O livro Ser médico no Brasil: o presente no passado, de André de Faria Pereira Neto, examina de forma muito original como elites médicas se mobilizaram no início do século XX, com o objetivo de avançar o processo de profissionalização dessas carreiras no país.
Esmiuçando os debates ocorridos entre participantes de um congresso de médicos realizado em 1922, o autor destaca no passado vários aspectos que continuam marcando a prática médica nos dias de hoje, dando novo significado às situações que presenciamos no cotidiano da medicina. Seu primeiro achado foi destacar o Congresso Nacional dos Práticos como o evento relevante a ser analisado. Esta opção, entre vários outros caminhos que ele poderia ter tomado para pesquisar o tema, abordou com criatividade o mundo dos médicos às voltas com o profissionalismo. Assim, escolheu a dedo um evento que melhor lhe permitiria pesquisar as preocupações dos médicos com a profissão em um contexto de mudanças nas formas de se exercer a atividade.
O Congresso Nacional dos Práticos não se propunha a aprofundar conhecimentos científicos através do debate teórico de casos clínicos, mas a organizar as reações dos médicos às novas condições do fazer profissional. Segundo Pereira Neto, o século XX trouxe duas modificações-chave para a prática médica: a maior especialização, dividindo o corpo do paciente concebido antes como uno; e a intermediação de instituições públicas ou filantrópicas na relação médico-paciente antes individualizada, mudança decorrente do desenvolvimento de tecnologias para o diagnóstico que elevaram os custos da produção dos serviços.
O contexto de preparação deste congresso foi marcado também por outras características que colocaram a problemática profissional no centro das atenções dos médicos. O aumento do número de faculdades de medicina elevou o total de praticantes habilitados, ampliando a concorrência entre eles. Isto aguçou a necessidade de se regulamentar condutas através da ética profissional e de controlar com mais rigor o mercado de trabalho, definindo as distintas atribuições das ocupações no campo da saúde e impedindo o exercício dos não-habilitados. As preocupações com o profissionalismo sob uma ordem estatal intervencionista, tanto no âmbito do ensino superior quanto da saúde pública deu relevância ao debate das relações entre os médicos e o Estado como tema do evento.
Retomando aspectos apontados pelos estudiosos da área como típicos dos processos de profissionalização, os capítulos do livro vão se detendo nos tópicos discutidos no Congresso Nacional dos Práticos que resultaram na construção da identidade profissional dos médicos no Brasil, ideário que segue sendo realimentado atualmente na maioria de seus valores.
A história que Pereira Neto resgata ao examinar os anais do congresso delineia um grupo debatendo com vigor suas diferentes concepções sobre o fazer do médico, seus atributos coletivos e seus perfis de carreira. A primeira constatação é que, embora tendamos a pensar os grupos profissionais como a união de colegas partilhando valores comuns e homogêneos, a vivência dentro das profissões é marcada pelo embate entre conteúdos distintos para a definição da ideologia dominante no grupo. Essas tensões e composições dão a liga interna e delimitam a fronteira externa, consolidando as redes de sociabilidade entre eles. O conjunto de valores que predomina nos grupos profissionais não é e nunca foi unívoco. As disputas no Congresso dos Práticos em torno de três perfis de práticas médicas classificadas pelo autor como generalista, especialista e higienista nos permitem identificar a recorrência dos conflitos sobre o ideário que se tornou dominante. Outro foco de discordância foi a questão da conduta coletiva, debatendo-se os limites do segredo profissional e da padronização de anúncios.
