “notícia” ou “noticiário”, pode ser entendido como “gazeta”. A decisão de Santos, como afirma Leitão, pretende colocar em evidência o caráter “sensacional e jornalístico do livro de Galileu”. Leitão, pelo contrário, opta pela tradução que, segundo ele, é a mais habitual. O debate em torno da tradução do título do livro de Galileu é um assunto largamente discutido, sabemos disso. Contudo, gostaria de apresentar algumas rápidas considerações sobre a decisão de Leitão, em contraste com outras soluções de tradução como, por exemplo, aquela adotada na primeira edição da tradução brasileira. Em primeiro lugar, Leitão discute nas notas 1 e 22 da tradução as duas opções quanto ao título (cf. p. 207 e 212), entretanto, ele mesmo reconhece que o sentido que Galileu tinha em mente era de “mensagem”. Em segundo lugar, na primeira nota, Leitão observa que a segunda edição da tradução brasileira apresenta uma alteração com respeito à primeira edição, substituindo “mensagem” por “mensageiro”. Mas é importante notar que essa decisão foi tomada pelos editores da segunda edição da tradução brasileira e não por Carlos Ziller Camenietzki. Como adverte Ulisses Capazzoli na nota de apresentação à segunda edição, a opção por “mensageiro” teve em vista seguir a tradição, ainda que Camenietzki “tenha justificado devidamente a opção que fez” (Galilei, 2009[1610], p. 6). De fato, Camenietzki justifica sua escolha tendo em vista o modo como Galileu referiu-se ao livro em algumas cartas. Mas certamente um dos pontos importantes quanto à tradução “mensageiro das estrelas” está relacionado a Kepler. Como adverte Mourão na apresentação da primeira edição da tradução brasileira, “é a Kepler que se deve o sentido de ‘o mensageiro das estrelas’ para a obra de Galileu que, na realidade, usou a expressão sidereus nuncius no sentido de ‘a mensagem das estrelas” (Galilei, 1987 [1610], p. 6).2 Entre a manutenção daquilo que Galileu tinha em mente e o respeito à tradição, Leitão prefere a segunda alternativa. Mas então qual a razão do título da primeira seção do estudo introdutório de Leitão? Ao referir-se a “Uma Gazeta Sideral com ‘osservazioni di infinito stupore”, o tradutor português não estaria reconhecendo justamente a pertinência do título “A mensagem das estrelas”? Feitas essas breves considerações, voltemos ao estudo introdutório.
Leitão abre sua exposição enfatizando os impactos do livro de Galileu: “é difícil encontrar na história científica um outro exemplo que se lhe compare, quer na estrondosa comoção que causou imediatamente, quer nas dramáticas consequências a que deu origem” (p. 19). Tais impactos serão destacados por Leitão nos parágrafos seguintes, quando ele trata, por exemplo, da propagação das descobertas galileanas não somente no mundo europeu, mas também para além dele, na Índia e na China. A ênfase na relevância dessas descobertas se vê fortalecida na continuidade do texto de Leitão, na medida em que discorre sobre um conjunto de aspectos relacionados à natureza das observações telescópicas de Galileu, sua adesão às teses copernicanas, as consequências da publicação do texto de 1610 para sua carreira e os efeitos das novidades por ele relatadas no meio científico e filosófico da primeira metade do século xvii. Tais aspectos estão presentes nos blocos temáticos do estudo introdutório, os quais poderiam ser resumidos da seguinte maneira: (1) breve exposição sobre a história do telescópio; (2) descrição da estrutura do Sidereus nuncius e das observações telescópicas nele contidas; (3) a redação da obra e sua relação com os Medici; (4) as observações astronômicas de Galileu depois da publicação do Sidereus nuncius; (5) os impactos da obra na comunidade científica e filosófica do período; (6) a recepção das novidades telescópicas de Galileu em Portugal.
