Qual a melhor temperatura para a água do banho? O que fazer se ele engasgar? Se eu comer abobrinha ele vai ter cólica? Essas, entre outras perguntas e respostas, a autora Ariane Pereira buscava em leituras de revistas especializadas, desde o momento em que descobriu sua gravidez, em 2006. Dos vários periódicos com que teve contato, destacou-se a revista Pais & Filhos, publicada pela editora Bloch, a qual dedicava-se mensalmente em publicações para quem espera e/ou tem um bebê.
Quatro anos mais tarde, os discursos da revista, que soavam como um manual da maternidade, foram dando espaço para o olhar analítico de uma jornalista e pesquisadora da área de comunicação. Assim, as inquietações da autora a levaram a examinar quatro décadas de publicações de Pais & Filhos (1968-2008), resultando em sua tese de doutorado em Comunicação e Cultura, defendida na UFRJ, em 2014. As mais de 450 edições do periódico foram foco de uma investigação que teve como principal objetivo analisar como os discursos jornalísticos são capazes de moldar a sociedade de uma determinada época, construindo práticas discursivas identitárias. Com efeito, a obra de Ariane Pereira pôs em debate os modos de objetivação/subjetivação da mulher, procurando pensar acerca de como o jornalismo intervém em práticas sociais e discursivas que condicionam a constituição da mulher-mãe na contemporaneidade. Identidades maternas que ora remetem à mãe capaz de resolver todos os problemas, movida pelo amor materno, incondicional; ora a uma mãe que busca a superação a todo instante, mas caso venha a fracassar, sua identidade é marcada pela culpa.
A abordagem teórica e metodológica foucaultiana é o fio condutor que perpassa toda a obra, que se desdobra em duas partes, cada uma delas com dois capítulos, que buscam evidenciar e discutir os modos de subjetivação da mulher em mãe, do que é ser, e dos comportamentos esperados da mulher que se torna mãe. As leituras de Foucault e a aplicação de sua metodologia são as principais ferramentas que possibilitam a Ariane Pereira identificar os saberes e as forças que atravessam nosso tempo presente, pois os discursos jornalísticos da revista Pais & Filhos elaboram e reelaboram a realidade na medida em que apresentam para a sociedade maneiras de ler o mundo e posicionar-se nele.
Sob essa perspectiva, no primeiro capítulo da obra, a autora analisa um dos imperativos dos anos 2000, o aquecimento global. A partir do alarme gerado pelo documentário Uma verdade inconveniente, do ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, as maiores e principais mídias do mundo passaram a abordar com muita frequência a temática ambiental. A exemplo de Pais & Filhos, que, com uma série de reportagens sobre o cuidado com o meio ambiente, passou a criar um modelo de mãe que Ariane Pereira conceituou como Paladina do Verde. Trata-se da mãe-heroína, movida por seu amor materno, incondicional, capaz até mesmo de reverter o caos climático. Assim, os discursos do periódico passam a guiar as mães-heroínas que conduzem seus filhos a terem um melhor cuidado com o meio ambiente.
No segundo capítulo, a responsabilização da mulher mãe continua a ser analisada nas páginas de Pais & Filhos. Aqui, a figura materna é intitulada pela autora como a Heroína da Performance, pois o periódico coloca como dever da mãe prezar pelo bem-estar físico e psíquico do filho, desde bebê. Assim, a figura materna é a principal responsável pelo desenvolvimento intelectual e afetivo da criança. Para que possa se tornar uma mãe bem-sucedida e ter filhos felizes, a revista traça inúmeros diagnósticos, receituários e guias, de modo que essas mães-leitoras alcancem o máximo possível de performance e, consequentemente, o sucesso materno.
Com efeito, a discursivização da maternidade pelo periódico afirma uma constante superação, tema do terceiro capítulo da obra. Outra vez, as mães são incitadas a agirem por meio de práticas empreendedoras. Logo, não podem se deixar surpreender pelas situações de problemas do dia a dia, como por exemplo, a tristeza e a depressão pós-parto, e nem com a hiperatividade e timidez de seus filhos. Para isso, o aperfeiçoamento da mãe buscando sempre ser melhor do que no dia anterior é publicado nas páginas de Pais & Filhos, e evidenciado como superação materna quando as mães e os filhos se encontram na posição de desvantagem. As mães são instadas a vencer, num exercício de superação de si mesmas.
E se as mães fracassam nessa trajetória? A culpabilização materna é a discussão proposta por Ariane Pereira no quarto e último capítulo. De fato, a culpa é colocada na identidade da mãe que não atinge a performance esperada por Pais & Filhos. Dentro da nossa sociedade, norteada pelo neoliberalismo, ao assumir o papel de mãe, à mulher passa a ser atribuída uma série de características, responsabilidades e desafios. Os trechos recortados de inúmeras edições do periódico evidenciam a naturalização do sentimento de culpa pela mãe, ou seja, fazer com que a mãe se sinta culpada é um discurso constantemente reforçado. Portanto, associada à racionalidade neoliberal, a culpa é decorrente da autoavaliação, pela mãe, de seus atos em relação ao filho.
