Senhorios coloniais: direitos e chicanas forenses na formação da propriedade na América portuguesa | Carmen Alveal
Maria Yedda Linhares, historiadora cearense, radicada desde jovem no Rio de Janeiro, que revolucionou os estudos tanto sobre história agrária quanto história da agricultura e do abastecimento alimentício na década de 1980, afirmou certa vez que, para realizar uma análise sobre as escolhas temáticas que entrecortam a vida profissional dos que produzem história, era necessário considerar suas “linhagens historiográficas”. Nesse sentido, partindo dos enunciados que Michel de Certeau chamou, com as devidas ressalvas, de “operação historiográfica” para melhor esmiuçar as obras e quem as produz, podemos enlaçar essas duas noções – “linhagens” e “operações” – para, metodologicamente, apresentar o novo livro de Carmen Alveal.
Senhorios coloniais: direitos e chicanas forenses na formação da propriedade na América portuguesa surge no cenário historiográfico nacional mediante a emergência de um debate antigo e profundo na formação social brasileira: a estrutura fundiária nacional e os entraves das camadas populares para acesso à terra. Temática espinhosa, de longa fortuna historiográfica e alto vigor explicativo diante das “grandes questões nacionais”, que estão na ordem do dia, como: Marco Temporal das terras indígenas, latifúndios improdutivos, latifúndios monocultores voltados para o mercado de exportação de commodities, MST, grilagem, terras indígenas.
Discutir, séria e profundamente, a temática agrária no Brasil parece ter sido um labor que interessou parte da intelectualidade feminina nacional. Sem desconsiderar os sólidos e relevantes trabalhos de Costa Porto, Raymundo Faoro ou Francisco Carlos Teixeira, só para citar alguns, os problemas e os temas relativos à estrutura agrária brasileira foram sendo descortinados por diversas historiadoras que se dedicaram, em maior ou menor medida no conjunto de suas obras, mas também em gerações e núcleos formativos distintos, as temáticas agrárias. A título de exemplo, destacamos a já citada Maria Yedda Linhares (Terra prometida em parceria com Francisco Carlos Teixeira); Alice Canabrava (Terra e escravos); Ligia Osório (Terras devolutas e latifúndio); Célia Muniz (Os donos da terra); Raquel Glezer (Chão de Terras); Vera Ferlini (Terra, trabalho e poder); Laura Varela (Das sesmarias à propriedade moderna); Silva Lara (Palmares e Cucaú); Manoela Pedroza (Capítulos para uma história social da terra); Mariana Paes (Escravos e terra entre posses e títulos); Edma Silva (Sesmarias); Vanda da Silva (Administração das terras) e outras.
O livro Senhorios Coloniais, por um lado, se ampara e dialoga com todas essas obras; por outro lado, é obra devedora de muitas estudiosas comprometidas com a temática agrária na historiografia brasileira. Destacam-se, ainda, na atualidade, as obras de Márcia Motta (Direito à terra no Brasil) e Marina Machado (Entre fronteiras), que a autora partilha de espaços acadêmicos de pesquisa e produção de conhecimento, como, por exemplo, na condição de pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Proprietas, instituto do CNPq, que congrega pesquisadores de diferentes áreas, sobretudo da História e do Direito, e que se ocupa de discussões e produções de conhecimento sobre a temática da “propriedade” em seu sentido mais amplo. Foi justamente esse valoroso instituto e sua editora que publicou a referida obra.
O novo livro de Carmen Alveal é herdeiro direto de sua tese de doutoramento, defendida em 2007 na Johns Hopkins University nos EUA. Destacam-se ainda o vigor explicativo, a fecundidade temática e o atualíssimo debate historiográfico presente nas discussões pautadas na obra, que, em sua essência, buscam contribuir para a discussão sobre os direitos de propriedade no Brasil durante o período colonial, confirmando que as proposições de sua tese foram expandidas, reformuladas e aprofundadas. Sob a orientação de um dos mais brilhantes brasilianistas, o historiador inglês John Russell-Wood, Carmen Alveal demonstra ter seguido a tradição de seu mestre ao se filiar a uma linhagem intelectual do mundo luso e anglo-saxônico no sentido de produzir grandes estudos historiográficos centrados no mundo colonial português – linhagem essa que tem como expoente renomados como Charles Boxer.
Com o propósito de contribuir com o debate sobre a questão da propriedade no período moderno na América portuguesa, a pesquisa, que resultou no livro, debruça-se ainda acerca do sistema de sesmaria como a política oficial de distribuição de terras no Brasil. Nessa perspectiva, é engano acreditar que o universo de fontes documentais utilizados pela autora se restringe à análise das cartas de sesmarias do Brasil. Se fosse assim, já teríamos um trabalho de fôlego, uma vez que o livro dialoga com casos, processos e fatos presentes em alguns exemplares de cartas de sesmarias de praticamente todas as capitanias do Brasil.