O trajeto percorrido por Leitão ao longo desses blocos temáticos conduz seu leitor a compreender, em linhas gerais, o contexto no qual o livro de Galileu está inserido. O destaque inicial, claramente vinculado ao estupor ocasionado pelas novidades anunciadas por Galileu, dá lugar ao desenvolvimento de um panorama que coloca sob nossos olhos os aspectos técnicos, cosmológicos, filosóficos e sociais que cercam a obra em questão. Tal panorama começa com um breve histórico sobre a invenção do telescópio, a maneira como Galileu toma conhecimento do mesmo, seu trabalho na construção de telescópios cada vez mais potentes e as dificuldades práticas envolvidas nesse processo (como, por exemplo, o polimento adequado das lentes). Esse histórico prepara o leitor para o significado das observações contidas no Sidereus nuncius e, consequentemente, fortalece o papel decisivo e revolucionário desse instrumento científico. Como afirma Leitão: “o telescópio é, pois, parte integrante e essencial da ‘mensagem’ que Galileu queria dar” (p. 29). E, de fato, isso se faz notar nas primeiras páginas do texto de Galileu, nas quais encontramos o seguinte.
Grandes coisas, na verdade, são as que proponho neste pequeno tratado para que sejam examinadas e contempladas por cada um dos que estudam a natureza. Coisas grandes, digo, pela própria excelência do assunto, pela sua novidade absolutamente inaudita e ainda por causa do instrumento com o auxílio do qual elas se tornaram manifestas aos nossos sentidos (Galilei, 2010 [1610], p. 151).
Tais grandes coisas, resultado das observações astronômicas de Galileu, serão anunciadas logo após um brevíssimo relato sobre como a notícia do surgimento do telescópio chegou ao seu conhecimento e de como ele construiu esse instrumento. De acordo com Leitão, o Sidereus nuncius contém basicamente dois tratados: o primeiro sobre a Lua e o segundo sobre Júpiter, separados por algumas páginas dedicadas às estrelas fixas. Cada uma dessas partes possui caráter e consequências particulares. Como sabemos, as observações da superfície lunar determinam sérias dificuldades para a cosmologia aristotélica. Se a existência de vales, crateras e montanhas (o que se conclui a partir das imagens obtidas por intermédio do telescópio) demonstra que a superfície da Lua não é “perfeitamente polida, uniforme e exatamente esférica, como um exército de filósofos acreditou” (Galilei, 2010 [1610], p. 156), a natureza da luz secundária que banha o corpo lunar reforça a sua similaridade com a Terra para além das suas semelhanças de relevo.
As páginas que seguem ao relato sobre a superfície lunar, ainda que denominadas por Leitão como uma digressão, abordam outro aspecto importante para a cosmologia e a astronomia do período. A observação telescópica das estrelas fixas revela aos olhos do observador moderno um número muito maior desses astros e o seu papel na constituição de determinadas regiões celestes, como a constelação de Órion (até então compreendida como uma nebulosa) e a Via Láctea. Duas passagens do texto de Galileu ilustram muito bem tais aspectos.
Na verdade, com a luneta poderá ver-se uma tal multidão de outras estrelas abaixo da sexta grandeza, que escapam à vista desarmada, tão numerosa que é quase inacreditável, pois podem observar-se mais do que seis outras ordens de grandeza (…). Aquilo que foi por nós observado em terceiro lugar foi a essência ou matéria da própria Via Láctea que, com auxílio da luneta, pode ser observada com os sentidos, de modo que todas as disputas que durante gerações torturaram os filósofos são dirimidas pela certeza visível, e nós somos libertados de argumentos palavrosos. De fato, a galáxia não é outra coisa senão um aglomerado de incontáveis estrelas reunidas em grupo (Galilei, 2010 [1610], p. 175-7).
