Em 2016, publicamos na revista Esboços (v. 23, n. 35), o dossiê “Quando Clio encontra as ‘sexualidades disparatadas’”, [1] que, inspirado pelas reflexões de Michel Foucault, especialmente, aquelas presentes no primeiro volume da sua História da Sexualidade [2] tinha como objetivo problematizar as homossexualidades, lesbianidades e transexperiências na historiografia brasileira.
As pesquisas históricas reunidas naquele dossiê, indícios de uma produção historiográfica marcada pelo uso criativo de fontes tradicionais e o estabelecimento de novas fontes históricas; pelo privilégio do século XX como recorte temporal (em parte, por este testemunhar a politização das “identidades sexuais”); pelo registro da pluralização das experiências homossexuais (a sigla LGBT representa um recorte histórico recente nesse cenário sexual e político), revelaram que Clio encontrara, não sem resistências, as “sexualidades disparatadas”.
O presente dossiê da Revista História, histórias do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília – UnB, amplia o debate iniciado em 2016, ao mesmo tempo em que inaugura outras, novas narrativas históricas sobre as “sexualidades disparatadas”, acontecimento que tem contribuindo para a transformação da nossa disciplina.
Nesse sentido, já não se trata mais de (somente) problematizarmos o surpreendente silêncio de Clio acerca das homossexualidades, que marcava a historiografia brasileira, até o início da década de 2000. Nem tampouco, de (apenas) nos perguntarmos por que os/as historiadores/as no Brasil se dedicaram tão timidamente ao estudo das homossexualidades, [3] mas, de lançamos olhares críticos para a recente e diversificada produção historiográfica sobre as sexualidades que se “desviam” da norma heterossexual: Que outras histórias estão sendo gestadas do encontro entre Clio e as “sexualidades disparatadas”? Neste número da História, histórias, o/a leitor/a conhecerá algumas das histórias paridas desse encontro.
As práticas sexuais não normativas, apresentadas por Pietro Aretino nas obras Pornólogos I (1534) e Sonetos Luxuriosos (1525), são o objeto de reflexão de Alloma Noara Pereira Modzelewski, no artigo “Que nossa gula o quer na frente e atrás”: práticas sexuais destoantes na literatura de Pietro Aretino. O diálogo de Modzelewski com Paul B. Preciado, Jacques Rancière e Georges Didi-Huberman revela o quanto a escrita das outras histórias que emergem do encontro entre Clio e as “sexualidades disparatadas” estão atravessadas pelos (des) encontros entre história e filosofia.
Em Regulamento da prostituição, família e imprensa (Belém-PA, 1890), Ipojucan Dias Campos, historiciza o regulamento da prostituição e as suas ligações com a família belenense, feitas pela imprensa, no final do século XIX. A partir da leitura do seu artigo, acompanhamos como a preocupação com as mulheres que “deambulavam” pelas ruas de Belém apresentou-se oficialmente por meio da aprovação do regulamento da prostituição no final do século XIX.
No texto Encenando com o martelo: abjeção e sexualidade no espetáculo teatral “Genet – O palhaço de deus”, Kauan Amora Nunes nos convida a olhar, sob a perspectiva queer, a encenação teatral “Genet – O Palhaço de Deus”, levada aos palcos de Belém, em 1987. O autor nos lembra de que não apenas a sexualidade, neste caso, a homossexualidade, é apagada da história oficialmente contada, mas a própria produção teatral vinda do Norte do país.
Em Entre o desejo e o pecado: sodomia e sexualidade no Grão-Pará (séculos XVII e XVIII), Márcio Douglas de Carvalho e Silva problematiza como o Santo Ofício tentou disciplinar os habitantes no território luso-brasileiro, enquadrando-os nas regras ditadas pela Igreja Católica e pelo Estado português. Para tal, Carvalho analisa seis processos que datam dos séculos XVII e XVIII, entre eles, o de Frei Lucas de Souza, considerado pelos inquisidores um “sodomita incorrigível”.
A arte teatral é objeto de reflexão histórica no texto de Natanael de Freitas Silva. Em Dzi Croquettes e as masculinidades disparatadas, Silva realiza um debate sobre a ditadura civil-militar brasileira e as relações de gênero e sexualidade no período, a partir do grupo teatral Dzi Croquettes. Em seu texto, o historiador mostra que as performances artísticas do grupo contribuíram para deslocar as posições de gênero e sexualidade e amplificar práticas e desejos que fogem da norma masculina heterossexista.
Existências (in) pensáveis, vivências condenáveis: quando a vida se torna prescritiva, de Rafael França, apresenta uma reflexão sobre a histórica formação da ideia de um modo de vida prescritivo. A partir do diálogo com Michel Foucault e da discussão sobre gênero e sexualidade, o autor mostra que a possibilidade criativa de uma existência ética e livre pode ser transformada em uma reiteração das normas e hierarquias existentes.
Em Concubinas e poderosas: feitiçaria e poder feminino nos sertões das minas gerais no século XVIII, Rangel Cerceau Netto historiciza a dinâmica do universo religioso e das atividades laborais desenvolvidas por mulheres mestiças no sertão do Rio das Velhas. A trajetória de Timótia Nogueira é analisada para pensar escravidão, os trânsitos e mestiçagens no complexo universo colonial da América portuguesa setecentista.
Finalizamos o dossiê com uma entrevista com o historiador James N. Green, que este ano lançou Revolucionário e Gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel, pioneiro na luta por democracia, diversidade e inclusão. [4] O encontro foi realizado em Florianópolis, em 1º de agosto de 2017, na residência da historiadora Joana Maria Pedro, durante o 13º Congresso Mundos de Mulheres, realizado juntamente com o Seminário Internacional Fazendo Gênero 11. Agradecemos ao historiador James N. Green pela disponibilidade e a Joana Maria Pedro por nos receber em sua casa.
Esperamos que o/a leitor/a encontre nestas outras histórias de Clio não somente novas maneiras de fazer história, mas, também, novas estéticas e éticas de viver o presente (com a história).
Aproveitamos para agradecer à equipe da Revista História, histórias, especialmente, ao historiador André Cabral Honor, pela acolhida da nossa proposta e pelo diálogo ao longo do processo de produção deste dossiê.
Boa leitura!
Notas
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Brasil
Prof. Dr. Elias Ferreira Veras
Universidade Federal de Alagoas – Brasil
Organizadores
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