O que é preciso pontuar nesse quesito é a diversidade de fontes documentais trabalhadas, proporcionalmente relacionadas com os repositórios, acervos e bibliotecas do Brasil, EUA, Portugal, França, Itália e Alemanha, a partir dos quais a autora trabalhou para a composição da obra: tratados, legislações, compilações, glosas, ordenações, forais, doações, cartas, requerimentos, pareceres, pedidos e outras tipologias documentais produzidas em sua originalidade para atender demandas do campo normativo e do direito em suas múltiplas acepções e usos. O rigor metodológico seguido no uso das fontes do direito é constatado na presença marcante das obras de António Manuel Hespanha e suas proposituras historiográficas. Não à toa, foi ele a prefaciar a obra. Infelizmente, os professores Hespanha e Russell-Wood não puderam ver o livro publicado, e a autora, muito generosamente, dedica-o à memória deles, bem como a de seus pais, também já falecidos.
Dividido em três partes com dois capítulos cada, totalizando seis, o livro de início aborda a história do sistema sesmarial em Portugal. Amparada em farta bibliografia portuguesa sobre o tema, além de variadas referências a respeito das doações e mercês no período moderno, a autora trata ainda a respeito da história da terra e da propriedade agrária na Europa moderna, e como esse processo foi relevante para a fundamentação de uma Lei de Sesmaria em Portugal e a sua aplicação nas experiências colonizadoras no Novo Mundo. É nessa primeira seção que a autora inova quanto ao debate etimológico e histórico sobre termos como “sesmarias” e “sesmeiro” e essa presença e suas regulações nos códigos jurídicos portugueses, como as Ordenações enquanto conjuntos de lei produzidos desde o medievo.
Já a segunda parte do livro discute o emprego, a adaptabilidade e o uso do sistema sesmarial no Brasil enquanto elemento colonizador. Nesses capítulos, a autora se utiliza de dados da Plataforma SILB (Sesmarias Luso-Brasileira), banco de dados que vem sendo alimentado pela autora desde o seu ingresso no quadro docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no âmbito do LEHS (Laboratório de Experimentação em História Social) que coordena há uma década. O uso de dados das sesmarias do Brasil presentes nesse banco de dados é uma das inovações importantes da autora em relação a tese original e o formato final do livro aqui discutido.
Na terceira e última parte da obra são desdobrados os conflitos de terras e as “chicanas forenses”. A partir de casos específicos, a autora analisa os embates, os argumentos e as querelas jurídicas e políticas que envolviam posseiros, sesmeiros, senhorios coloniais e a própria Coroa.
Tal pesquisa foi considerada, de acordo com a catalogação internacional utilizada pelo sistema de Classificação Decimal Dewey, como uma obra que abrange seus conteúdos entre a Geografia e a História, enfeixando temas relativos à propriedade, a terras e a demarcações. No entanto, trata-se de uma obra de História do Direito ou da Justiça. Enquanto uma boa narrativa histórica, a autora se valeu de uma acurada história social aos modos de Albert Soboul, Edward Thompson e Michel Bertrand – isso porque a história das sesmarias é uma história de indivíduos e de grupos sociais implicados em processos de solicitação ou contestação de terras e seu usufruto, englobando discursos, argumentos, interpretações e legitimidades.
O que torna esse caldo diverso, dinâmico e colorido de sentidos é a presença de sesmeiros e posseiros: homens ou mulheres, indígenas, mestiços, africanos livres, religiosos de ofício, cristãos novos ou velhos, militares de alta ou baixa patente, senhores de grandes cabedais ou indivíduos que alegavam pobreza; bem com o envolvimento em todo o processo de autoridades coloniais, ou metropolitanas, nascidas em Portugal ou no Brasil, com visões de mundo, de técnica e de contemporização da norma escrita com a praticada. O rigor conceitual perpassa toda a obra e pode ser observado na feliz escolha dos termos e conceitos, que vão sendo desenvolvidos em meio aos debates candentes ao tema principal do livro. De saída, destaco o conceito de formação empregado no subtítulo do livro e experimentado no conjunto da obra: formação da propriedade. Tributária do título original da tese, Converting land into property in the Portuguese Atlantic World, 16th-18th century, a noção de conversão de terras em propriedade é pensada a partir da ideia de uma estruturação social da propriedade que gerou ganhos para alguns e entraves para outros quanto ao acesso à terra, mas não segundo uma perspectiva estática e danosa do sistema sesmarial. A perspectiva de formação da propriedade seguida pela autora demonstra como esse sistema sesmarial, o usufruto dele por parte dos que requeriam terras e as alegações dos contrários as normativas que ele preconizava, foi dinâmico, por vezes contestado e, na maioria dos casos, negociado. Nesse sentido, o livro reclama um novo olhar sobre os impactos do sistema sesmarial na formação da propriedade e na estrutura agrária brasileira. Nem vilão, nem herói, mas manipulado, contemporizado, negociado e burlado ao sabor dos jogos de interesse dos envolvidos.