Dos vários resultados da obra, chamo a atenção especialmente para dois deles, perceptíveis no decorrer da leitura dos quatro capítulos. O primeiro é a relação de saberpoder, muito bem observada pela autora, visto que o discurso jornalístico na contemporaneidade se apresenta como uma voz de verdade, um dispositivo poderoso e autorizado a falar sobre todo e qualquer saber. Assim, o saber jornalístico atua sobre os leitores, exercendo poder sobre os mesmos. Trata-se de uma relação de poder que se exerce pela norma, constitui identidades e conduz condutas. A exemplo do que já foi mencionado, o poder produz uma maternidade normalizada, forjada pelos discursos de Pais & Filhos, bem como as identidades maternas de Paladina do Verde e Heroína da Performance.
O segundo ponto de destaque trata-se da característica performativa de Pais & Filhos, a “revista mensal da família moderna”, slogan da primeira capa, que desde então trouxe reportagens que ensinavam, orientavam, questionavam, alertavam e diagnosticavam. Primeiramente, os enunciados convocam as mães-leitoras a participarem e agirem no mundo. Depois, criam receituários, manuais e guias no intuito de modalizar e criar comportamentos conformes, utilizando a comunicação como forma de conduzir as ações e comportamentos das mulheres-mães-leitoras.
É importante ressaltar que os discursos jornalísticos de Pais & Filhos não tratam, de modo algum, de alienar ou manipular seus leitores, mas de produzir existência, determinados modos, ações e comportamentos. Trata-se de conduzir condutas, pois pensar o poder na perspectiva foucaultiana nos faz perceber seus efeitos. Assim, podemos dizer que os enunciados de Pais & Filhos buscam produzir subjetividades, sua atuação na vida das mulheres-mães-leitoras é capaz de influenciar significativamente a maneira como agem, sentem, desejam e convivem no meio social.
A leitura de Ser mãe é… apresenta-se como uma importante e necessária reflexão sobre os modos de objetivação/subjetivação encontrados nos periódicos, especialmente no jornalismo de revista. É um debate atual trazido por Ariane Pereira, que convida novos pesquisadores a ingressarem ao tema, ao mesmo tempo que convoca seus pares a pensarem em formas de resistência. As análises expostas no decorrer dos quatro capítulos desconstroem a maternidade naturalizada pelos discursos de Pais & Filhos, bem como ajudam-nos a pensar em novas frentes de análises sobre os mais variados segmentos e temas do jornalismo.
Os diversos trechos recordados de Pais & Filhos costuram-se com a abordagem teórica no decorrer da obra. A escrita de fácil compreensão é uma característica da pesquisadora que, sem perder a cientificidade da obra, consegue prender e instigar a atenção do leitor a cada página virada. Ainda assim, é necessário que o leitor tenha atenção sobre os períodos históricos que estão em análise, visto que em alguns momentos a autora atravessa mais de uma década analisando os discursos de Pais & Filhos e deixa de lado a contextualização histórica em que estão inseridos. Problema que pode estar ligado ao tamanho do recorte temporal escolhido para a investigação. Outro ponto que merece cuidado são os conceitos que a autora elenca em cada capítulo; Paladina do Verde e Heroína da Performance são frutos de momentos históricos específicos e não perpassam por toda a obra.
Mulher, mãe e pesquisadora, em sua obra, Ariane Pereira nos mostra um pouco de sua trajetória de vida. Além de Ser mãe é…, a autora possui outras obras publicadas, é professora adjunta do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) e coordenadora do projeto de extensão Florescer, na cidade de Guarapuava/PR, o qual é voltado à prevenção da violência contra a mulher e, também, para a conscientização, orientação e ajuda às mulheres vítimas de alguma forma de agressão. Em parceria com a Secretaria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres de Guarapuava e com a Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti), o projeto já elaborou materiais audiovisuais usados no combate ao assédio e realizou oficinas com alunos das escolas da rede municipal de Guarapuava, sobre questões voltadas à prevenção de violência contra a mulher e à equidade de gênero.
Resenhista
André Luís Andrade Silva – Mestre em História e Regiões pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO/PR. E-mail: the.andreluis@hotmail.com
Referências desta Resenha
PEREIRA, Ariane Carla. Ser mãe é… A maternidade normalizada pelo discurso jornalístico. Curitiba: Appris, 2018. Resenha de: SILVA, André Luís Andrade. PerCursos. Florianópolis, v. 21, n. 45, p. 110 – 115, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]
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