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Sensibilidades e sociabilidades: perspectivas de pesquisa

Bem-aventurados os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir! Bem-aventurados os tempos cujos caminhos são iluminados pela luz das estrelas! Para eles, tudo é novo e todavia familiar; tudo significa aventura e todavia tudo lhes pertence. (Lukàcs)

Se evocássemos apenas os espaços na concepção do que é real, não tardaríamos em evocar objetos, cores, formas, sons, odores e sensações que marcam experiências vividas. Adicionados às lembranças, os sonhos fazem com que nunca sejamos apenas historiadores, mas um pouco poetas. E, nessa perspectiva, construímos uma história do sensível, dotada de características familiares, embora tudo recenda a novo.

De acordo com a epígrafe de Lukàcs, na escrita das sensibilidades tudo significa aventura e tudo lhe é inerente. Nessa aventura ocorre o reencontro entre memória e imaginário como num caleidoscópio que cria imagens pelos fragmentos das formas. Assim é também o ofício do historiador do sensível. Quando busca um sentido para o passado, ele trabalha invariavelmente em um terreno movediço, porque lida com extremos: uma constelação de dúvidas e poucas certezas E, para isso, dispõe de ferramentas específicas (cores, sabores, sons, odores, luzes e sombras), para circundar seu objeto. Enfim, as sensações constituem a matéria-prima de que ele lança mão para interpretar as cenas do passado.

Para discorrer sobre sensação, quero compartilhar com o leitor a inquietação de Carne-Ross, para quem tentar alcançar o verdadeiro sentido do passado é olhar para fora de um quarto feericamente iluminado ao entardecer:

 Parece haver algo lá fora no jardim, as formas incertas de árvores agitando-se na brisa, o esboço de um caminho, talvez o brilho da água. Ou trata-se simplesmente de um quadro pintado na janela como As fúrias, na peça de Eliot? Será que não há absolutamente nada lá fora e que o quarto iluminado é a única realidade? (CARNE-ROSS, 1969, p.241)

A incerteza do passado deixa os historiadores do sensível cada vez mais ansiosos para confirmar que tudo se deu conforme relatado. Gostamos de imaginar que aqueles que então viveram desejariam que soubéssemos o quanto tudo foi real. Assim se explica a paixão que move esses historiadores que parecem sentir uma atração fatal pela fragilidade das fontes. Fazem uma longa jornada noite adentro, debruçados sobre documentos, que, ora se revelam, ora se escondem, e os interpretam com base no seu entendimento próprio e à maneira dos sonhos.

Entre memórias, histórias e fragmentos, os ensaios que formam a coletânea “Sensibilidades e sociabilidades: perspectivas de pesquisa” – resultado dos simpósios organizados por pesquisadores participantes do IV Simpósio Nacional de História Cultural, realizado em Goiânia, no período de 13 a 17 de outubro de 2008 – revelam um outro olhar perscrutador. Desse modo, a entrada em cena de novos personagens, os novos métodos e as novas abordagens tornam-se tão necessários para responder às indagações sensíveis. Mas o que torna essa coletânea especial é a disposição dos pesquisadores em socializar com o leitor “experiências” em forma de ensaios com muitos “pontos de interrogação”. Ao evidenciar que a história é uma “ciência” em construção, a sensibilidade se aproxima – e nunca se aparta – das indagações feitas pelos nossos historiadores clássicos.

O texto que abre a coletânea trata da relação entre cinema e história, enfatizando a experiência do primeiro para a compreensão do tempo social. Nesse diálogo, há múltiplas possibilidades de pensar a materialidade expressiva do documento com os recursos da linguagem imagética.

Entre os sinais sensíveis do passado, que são constantemente recriados e re-significados, o patrimônio cultural é instituído como o lugar da memória, razão pela qual o autor do segundo texto aborda a importância da memória material para o reconhecimento identitário entre indivíduo e sociedade na trajetória temporal.

