Sete mitos da conquista espanhola | Matthew Restall
O autor Matthew Restall, professor da Universidade da Pensilvânia, procura, em seu livro, desconstruir sete mitos consolidados sobre o processo de descoberta e conquista da América e povos nativos. Para realizar essa tarefa, utilizou-se de registros escritos realizados por espanhóis que participaram do processo de conquista, cartas de religiosos, biografias, filmes produzidos sobre o tema, relato de pensadores do século XVIII, abordagens historiográficas contemporâneas, enfim, uma gama de fontes históricas. Restall desmonta inúmeras “verdades” relacionadas ao processo de dominação ibérica sobre a América ao propor-se a comparar duas formas de descrever o que se passou: uma criada no decorrer do processo de dominação, e a outra, formulada em arquivos e bibliotecas em séculos posteriores, ou seja, confrontando explicações sobre a conquista formuladas ao longo dos séculos XVI ao XX. Sugere algumas outras interpretações, as quais afirma também não serem infalíveis e eternas, o que não significa, segundo ele, que não possam revelar algo de verdade.
No primeiro capítulo denominado Um punhado de aventureiros – O mito dos homens excepcionais o autor questiona a idéia de que um pequeno número de homens “notáveis” teria conquistado a América e subjugado milhões de nativos. Restall argumenta que a necessidade de permissão real e de um contrato estabelecido entre a Coroa e o conquistador para a exploração do Novo Mundo estimulou a escrita de cartas, nas quais os colonizadores superestimavam suas atividades e feitos nas novas terras. Exaltando a si mesmos por meio das “Probanzas”, uma espécie de prestações de contas enviadas à Coroa, os colonizadores criaram o mito de homens grandes, corajosos e desbravadores, prontos a vencerem qualquer obstáculo. Religiosos, biógrafos e cronistas ajudaram a confirmar o mito em seus relatos. Segundo o autor, esses homens eram, em sua maioria, despreparados, mal treinados, insuficientemente armados e famintos, que fizeram da aliança com outras nações nativas suas aliadas para a sobrevivência e vitórias em batalhas.
O segundo capítulo, Nem remunerados, nem forçados – O mito do exército do rei apresenta uma discussão a respeito da idéia de que todos os soldados que chegaram à América eram militares. É defendido que o estado espanhol não era forte, nem consolidado no final do século XV para ter um exército regular. O mito construiu a imagem de homens fardados, com armaduras e um aparato bélico estatal. Segundo o autor, não havia recursos financeiros, armamentos em grande escala para a empreitada, nem mesmo sofisticação nos aparelhos de navegação. E as táticas de guerra, diferentes daquelas usadas na Europa, tiveram que ser adaptadas ao novo ambiente, como, por exemplo, o freqüente seqüestro de líderes nativos com exigência de resgates e atentados.
Restall considera que as habilidades de luta eram adquiridas nas próprias situações de conflito vivenciadas na América, que não havia uniformes e remuneração específica. O que atraía esses “soldados” era a possibilidade de conseguir uma vida melhor por meios como a “encomienda” – concessão de terras com trabalhadores agregados, títulos de nobreza e metais preciosos. Isso era significativo uma vez que o “exército” espanhol era formado por plebeus, camadas medianas da sociedade e da baixa nobreza espanhola, negros, pardos, africanos livres, escravos e mulatos.
Em Guerreiros invisíveis – O mito do conquistador branco discute-se a tese de que poucos soldados venceram milhares de nativos. Restall argúi que os espanhóis sempre foram minorias no terreno das batalhas na América, porém, que tiveram constante ajuda de grupos nativos, já que estes nunca formaram um grupo homogêneo e unido. A rivalidade entre os nativos era antiga; povos eram subjugados e obrigados a pagar impostos aos que os dominavam. Daí acordos serem firmados com os espanhóis para a defesa de interesses comuns. Além disso, em muitas situações os povos nativos eram tão estrangeiros entre si quanto o era a figura do espanhol.
Além do nativo é salientado que o negro africano foi outro aliado fundamental para o espanhol. Considerados excelentes combatentes e auxiliares pessoais pelos espanhóis, os escravos africanos ocuparam variadas funções tanto nos campos de batalha como na organização administrativa desempenhando a função de soldado, comandante, chefe de polícia, tocador de gaita de foles, mestre de pesos e medidas, pregoeiro público ou municipal, cozinheiros, entre outras. Argumenta o autor que as fontes hispânicas ao mesmo tempo revelam e ignoram a participação negra, uma vez não fornecerem o número e o nome daqueles trazidos pelas Companhias. Entretanto, é possível ter informações sobre eles através de relatos de incidentes que, para Restall, merecem a atenção dos historiados por se confrontarem ao discurso oficial que omite e oculta a participação negra na denominada “conquista espanhola”.