O profissionalismo em construção neste período experimentava formas de se diferenciar das regras da livre-concorrência que marcaram a divisão do trabalho sob a égide do capitalismo no mundo anglo-saxão. Assim, não só era preciso proteger uma área do mercado de trabalho da concorrência externa, exigindo-se a posse do diploma superior para o exercício da profissão, como era preciso regular a competição interna, evitando a reprodução daquelas condutas através de uma ética comum. Outros profissionais liberais, como os advogados, também discutiram questões semelhantes no exterior e no Brasil. A circulação de idéias no mundo profissional já tinha dimensão internacional e o Congresso Nacional dos Práticos espelhou como o processo de profissionalização foi vivenciado aqui. Os médicos neste evento abordaram os problemas da competição entre os pares; da competição com outras ocupações no campo da saúde, definindo as atribuições “auxiliares” que cabiam aos farmacêuticos, às enfermeiras-visitadoras e às parteiras; e dos conflitos com os “indesejáveis” curandeiros, espíritas e homeopatas, buscando excluí-los da prática como charlatães. Os capítulos centrais do livro desenvolvem as polêmicas nestes três níveis de conflito, delineando como o profissionalismo foi se difundindo entre os médicos no Brasil. Ao contar essa história, o livro permite-nos detectar as especificidades deste processo, que ocorre em um contexto marcado por um poder público mais intervencionista, trazendo as relações dos médicos com o Estado para o centro das preocupações do congresso. A inclusão da homeopatia como uma especialidade médica oficial no Brasil exemplifica tanto o peso dos laços políticos no âmbito das profissões, resultando no aval governamental para a equiparação da faculdade homeopática, quanto a especificidade do processo local de profissionalização, que diferencia esta trajetória daquela percorrida em outros países.
A leitura de Ser médico no Brasil fornece informações relevantes para se pensar sobre pontos centrais do debate atual da sociologia das profissões, mobilizada para construir teorias mais densas sobre um fenômeno social que se alastrou no século XX. Entre esses tópicos incluem-se as relações entre profissão, Estado e política; as disputas em torno dos conteúdos da ideologia profissional; as polêmicas entre as concepções de profissão como processo ou como estratégia; a força das profissões (como autoridade cultural, poder, mandarinato ou meritocracia) ou os graus de seu enfraquecimento (o assalariamento, a proletarização, a burocratização, a desprofissionalização ou a preservação da autonomia profissional), e se os efeitos da profissionalização são benéficos ou não para a sociedade.
O autor prioriza uma abordagem histórica para construir sua narrativa, orientando-se pela bibliografia sociológica sobre profissões. Neste terreno, não problematiza os diversos modelos analíticos que toma como referência, aceitando como universal ou consensual interpretações que não são únicas e estão sujeitas a debate e a questionamentos como quaisquer outras.
Na montagem teórica desta narrativa, o conceito de profissão que adotou compõe-se dos mesmos elementos discutidos no congresso, que pretendia focalizar “tudo quanto importa ao exercício da medicina” (p. 40). Pereira Neto define profissão como a combinação de três aspectos: “o domínio de um certo conhecimento, o monopólio do mercado e a formalização de normas de conduta” (p. 37). Para esclarecer o que o termo ‘tudo’ significou para o grupo estudado, ele estabelece relação entre as características da tipologia acima e problemas focalizados no congresso, resultando na seguinte associação: “O conhecimento (‘os defeitos e os aperfeiçoamentos do ensino’), o mercado de trabalho (‘a assistência hospitalar como deve ser instalada e executada’) e a auto-regulação (‘questões de ética’)” (p. 40).
Este uso que faz do conceito, colando-o nos acontecimentos, inverte a seqüência dos eventos atribuindo à elite médica uma intencionalidade duvidosa sobre o resultado daquela trajetória. Neste momento, o autor começa a tratar o objeto de estudo (os 45 médicos relatores do congresso) como se eles dominassem os conteúdos da sociologia das profissões e estivessem seguindo passos conhecidos de uma estratégia para preservar prestígio e/ou levar à ascensão social. Os modelos teóricos que relacionaram o profissionalismo com estratégias coletivas para realizar mobilidade ascendente foram elaborados nos anos 1970, sendo Magali Larson a pioneira nesta abordagem. Trata-se de um constructo que buscou dar significado inovador a uma série de eventos transcorridos. É um olhar possível para um período marcado pela ebulição de 1968. É um momento de insubordinação social e de questionamento dos valores dominantes também no âmbito das ciências sociais. Porém, as profissões tornaram-se fenômenos sociais antes de se constituírem em objeto sociológico. Os médicos, como outras ocupações envolvidas nos processos de profissionalização que aqui se iniciaram no século XIX, viveram as incertezas e as angústias destes percursos sem conhecerem o que ia resultar. Hoje sabemos onde várias delas chegaram, mas ignoramos se vão permanecer nestas posições. Ainda conhecemos pouco sobre como trilharam esses caminhos, que atalhos ou voltas tiveram que dar para adquirir o perfil local. Nesse sentido, o estudo de Pereira Neto sobre o Congresso Nacional dos Práticos dá uma contribuição de primeira grandeza sobre um momento relevante da trajetória dos médicos no Brasil. Diante da riqueza das informações que ele reuniu, pergunto se a concepção de estratégia profissional, que desconsidera essa historicidade, atende às necessidades atuais de elaboração de modelos teóricos mais densos para a compreensão de tais fenômenos. Certamente, esta abordagem é uma referência indispensável para se pensar o problema sociológico, mas hoje, trinta anos depois, ela já não é suficiente para dar conta da diversidade de experiências de profissionalização.