A última parte do Sidereus nuncius é dedicada ao anúncio dos quatro satélites de Júpiter, cujas implicações vão desde a sua nomeação de “estrelas mediceias” até seu papel como argumento em favor do copernicanismo. Os comentários de Leitão a respeito dessas implicações são, mais uma vez, bastante esclarecedores. Quanto ao primeiro tipo de implicação, ele dedica atenção não somente na breve análise que faz desta parte do texto de Galileu, mas também em outro momento do estudo introdutório, no qual discorre exclusivamente sobre a relação entre a publicação do Sidereus nuncius e a homenagem de Galileu à família Medici. Quanto ao segundo tipo de implicação, Leitão recupera o processo de observação de Júpiter, evidenciando a crescente importância do fenômeno para a conversão explícita e militante de Galileu ao copernicanismo (cf. p. 82). As observações posteriores à publicação do Sidereus nuncius, como foi dito acima, são brevemente tratadas por Leitão no estudo introdutório. Dentre elas, as observações das fases de Vênus e das manchas solares fortalecem a convicção de Galileu em prol do copernicanismo e, portanto, são elementos igualmente importantes para a sua defesa do novo sistema astronômico. De fato, encontramos na carta endereçada a Benedetto Castelli, datada de 21 de dezembro de 1613 (cf. EN, 5, p. 281-8), o uso de um argumento em defesa de Copérnico claramente vinculado às observações das manchas solares. A fim de demonstrar de que maneira a famosa passagem de Josué é compatível com o sistema copernicano e, por outro lado, não pode ser explicada pelo sistema ptolomaico, Galileu afirma no penúltimo parágrafo da carta:
Tendo eu, portanto, descoberto e demonstrado necessariamente que o globo do Sol gira sobre si mesmo, fazendo uma rotação completa em cerca de um mês lunar precisamente naquele rumo em que se fazem todas as outras rotações celestes; sendo, ademais, muito provável e razoável que o Sol, como instrumento e ministro máximo da Natureza, como que coração do mundo, dê não apenas, como ele claramente dá, luz, mas também movimento a todos os planetas, que giram em torno dele (Galilei, 2009, p. 25-6).
Se as observações astronômicas tiveram consequências importantes no posicionamento adotado por Galileu, o conhecimento daquelas que estão presentes no Sidereus nuncius causaram, por sua vez, profundos efeitos no ambiente científico e filosófico do período. Leitão avalia esses efeitos nos dois últimos momentos de seu estudo introdutório. O primeiro deles apresenta um exame geral desses impactos no mundo científico da época, ao passo que o segundo é particularmente dedicado à análise das novidades telescópicas de Galileu em Portugal. Mas os dois momentos não estão separados. Pelo contrário, aquilo que Leitão descreve acerca do que ocorreu em Portugal está claramente associado às repercussões das observações astronômicas de Galileu na Companhia de Jesus e entre os astrônomos do Colégio Romano. De modo geral, a exposição de Leitão sobre o impacto do Sidereus nuncius procura colocar em evidência a recepção e a avaliação dessa obra por Kepler e pelos astrônomos do Colégio Romano. No primeiro caso, trata-se da aprovação do maior astrônomo do período, a quem Galileu solicita expressamente a opinião. A resposta de Kepler à solicitação de Galileu ocorre alguns dias após receber uma cópia do Sidereus nuncius. A carta enviada por Kepler a Galileu é posteriormente corrigida e ampliada, sendo publicada sob o título Dissertatio cum nuncio sidereo. A avaliação de Kepler é marcada pelo tom elogioso e entusiasmado, não obstante ele advirta que Galileu não inventou o telescópio, como também não foi o primeiro a “falar da natureza rugosa da superfície lunar e que não fora também o primeiro a referir que havia muito mais estrelas no céu” (p. 106). Se a avaliação de Kepler depositava nas mãos de Galileu um trunfo de enorme valor, a confirmação de suas observações por parte dos astrônomos do Colégio Romano lhe conferia crédito importantíssimo no âmbito institucional e científico vinculado ao poder eclesiástico. A resposta às demandas encaminhadas pelo cardeal Roberto Bellarmino (cf. EN, 11, p. 87-8) aos membros daquela instituição não confirma apenas as observações presentes no pequeno texto de 1610, mas ainda as outras que se seguiram à publicação do Sidereus nuncius (cf. EN, 11, p. 92-3). Embora essa fosse uma vitória da maior relevância, ela não significou, no âmbito dos jesuítas, a adoção do sistema copernicano. As dificuldades oriundas das observações astronômicas requeriam uma nova explicação dos céus e dos movimentos planetários e durante algum tempo os jesuítas estiveram envolvidos com os problemas cosmológicos que então se apresentavam, resultantes das observações astronômicas com o auxílio do telescópio. Depois da morte de Clávio, em 1612, os debates continuaram de modo intenso na Companhia de Jesus. Segundo Leitão, “a verdade é que, em 1620, com a publicação da Sphaera mundi seu cosmographia, de Giuseppe Biancani (1566-1624), o sistema de Tycho Brahe passou a ser ‘oficialmente’ adotado pela Companhia de Jesus” (Leitão, 2008, p. 31).