Sob o domínio do rei – O mito da conclusão, título do quarto capítulo, questiona-se que a conquista e a colonização da América pelos espanhóis tenham sido realizadas rapidamente por todo o continente. Menciona o autor que não bastava informar sobre as descobertas no novo mundo à coroa, era preciso deixar claro que a empreitada era viável por meio da exploração do ouro e da prata, daí os exageros nas descrições e prestações de contas. Isso teria levado à criação do mito da conquista rápida, pacífica e geral desse território fabuloso e cheio de riquezas. O discurso religioso teria amparado essa idéia na medida em que tais argumentos só viriam a comprovar o plano divino posto em prática pelo rei e seus agentes. O autor diz que a rebeldia e resistência dos nativos à invasão deixam claro que não foi nem rápida nem fácil a “missão” dos espanhóis.
No quinto capítulo, As palavras perdidas de La Malinche – O mito da (falha) comunicação, Restall questiona a tese de que a falta de comunicação teria levado ao massacre indígena. O não conhecimento da língua, do idioma alheio, ocasionou desentendimentos e dificuldades de comunicação que provocaram conflitos ocasionais, porém, isso não serve para justificar acontecimentos maiores. Apesar de gerar interpretações diversas, os dois lados se entendiam bem quando o queriam fazer.
Segundo o autor, uma ferramenta fundamental nesse processo de comunicação foi o uso de intérpretes, que eram cooptados, treinados e utilizados. Alguns alcançaram status e prestígio sendo inclusive citados nas cartas enviadas ao rei, como o caso de La Malinche, intérprete e amante de Cortez, que o acompanhou durante anos. Entretanto, os tradutores são tratados de maneira ambígua pelas fontes espanholas, ora ignorados, ora valorizados e reconhecidos como eficazes e necessários.
O capítulo sexto Os índios estão se acabando. O mito da desolação nativa trata a idéia da inatividade, do abandono dos nativos frente ao desenrolar da conquista e de sua prostração diante da inevitabilidade da vitória espanhola. Ao analisar registros de cronistas do século XVI, Restall evidencia a construção de visões estereotipadas dos indígenas como ignorantes, inocentes ou nefastos, que enxergavam nos invasores espanhóis verdadeiros deuses. Como resultado desse longo contato, a historiografia dos vencedores salienta a destruição da cultura nativa diante da depredação e ação imperialista cultural européia e a “natural” predominância da cultura “superior” dos brancos. Na visão do autor, há que se destacar a existência de inúmeros povos nativos, que agiram de modo variado frente à conquista espanhola ao longo dos trezentos anos da América colonial. Argumenta que os indígenas não só sobreviveram à invasão e posterior conquista, como arrefeceram os traumas e aprenderam a viver e a trabalhar dentro de uma nova realidade, com comunidades obtendo inclusive um relativo sucesso em suas atividades.
No capítulo final Macacos e homens – O mito da superioridade discute-se a idéia totalmente cristalizada de que os europeus tinham o direito e o dever de dominar os povos nativos, e que a estes, pela sua ingenuidade, insensibilidade e falta de cultura, cabia como destino a dominação por povos civilizados, ou seja, os espanhóis. Em relação à idéia de que os nativos teriam considerado os europeus como deuses, argumenta Restall que, primeiramente, essa é uma tese aplicada aos astecas que, posteriormente, foi estendida a outros povos americanos e, segundo, que a controvérsia das fontes políticas e religiosas em relação a esse aspecto leva-o a crer que os nativos respeitaram os invasores pelo seu aparente poderio, mas não como entidades descidas do céu para puni-los. Defende que foram sim as doenças, as quais os indígenas não tinham a mínima proteção, a desunião interna entre os diversos grupos nativos impedindo um levante geral e a preocupação dos indígenas em manter do seu habitat frente os transtornos das guerras, que tornaram decisiva a expansão colonial espanhola em solo americano. Considera, por fim, que foi um processo demasiado amplo e que ainda continua incompleto.
Para o autor Matthew Restall não importa o que foi verdade ou mito, mas a sua proposta é a análise de como a história foi formulada, constituída e apresentada ao longo dos séculos XVI ao XIX, e como ela é encarada no presente.
Tudo depende do ângulo que vemos os fatos e, segundo o autor, mais importante do que saber o que realmente aconteceu no início do século XVI, é compreender as interpretações passadas adiante, seja nos documentos ou nas construções historiográficas contemporâneas, ambas responsáveis pela cristalização de determinadas interpretações, e que nós, testemunhas do nosso tempo, devemos deixar de ser meros observadores e passemos a refletir diante do aparecimento e tentativa de consolidação de novos mitos.
Resenhista
Maurício Tadeu de Andrade – Graduando do Quarto ano de História das Faculdades Integradas de jaú/SP. Resenha realizada na disciplina de História da América III, sob a orientação da Profª. Drª Lourdes C. Feitosa.
Referências desta Resenha
RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Trad. Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Resenha de: ANDRADE, Maurício Tadeu de. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 2, n. 3, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]