Uma outra questão que o livro estimula a pensar é a do conceito de profissão. Embora existam outras definições, indiscutivelmente a que o autor escolheu tem aceitação entre os experts como reunindo três elementos que marcam as profissões: o conhecimento especializado, o monopólio de mercado e a auto-regulação. Mas o material empírico que ele articulou permite refletir sobre os limites deste conceito. Diante da dimensão que as relações com o Estado, a política e a inserção social ganharam no Brasil para incluir os homeopatas no grupo oficial dos médicos, a auto-regulação, que tendia a favorecer a exclusão proposta pelos alopatas, perde força como atributo qualificativo das profissões. Vários estudos recentes apontam a desproporção do peso que foi dado a esta característica, servindo mais como reprodução no mundo da ciência dos procedimentos de diferenciação, de construção de barreiras sociais e de exclusão de experiências culturais diversas, rotuladas como não-profissionais. Esta perspectiva concebe o fenômeno profissional como um ‘pacote completo predeterminado pelo modelo’, reservado aos países de origem anglo-saxã. A crítica a tal enfoque da sociologia das profissões ressalta como essa vertente adere mais à prática do monopólio do mercado do que à sua análise.
O estudo histórico dos processos de profissionalização no Brasil é relevante para desfazer alguns desses ‘embrulhos’ e somar conhecimento para a construção de conceitos mais sólidos e abrangentes.
Freidson (1996), por exemplo, é um dos autores que está empenhado nesta tarefa. Na busca de um consenso entre os pares que se debruçam sobre o tema, sua proposta pensa as profissões como um tipo ideal de organização social do trabalho, que se diferencia de outras formas, como a da livre-concorrência e a burocrática. O mundo do trabalho formal se organizaria sob três princípios: o do mercado, baseado na ideologia do consumo e da escolha dos consumidores; o burocrático, baseado na ideologia gerencial; e o ocupacional, baseado na ideologia do profissionalismo cujo aspecto central é servir de forma independente. O contraste entre as profissões e esses outros tipos ideais ganha evidência quando elas são analisadas sob o princípio ocupacional, dentro da divisão social do trabalho. A construção de algum consenso sobre as características que definiriam as profissões estaria relacionada com o reconhecimento das fronteiras que as separam das demais ocupações. Freidson (2001, p. 127) propõe cinco elementos interdependentes que constituiriam o profissionalismo: um tipo de trabalho especializado da economia formal, com um corpo de base teórica de conhecimento e habilidades discricionários e que receba status especial na força de trabalho; jurisdição exclusiva em uma dada divisão do trabalho controlada pela negociação entre as ocupações; uma posição protegida no mercado de trabalho interno e externo, baseada em credenciais qualificadas criadas pela ocupação; um programa formal de treinamento desenvolvido fora do mercado de trabalho, que produza credenciais qualificadas controladas pela ocupação em associação com o ensino superior; e uma ideologia que priorize o compromisso com a realização de um bom trabalho em vez do ganho financeiro, e da qualidade em vez da eficiência econômica da atividade. A variação nos modelos de Estado, a existência ou não de associações profissionais e seus diferentes padrões de organização atuariam como contingências ao profissionalismo, diversificando as experiências em relação ao tipo ideal. Entre estes dois fatores, as relações com o Estado mostraram-se muito mais relevantes do que a existência de associações para promover a auto-regulação. Em vários casos estudados pela literatura da área, observou-se que a regulamentação foi obtida através de elos entre experts e elites governantes, estabelecendo-se as leis que controlaram as credenciais do ensino superior e do mercado de trabalho. A eficácia do poder de Estado é indispensável, o que não se aplica às associações. Elas têm um peso maior na construção da identidade profissional do grupo.
