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September 11, 2001 as a Cultural Trauma | Christine Muller || How Nations Remember: a narrative approac | James V. Wertsch

Os livros September 11, 2001 as a Cultural Trauma (2017), de Christine Muller, e How Nations Remember: a narrative approach (2021), de James V. Wertsch, são obras desenvolvidas a partir duma sólida base interdisciplinar (com contribuições vindas da Psicologia, Sociologia, Antropologia, História, Ciência Política, entre outras) que abordam os temas da memória das nações e a importância de eventos traumáticos na respetiva memória. A presente resenha aos dois livros surge num momento oportuno da História Contemporânea, em que várias nações do mundo usam a memória para revisitar o seu passado, impulsionadas por derivas nacionalistas identitárias, por tentações revisionistas, ou por movimentos de contestação como o Black Lives Matter.

Passados vinte anos sobre o atentado terrorista do 11 de setembro, e depois de inúmeros artigos e livros sobre o trauma cultural associado à infame data, foi com muito interesse que analisei a obra de Christine Muller, que aborda o ataque terrorista como um case study de trauma cultural. O livro lançado em 2017 apresenta exemplos de produções culturais populares norte-americanas, em que a típica narrativa otimista e recompensadora do “sonho americano” é substituída por narrativas dominadas por crises existenciais, ambivalência moral e fins trágicos inevitáveis.

A cativante obra inicia-se com a descrição dum cenário inédito de caos, terror e mediatismo no coração do Ocidente: pessoas a saltarem das, até então, invencíveis torres nova-iorquinas para fugir da morte pelo fogo e pelo fumo; políticos, como Rudolph Giuliani, impotentes na resposta imediata aos acontecimentos; e a transmissão live pelos media que, instantaneamente, disseminam as imagens do terror por todo o mundo, escalando o trauma especialmente no Ocidente.

Muller direciona o seu trabalho para o modo como o indivíduo e o coletivo percecionam o que estão a viver e não necessariamente para a complexidade histórico-política que contextualiza o acontecimento. A análise foca-se no impacto duradouro do 11 de setembro enquanto acontecimento traumático ao nível cultural com manifestações diversas, nomeadamente nos media, literatura, televisão e cinema. São abordadas as estruturas afetivas a partir das quais são construídas narrativas de um mundo pós-11 de setembro, centrado na compreensão do evento traumático e na contrarreação ao terror. É neste mundo onde nascem as produções culturais “filhas do seu tempo”.

Primeiramente Muller apresenta três livros, que compilam vários relatos de testemunhas que viveram o ataque terrorista de perto, dos seguintes autores: Dean E. Murphy, jornalista do New York Times; Mitchell Fink, colunista do New York Daily News, e sua esposa Lois Matthias; e Damon DiMarco, escritor e ator. Muller enaltece o mérito dos relatos pelo facto de não serem contaminados por interpretações posteriores, considerando que a sua instantaneidade e subjetividade são elementos que ajudam a compreender a essência do momento vivido. Os casos apresentados por Muller são exemplificativos de obras populares dirigidas ao grande público, contendo memórias traumáticas individuais facilmente extrapoladas para a memória coletiva duma qualquer nação da mesma matriz civilizacional, no sentido em que os indivíduos que visualizam as imagens, partilham da experiência de quem o vivenciou. “… Le Monde, editor Jean-Marie Colombani declared, ‘We are all Americans.’” (Muller 2017, 39).

Seguidamente, Muller analisa duas obras do escritor Don DeLillo: o ensaio In the Ruins of the Future: Reflections on Terror and Loss in the Shadow of September e o famoso romance Falling Man. Como observa Muller, o trabalho de DeLillo revela a omnipresença da arbitrariedade e do risco na vida humana, perpetualizando o evento traumático na memória coletiva da nação norte-americana.

A autora argumenta que após o 11 de setembro os enredos de diversas produções culturais derivaram para a incerteza, insegurança e perda, como o caso das populares séries de televisão Lost, Battlestar Galactica e FlashForward – casos típicos de narrativas num momento pós-crise, que funcionam como objetos fetiche da tragédia ao manterem vivo o trauma do atentado.