Os reflexos das descobertas astronômicas de Galileu têm, na última parte do estudo introdutório de Leitão, um destaque especial, ainda que não exaustivo. É neste momento que o tradutor português trata particularmente das repercussões da invenção do telescópio e das observações astronômicas de Galileu entre os jesuítas da Companhia de Jesus, mais precisamente na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão. A chegada dessas notícias foi favorecida em virtude das relações entre a Companhia de Jesus e o mundo europeu culto daquele período, como, por exemplo, a estreita relação entre a “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão com a Academia de Matemática de Clávio. Se a chegada dessas notícias a Portugal foi resultado desse tipo de relação, é igualmente o papel desempenhado pela Companhia de Jesus que permite que as novidades astronômicas sejam recebidas em países mais distantes da Europa, como a Índia e a China, nos quais se encontravam, respectivamente, o padre Giovanni Antonio Rubino (cf. p. 118) e o jesuíta Manuel Dias Júnior (cf. p. 120). Mas a atenção de Leitão está dirigida para a recepção e desenvolvimento da astronomia na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão, o que o leva a tratar do debate cosmológico que então se desenvolveu naquela instituição com as notícias sobre as observações telescópicas de Galileu. Nesse contexto, dois personagens merecem destaque, Giovanni Paolo Lembo, responsável pela construção de telescópios no Colégio Romano, e o jesuíta italiano Cristoforo Borri, que teve um papel importante nos debates cosmológicos do período (cf. p. 129). O primeiro deles, Lembo, foi o grande responsável pela introdução de Galileu e suas descobertas astronômicas em Portugal, ao passo que Borri foi um notável divulgador das novidades astronômicas naquele mesmo país. Ambos têm passagem pelo Colégio de Santo Antão, no qual lecionaram alguns cursos. Lembo lecionou entre 1615 e 1617, período no qual se desenvolveu o longo e intenso debate cosmológico e teológico em torno das hipóteses copernicanas e, Borri, entre 1627 e 1628. É por meio da trajetória desses dois personagens na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão que Leitão oferece ao seu leitor um quadro geral sobre a introdução das observações celestes de Galileu em Portugal, bem como sobre o posicionamento dos jesuítas portugueses frente ao debate cosmológico das primeiras décadas do século xvii. Nesse último contexto, ele mostra que os matemáticos jesuítas, embora abandonem o modelo astronômico ptolomaico (pois ele não se mostrava mais sustentável frente às descobertas feitas com o telescópio), não adotam o sistema copernicano. Como dito anteriormente, os jesuítas optam pelo modelo proposto por Tycho Brahe, ou alguma variante desse modelo.