Na leitura sobre festas e personagens, a autora conduz o leitor ao sentido das comemorações oficiais e populares. A concepção de festa, multifacetada e partilhada por diversos campos do conhecimento, é apresentada como ato de criação, recriação e apropriação de templos múltiplos

Um estudo sobre a sensibilidade nas crônicas do século XIX, tendo como protagonista o escritor, conduz a uma experiência de leitura que vai buscar, na sensibilidade do narrador, a relação com o público e com o contexto, para apresentar as possibilidades de tratar a crônica – na perspectiva do sensível – na historiografia.

Outro tema presente na coletânea nos remete aos heróis na história do Brasil, através das representações em tela do pintor italiano Murilo La Greca, na primeira metade do século XX.

Na seqüência, “Teatro e fragmentos: construindo emoções, pensamentos e razões” trata da obra de Brecht, um dos principais proponentes do teatro político no século XX, e discute a relação entre razão e emoção nas concepções brechtiana e marxista.

Em “imagens audiovisuais: sensibilidades e imagens contemporâneas”, a autora aborda a multiplicação dos documentos audiovisuais, bem como o seu emprego na pesquisa e no ensino da história.

Em “Experiências musicais nas fronteiras: entre memórias e sensibilidades”, o autor discute questões relacionadas à produção popular e regional através da obra musical de Helena Meirelles.

Ainda sobre música, um ensaio discute as experiências musicais para músicos e ouvintes, com base na vivência da autora em salas de aula de música e de teatro.

O texto seguinte investiga o imaginário, a representação e a sensibilidade nos processos de Independência na América durante o século XIX. Sobre a literatura de viagens, o leitor encontrará nesse artigo reflexões teóricas e metodológicas, enfocando a questão do imagístico no século XIX.

Uma abordagem da arte nos estudos históricos é apresentada no texto “O historiador e a scinestesia: conceito e experiência na história e teoria interartes.”

Em “Uma cartografia do sensível: Giuliana Bruno”, relata-se a trajetória da arquiteta e escritora napolitana que migrou para os Estados Unidos, onde fez incursões por diferentes linguagens: cinema, arquitetura e artes visuais.

“Viveres incomuns na cidade contemporânea” é uma narrativa sobre a sociabilidade, em que se faz o contraste entre a paisagem urbana e os modos da vida rural na cidade de Florianópolis.

Em outro texto, há uma abordagem sobre territorialidades citadinas em diálogo com a concepção de espaço, cidade e homossexualidade.

Em “Sensibilidade e sociabilidade no ensino da história”, a autora apresenta reflexões a partir da sua experiência docente, pressupondo uma prática de ensino que agregue novos objetos e abordagens.

O texto seguinte enfoca as sensibilidades e a sociabilidades na história da antropologia, como ciência do patrimônio, e aborda a trajetória de Heloisa Alberto Torres no “mundo” dessa ciência.

Em “Rindo castigo os costumes: humor e política no Brasil imperial,” a autora analisa a produção humorística do caricaturista italiano Ângelo Agostini, que se tornou referência na imprensa satírica brasileira entre o final do século XIX e início do século XX.

Em suma: os autores dos textos que compõem a coletânea “Sensibilidades e sociabilidades”, mesmo escrevendo sobre os mais diversos objetos de pesquisa, deram sentido à história, porque, acima de tudo, expressaram sua preocupação com a condição humana.

Referência

CARNE-ROSS, D. S. Scenario for a new year: the sense of the past. Arion, University of Texas, v. 8, p. 241, 1969.


Resenhista

Marina Ertzogue – Doutora em História Social pela UsSP Professora do Departamento de História da UFT/ To. Co-autora do Livro História e Sensibilidades/2006. Publicado Pela FTPTO – Fundação de Pesquisa do Tocantins e Editora Parelelo 15/ Brasília.


Referências desta Resenha

IV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA CULTURAL (Org.). Sensibilidades e sociabilidades: perspectivas de pesquisa.  Goiânia, 2008. Resenha de: ERTZOGUE, Marina. Entre sinais sensíveis do passado: a escrita da história, memórias e fragmentos. Revista Mosaico. Goiânia, v.1, n.2, p.269-271, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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