Na mesma senda são apresentadas produções cinematográficas influenciadas pelo 11 de setembro. Segundo a autora, o Batman do pós-11 de setembro é uma personagem afetada pelo trauma e ambivalência moral, apesar de obediente a um código de conduta, cujo principal desígnio é o combate a um terrorista de seu nome The Joker que, tal como um membro da Al-Qaeda, não teme a morte. A ação decorre na ficcionada Gotham City – uma espécie de Nova Iorque que vive e revive o terror provocado pelas ações subversivas do mundo do crime, onde a atuação de Batman remete o espectador para a guerra ao terror protagonizada pela Administração Bush. Por fim, é evidenciado o papel de Zero Dark Thirty como ferramenta de reflexão para o espectador sobre o ataque terrorista e ações consequentes. O filme não dá respostas, ao invés coloca questões morais sobre os meios usados no combate ao terrorismo, a dignidade da vida de quem pratica o terror e a identidade moral do Ocidente em situações extremas.

A produção cultural do pós-11 de setembro foi claramente influenciada pelo ataque terrorista. Os exemplos apresentados pela autora são paradigmáticos e existem muitos outros em áreas não abordadas no livro, como na música ou nas belas-artes. Não obstante, o entretenimento negro, povoado por anti-heróis de mundos que padecem duma crise existencial e impotência face à tragédia não é um exclusivo da cultura do pós-11 de setembro; antes de 2001 podem ser encontrados todos estes elementos, designadamente em produções relativas ao Holocausto.

O livro How Nations Remember: a narrative approach é a mais recente obra de James V. Wertsch – académico prestigiado, que tem dedicado grande parte da sua pesquisa e produção científica ao estudo da memória e de narrativas nacionais. O livro, publicado no presente ano, analisa de forma clara o papel da memória na construção da identidade das nações e, simultaneamente, no conflito entre nações, a partir de narrativas dominantes sobre a interpretação do passado. O autor apresenta também estratégias e ferramentas para a melhor gestão dos conflitos decorrentes das diferentes narrativas sobre a memória. À semelhança de Yuval Noah Harari (2011), Wertsch usa um enquadramento conceptual esquemático com base na mediação simbólica, que permite aceder ao passado através da narrativa e hábitos mentais, para estudar a memória das nações.

Wertsch inicia o seu argumento considerando que a memória, constituída por uma narrativa interpretativa que enquadra e dá sentido ao passado, é um ponto fulcral de concórdia e discórdia entre indivíduos e comunidades (nomeadamente nações). Neste sentido, a memória, representativa da “verdade”, é defendida e promovida pelos Estados com meios próprios para tal.

O argumento de Wertsch revela-se particularmente relevante a partir do surgimento dos Estados-Nação, sobretudo nos séculos XIX e XX – período em que a criação das novas entidades foi enquadrada em mitos fundacionais e em narrativas que deram raison d’être às respetivas identidades coletivas. Este mecanismo da abordagem narrativa é aplicado à perceção que as nações da atualidade têm do mundo. São apresentados casos de como diferentes memórias coletivas originam diferentes (e, por vezes, opostas) visões do mundo relativamente aos mesmo factos. Um exemplo paradigmático é a diferente memória de russos e a norte-americanos sobre eventos mais ou menos decisivos da Segunda Guerra Mundial. “The opening of the Second Front in June 1944 is what Americans typically know as D-Day, a term that has no direct translation in Russian. For Russians the Second Front means a secondary front…” (Wertsch 2021, 24).

A construção e consolidação das narrativas dá-se também nas produções culturais, tal como mencionado por Christine Muller. A Batalha de Estalinegrado, durante a Segunda Guerra Mundial, é exemplificativa dum acontecimento com enorme destaque na memória coletiva russa e que, graças ao filme Enemy at the Gates e à obra do historiador britânico Antony Beevor, passou também a ocupar o lugar de batalha épica na memória do Ocidente.