Outra reflexão estimulante que a pesquisa de Pereira Neto suscita versa sobre as disputas atuais entre os perfis profissionais dos médicos. Segundo ele, uma das principais preocupações dos práticos em 1922 continua presente hoje, que é como preservar o prestígio da profissão.
Dois conteúdos distintos de ideologia profissional se polarizam nas propostas de práticas médicas para enfrentar o desafio: o que prioriza o resgate do médico de família e o que enfatiza o incremento da tecnologia, ambas homólogas às posições dos generalistas e especialistas dos anos 1920. Embora a especialização tenha conquistado o patamar de ideologia profissional dominante, os conflitos a respeito dela seguiram demarcando perfis de carreira e se revigoraram atualmente. É possível, portanto, preservar o ideal profissional de servir de forma independente, e polemizar se este serviço deve priorizar o compromisso social ou o avanço do conhecimento.
O diagnóstico que Pereira Neto faz sobre o lugar que o prestígio e o poder ocupam nas preocupações coletivas dos médicos no Brasil leva a crer que o autor se filia a uma das vertentes que concebe a profissão como força, no debate interno à sociologia das profissões. Isto mesmo depois de sabermos que os práticos não conseguiram impedir o ingresso formal dos homeopatas na medicina oficial, nem conter a expansão dos intermediários na relação médico-paciente alastrada pelos planos privados de saúde, nem impedir a burocratização da atividade e o assalariamento de parte dos profissionais. Como é possível se detectar força, poder e prestígio nessas circunstâncias?
Na visão que partilho com Freidson, é a preservação da autonomia profissional para realizar o diagnóstico, conhecimento-chave que possibilita aos médicos manter a ideologia de servir com independência, que resulta em reconhecimento social, prestígio e poder. Reside neste aspecto o diferencial que Freidson enfatiza para fundamentar a força das profissões. Para ele, embora se registre algum enfraquecimento, é nesta ideologia profissional centrada no mandato moral obtido da sociedade que as profissões se demarcam do Estado e do capital.
Outra contribuição de Pereira Neto que merece destaque é a base de dados que compõe o anexo do livro, organizando informações biográficas sobre os 45 relatores do Congresso Nacional dos Práticos. Trata-se de um acervo relevante sobre esta elite médica, disponibilizado aos estudiosos interessados na análise de trajetórias de carreira e redes de sociabilidade profissional e política.
O livro Ser médico no Brasil é leitura muito agradável, que articula forma cativante e conteúdo substantivo, ampliando o conhecimento sobre as profissões no Brasil e provocando reflexões instigantes em seus leitores. O impacto positivo das idéias que contém não merece ser ofuscado por problemas de revisão. Assim, sugiro à editora que forneça ao seu público um serviço final revisto por profissionais especializados nesta função.
Referências
FREIDSON, Eliot 2001 Professionals: the third logic. Cambridge, UK, Polity.
FREIDSON, Eliot 1996 ‘Para uma análise comparada das profissões: a institucionalização do discurso e do conhecimento formais’. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 31: 156-77.
LARSON, Magali 1997 The rise of professionalism. Califórnia, The University of California Press.
Resenhista
Maria da Gloria Bonelli – Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pesquisadora colaboradora do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (IDESP).
Referências desta Resenha
PEREIRA NETO, André Faria de. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001. Resenha de: BONELLI, Maria da Gloria. Os médicos e a construção do profissionalismo no Brasil. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.9, n.2, maio/ago. 2002. Acessar publicação original [DR]
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