Como dito no início desta resenha, Leitão afirma que a tradução portuguesa está endereçada ao público culto e informado e que o especialista jamais dispensará a leitura do original latino do Sidereus nuncius. Além disso, no prefácio, ele lamenta que “quase nada do que Galileu escreveu foi alguma vez traduzido em Portugal” (p. 11). Tais declarações merecem agora algumas ponderações, uma vez que a tradução é dirigida àquele público ao qual Leitão se refere. O trabalho de Leitão merece o justo reconhecimento, não apenas pela tradução cuidadosa, mas também pelo estudo introdutório. Trata-se, sem dúvida, de uma leitura fundamental para todos os interessados na obra de Galileu. Contudo, esse mesmo público, culto e informado, não deixará de perceber algumas ausências notáveis naquilo que diz respeito às traduções disponíveis, seja de textos do próprio Galileu, seja de outros que estão diretamente relacionados com a contenda em torno do copernicanismo. Nesse sentido, lamenta-se, por exemplo, a falta de referência a algumas traduções brasileiras, dentre as quais destaco as seguintes: (1) a tradução brasileira de O ensaiador, realizada por Helda Barraco (cf. Galilei, 1978); (2) a tradução brasileira comentada do Commentariolus, de Copérnico, feita por Roberto de Andrade Martins (cf. Copérnico, 1990); (3) a tradução brasileira das cartas relacionadas com o debate teológico e cosmológico com o qual Galileu esteve envolvido, realizada por Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (cf. Galilei, 2009); (4) a tradução brasileira comentada do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, feita por Pablo Rubén Mariconda (cf. Galilei, 2011 [1632]); (5) as traduções brasileiras comentadas da Carta de Galileu a Francesco Ingoli e da Discussão a respeito da posição e do repouso da Terra contra o sistema de Copérnico, de Francesco Ingoli de Ravena, realizadas por Pablo Rubén Mariconda (cf. Galilei, 2005; Ingoli, 2005). Essas últimas traduções, feitas por Mariconda, merecem destaque especial tendo em vista a relação dos estudos que as acompanham com a defesa galileana do copernicanismo. A tradução do Diálogo, cuja primeira edição é de 2001, conta com um valioso estudo introdutório, intitulado “O diálogo e a condenação”, a partir do qual é possível compreender, com riqueza de detalhes e profundidade de análise, todo o período no qual Galileu esteve envolvido com a defesa do modelo copernicano. As traduções do texto de Ingoli e da resposta de Galileu são, por sua vez, acompanhadas de um estudo intitulado “O alcance cosmológico e mecânico da carta de G. Galilei a F. Ingoli” (Mariconda, 2005). Tais estudos ampliam significativamente o quadro apresentado por Leitão. Todas essas traduções são anteriores àquela de Leitão e, assim, esperaríamos que estivessem referidas no prefácio, no estudo introdutório ou nas notas à tradução.
Não há dúvida de que trabalho realizado por Leitão deve ser colocado ao lado das traduções acima referidas, bem como da tradução portuguesa de As revoluções dos orbes celestes, de Copérnico, feita por A. Dias Gomes e Gabriel Domingues (cf. Copérnico, 1996 [1543]). De fato, não é difícil notar que a tradução do Sidereus nuncius preenche uma lacuna importantíssima naquela prateleira da estante, nossa e principalmente de nossos alunos. A meu ver, são especialmente estes últimos que ganham uma contribuição de valor inquestionável com o trabalho de Leitão. É por meio da tradução da mensagem enviada por Galileu, que o tradutor português lega ao futuro especialista mais uma peça para montagem do quadro de uma época que ainda reclama nossa atenção. De fato, este novo volume na estante não mostra apenas um retrato do céu que os filósofos naturais da primeira metade do século xvii descobriram, mas nos auxilia a compreender o significado de um dos períodos mais importantes da história da ciência. Cabe ao leitor manter seus olhos atentos aos detalhes desse retrato, bem como às interpretações que dele já se fizeram.
Notas
1 Note-se que ele não utiliza o termo “nuncius”, mas refere-se ao termo italiano utilizado por Galileu em algumas ocasiões como, por exemplo, em uma carta redigida em 30 de janeiro de 1610 e endereçada a Belisario Vinta (cf. EN, 10, p. 280-1).
2 Seguramente Mourão refere-se nesse momento ao texto no qual Kepler apresenta sua avaliação sobre o livro de Galileu, intitulado Dissertatio cum nuncio sidereo.
Referências
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_____. Sidereus nuncius: o mensageiro das estrelas. Tradução, estudo introdutório e notas H. Leitão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 [1610].
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MARICONDA, P. R. O alcance cosmológico e mecânico da carta de Galileu Galilei a Francesco Ingoli. Scientiae Studia, 3, 3, p. 443-65, jul./set. 2005.
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Paulo Tadeu da Silva – Centro de Ciências Naturais e Humanas. Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo, Brasil. E-mail: paulo.tadeu@ufabc.edu.br
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