Wertsch aborda diretamente a temática das narrativas das memórias nacionais apresentando diversos exemplos de como este tipo de narrativas pode inflamar conflitos entre nações, grupos étnicos ou religiosos, como observado na narrativa da Al-Qaeda face ao Ocidente no caso do 11 de setembro. Neste seguimento, o autor distingue a memória nacional da História (analítica): a memória nacional não procura a análise histórica através de evidências, mas sim mobilizar os povos, considerando templates narrativos próprios facilmente e exclusivamente percetíveis pela comunidade nacional em questão (Wertsch 2021, 85). Um dos exemplos apresentado é o template narrativo russo presente na memória nacional, relativo à necessidade de expulsão de inimigos externos decorrente das ameaças passadas de invasões do território (por parte de mongóis, franceses, alemães, etc.), ou de influências externas negativas (e.g. capitalismo ocidental), com representação nas produções culturais russas (como nas obras de Dostoievski).

O autor analisa também o conceito de seletividade na memória nacional e relaciona-o com as narrativas de eventos privilegiados – acontecimentos caracterizados por uma narrativa específica e enquadrados por um template narrativo presente na memória nacional, que impactam os indivíduos quer tenham vivido ou não esse acontecimento no espaço e no tempo (e.g. o modo como toda a população norte-americana foi impactada pelo 11 de setembro).

Para Wertsch, a memória nacional deverá ser abordada como um “processo”, mais concretamente como um dialogismo narrativo, em que a linguagem da narrativa vigente herda significados das narrativas que a constituem. Neste âmbito o autor apresenta várias as categorias de dialogismo, destacando-se os projetos narrativos nacionais, que se configuram como uma biografia da comunidade nacional que serve de guia para uma compreensão própria.

Na parte final da sua obra, Wertsch apresenta uma posição realista sobre a impossibilidade de serem ultrapassados todos os diferendos relativos às diferentes narrativas nacionais, apresentando estratégias de como gerir os inevitáveis diferendos em questão. Para além do estudo da História (de um ponto de vista analítico), o autor advoga que a análise da memória é fundamental para a compreensão do mundo presente e futuro, nomeadamente eventos traumáticos como 11 de setembro (Wertsch 2021, 189). Wertsch demonstra como memória nacional e os seus templates narrativos têm um papel cimeiro no modo como as nações lembram o passado, compreendem o presente e perspetivam o futuro. As estórias que as nações contam sobre si mesmas sobrepõem-se não só às estórias de outras nações, mas ganham também mais importância que os factos e evidências históricas, tal como descrito nos inúmeros exemplos apresentados no seu livro.

O trauma do terrorismo islâmico tornou-se parte integrante da identidade dos EUA e de todo o Ocidente, à semelhança do impacto do Holocausto na identidade judaica do pós-Segunda Guerra Mundial. A dimensão traumática está expressa na narrativa das memórias nacionais, como James V. Wertsch nos ajuda a compreender e tem uma tradução na produção cultural como demonstra Christine Muller. A reflexão sugerida pelas duas obras e a análise da atualidade, permiteme concluir que a catarse ainda não foi concluída; o trauma do 11 de setembro mantém-se com uma posição de destaque nas narrativas nacionais do Ocidente, que volta à “cena do crime” incontáveis vezes através de produções culturais.

Referências

HARARI, Yuval Noah. Sapiens: A brief history of humankind. New York, USA: HarperCollins, 2011.

MULLER, Christine. September 11, 2001 as a Cultural Trauma. New Haven, USA: Palgrave Macmillan, 2017. https://doi.org/10.1007/978-3-319-50155-0

WERTSCH, James V. How Nations Remember: a narrative approach. New York, USA: Oxford University Press, 2021. https://doi.org/10.1093/oso/9780197551462.001.0001


Resenhista

David Pimenta – Doutorando em Política Comparada no ICS – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Mestre em Gestão de Empresas pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e Licenciado em Relações Internacionais, com minor em Ciência Política, pela Universidade Católica Portuguesa. Pesquisas e interesse nas áreas de nacionalismos, identitarismos, independentismos, geopolítica e história. E-mail: davidjdpimenta@gmail.com  https://orcid.org/0000-0001-8520-3058


Referências desta Resenha

MULLER, Christine. September 11, 2001 as a Cultural Trauma. New Haven, USA: Palgrave Macmillan, 2017. WERTSCH, James V. How Nations Remember: a narrative approach. New York, USA: Oxford University Press, 2021. Resenha de: PIMENTA, David. A memória das nações e a dimensão do trauma cultural do 11 de setembro. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.2, p. 409-413, 2021. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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