O aprofundamento teórico do conceito de formação ganha maior clareza no capítulo 4: “a real experiência das sesmarias”. Ao tratar a conceituação de “formação da propriedade” na perspectiva da “experiência”, a autora dialoga com o ponto de vista marxista de formação enquanto um desenvolvimento real e empiricamente registrável, sob a ação de determinadas condições, ou seja, é na análise da experiência do sistema sesmarial no Brasil que podemos nos aproximar de uma história da formação da propriedade a partir de exemplos concretos em que a formação da propriedade se opera no nível síncrono (no evento, no fato, nas querelas, nas chicanas), mas carrega em si seu sentido diacrônico (as adaptações e transformações históricas do próprio sistema sesmarial desde a Idade Média até o período Moderno).
Termos como “regime donatarial”, “eficácia da ordem”, “senhorialismos”, “lei de Sesmarias”, “justo título”, “chicanas forenses”, “fortunas agrárias” e muitos outros vão sendo discutidos como expressão de acuidade conceitual e organicidade de formulação perante as questões que emanam das fontes documentais e os problemas que descortinam diante da ciência histórica. Cabe ressaltar que direitos, por vezes, aparecem mesmo no plural, pelo fato de a autora ser rigorosa com a pluralidade normativa do que se analisa, seja no campo do direito comum, do direito régio, seja do direito costumeiro, do direito local ou das proposituras que emanam dos códigos jurídicos formais. Além da já citada filiação com a História do Direito ou da Justiça, o diálogo com essa área também perpassa sua formação e reflete na qualidade das narrativas relativas aos conflitos jurídicos, aprendizado vivenciado no Instituto Max Planck de História Jurídica e Teoria Jurídica na Alemanha, onde realizou um de seus estágios pós-doutoral.
Ainda sobre o rigor conceitual presente na obra, destaco um elemento de grande novidade: o uso do termo “Senhorios coloniais”. A pesquisadora se filia a uma certa perspectiva de “filosofia da história”, pouco praticada na historiografia brasileira, de produzir conceitos. Mesmo desconhecendo suas filiações teóricas no campo da história dos conceitos, arrisco dizer que a autora buscou se aproximar do rigor dos sentidos das palavras e suas possibilidades semânticas perpetrados por importantes historiadores do nosso tempo, a exemplo dos franceses Antonie Prost (As palavras) e Michel Foucault (As palavras e as coisas). Sendo assim, afirmo que a autora, ao apresentar ‘Senhorios coloniais’, tende a perscrutar o meritório caminho proposto pelo alemão Reinhart Koselleck (História dos conceitos) ao tencionar um novo conceito para os estudos da história colonial brasileira.
De acordo com o entendimento da especialista, Senhorios coloniais não eram os senhores de terra, simplesmente. Também não constituíam uma classe, já que essa consciência coletiva de classe, pelo menos enquanto grupo social, emerge na história apenas nos séculos XVIII e XIX, sendo as áreas urbanas industriais o seu principal expoente. Senhorios coloniais referem-se aos sesmeiros ou senhores de terra que autoinstituíam direitos de jurisdição não previstos em lei, mas que acabavam por forjar costumes permeados por opressão e violência rural. Senhorios coloniais representam ainda um comportamento, um entendimento de si, ou seja, uma experiência que emerge de uma sociedade corporativa e intensamente escravista na qual indivíduos reclamavam estamentos e privilégios e pautavam seu poder de mando a partir de sua avidez pela terra, transformando-a em propriedades e utilizando a posse e o usufruto para além do cultivo, mas também para o exercício político perante a sociedade colonial.
Salutar para a nossa historiografia será testar o vigor desse novo conceito. No panteão de importantes formulações contemporâneas, como “nobreza da terra” ou “elite senhorial” advindas das obras de João Fragoso e dos postulantes do Antigo Regime nos Trópicos, do qual inclusive a autora realiza pesquisa atualmente com documentos cartoriais dos séculos XVII e XVIII. Os novos estudos historiográficos poderão dar vida, forma, além de adequar melhor os “senhorios coloniais” a seus trabalhos de pesquisa, testando sua validade e justeza teórica – afinal todo conceito se articula a um certo contexto sobre o qual pode atuar, tornando-o compreensível.
Ganhou a História. Ganhou o Direito. Ganhou o leitor que, além de adquirir um livro com conteúdo historiográfico de qualidade, ainda leva um belíssimo exemplar em capa dura e designer arrojado.
Resenhista
Thiago Alves Dias – Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Universidade de Pernambuco Petrolina/Pernambuco/Brasil. E-mail: dias.thiagoa@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4308-418X
Referências desta Resenha
ALVEAL, Carmen. Senhorios coloniais: direitos e chicanas forenses na formação da propriedade na América portuguesa. Niterói: Editora Proprietas, 2022. Resenha de: DIAS, Thiago Alves. Senhorios coloniais: história, direito e a questão agrária no Brasil. Outros Tempos, v. 20, n. 35, p. 396-401, 2023. Acessar publicação original [DR/JF]