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Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX | Ciro Bandeira de Melo

Introdução

Senhores da história e do esquecimento é a tese de doutoramento de Ciro de Melo, defendida na Universidade de São Paulo em 1997. Esse estudo imprescindível para todos os que se interessam pela história do ensino de História no Brasil finalmente foi publicado pela Editora Argvmentvm. A obra enfoca a disputa política pela representação do passado brasileiro na segunda metade do oitocentos.

O próprio título sintetiza bem a principal questão do texto: o que faz um acontecimento se tornar um fato histórico? Quem escolhe – e a partir de que critérios – o que será lembrado e o que será esquecido pela posteridade? Essas perguntas nos levam ao pressuposto que antecede à discussão: não há uma “verdade histórica”, mas construções históricas do passado.

Balizado teoricamente por autores como Gramsci [1] e por ampla experiência como professor, Melo define sua posição: a escolha entre o que será esquecido e o que será lembrado depende do tipo de memória que se quer preservar. O livro didático de História é um instrumento fundamental para a divulgação em massa dessa memória, apresentada como “verdade histórica” e legitimada pelo lugar social [2] que a irradia: instituições, escolas, livros didáticos e professores. A tentativa do autor é justamente demonstrar como importantes da História do Brasil foram tratadas de modo diverso dependendo da ordem política vigente [3].

Senhores da história e do esquecimento tem como objetivo analisar duas construções diferentes da História do Brasil: uma, sob viés monarquista e outra, sob o ponto de vista republicano. O método adotado é a comparação entre dois livros didáticos de reconhecida influência [4]: a) O manual do monarquista Joaquim Manuel de Macedo, Lições de História do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio Pedro II, volumes 1 (publicado em 1860, cobrindo o período que vai do Descobrimento do Brasil até 1640) e volume 2 (publicado em 1863, cobrindo o período entre 1640 até a Independência do Brasil). b) O manual do republicano João Ribeiro, História do Brasil, curso superior, publicado em 1900. Refletir sobre as conseqüências dessas representações é também objetivo do livro, que é organizado em duas partes: 1- Os agentes; 2- Os livros.

Os Agentes

Essa primeira parte do livro comporta pequenas biografias dos principais agentes envolvidos na construção e difusão da História Nacional na segunda metade do XIX: são eles o IHGB, Von Martius, Varnhagen, Joaquim Manuel de Macedo, O Colégio Pedro II e João Ribeiro. O autor vai demonstrando como as vidas desses intelectuais e instituições se entrelaçaram, confundiram-se e influenciaram-se mutuamente, já que se passam em um lugar social comum: os restritos círculos da intelectualidade brasileira, inseridos no centro da nação – o Rio de Janeiro – , legitimados diretamente pelo Estado e pelo regime político que os acolhia.

Através destes agentes, Melo reflete sobre os contextos políticos e intelectuais que antecedem a escrita dos manuais, correlacionado- os à escrita dos mesmos. Os dois autores viviam a necessidade de legitimar os modelos políticos em que atuavam. A figura de Macedo é construída não só como autor didático, mas como literato e membro do IHGB; sua postura é tendencialmente conciliadora entre liberal e conservadora – uma constante dos intelectuais românticos no Brasil, fruto das funções oficiais de que gozavam; nota-se uma ambivalência entre o amor à liberdade e a fidelidade dinástica. Macedo acaba optando pela conciliação monárquica. Já Ribeiro é coerente em sua defesa radical da causa republicana.

Através de Ciro de Melo, o potencial difusor de “uma visão de mundo” do livro didático pode ser visto concretamente. Ele conceitua “livro didático” ou “manual didático” como “fixador de recortes que recriam e justificam a sociedade a que servem; divulgadores de ‘verdades’ cobradas como tais em salas de aula”.[5] Já a escola é vista como uma instituição que trata da cultura que se quer preservar ou ver emergir e consolidar.

Uma vez que os manuais deveriam passar pelo crivo do Estado, em nível imperial ou provincial, a escolha e o enfoque dos fatos são importantes construtores do imaginário que se quer divulgar. Por outro lado, a obrigatoriedade da leitura e a facilidade de acesso fazem com que, muitas vezes, os manuais sejam o único ponto de contato entre o aluno e a História.

Melo reflete também sobre a força instrumental dos livros didáticos; uma vez respaldado por instituições de peso, os textos escritos exercem uma força enorme sobre o aluno. A cobrança do professor sobre o que foi ensinado e sua fala confirmam a veracidade do escrito, influenciando profundamente a interpretação histórica dos alunos.

Os livros

Nessa segunda parte do livro, segue-se uma análise da fundamentação que cada autor deu à sua construção histórica. Melo dá atenção especial às periodizações escolhidas e ao número de páginas dedicados a cada um dos assuntos: O descobrimento do Brasil, Os índios, Os jesuítas, Invasão Holandesa em Pernambuco, A Inconfidência Mineira, Bahia – 1798 (não é sequer citada por nenhum deles), D. João VI no Brasil, Revolução Pernambucana de 1817, Independência do Brasil e Escravidão Africana.

A cada item analisado o ponto de vista dos autores se revela: Macedo, seguidor de Varnhagen e amigo íntimo do Imperador, tende a uma História que enfatiza os gloriosos feitos dinásticos, que os súditos devem reconhecer; na Independência ressalta-se a continuidade. A Monarquia brasileira é um fato natural oriundo da educação e costumes do povo. Já Ribeiro pensa diferente: a única forma de realizar a fundação da nação é a República – encontro da vontade do povo, verdadeiro soberano (embora, na verdade, não tenha ocorrido avanços concretos de cidadania). A Monarquia brasileira teria sido um erro desde o princípio; usurpou o poder do mameluco, verdadeiro brasileiro que foi afastado do centro de decisões [6].

O que inquieta o leitor de Ciro de Melo é justamente a demonstração cabal, nos manuais, de como determinados conceitos e enfoques foram resignificados sem maiores explicações, para serem em seguida expostos prontos e acabados, realmente como “verdades históricas”. Não há tentativas de historicização. Se, em Macedo, a Monarquia é identificada com a Constituição, para Ribeiro ela se relaciona ao Absolutismo. Ao negro e ao índio, por sua vez, sempre um papel secundário, pois ambos os regimes eram excludentes. Ambos silenciaram quanto à Conjuração Baiana, movimento republicano encabeçado pelas massas populares, por negros e pardos, que nem à Monarquia nem à República coube lembrar7. Já a Inconfidência Mineira é o momento de fundação do espírito republicano. Por que não a Conjuração Baiana ou a Revolução de 1817? Por que em nossa História os movimentos populares são repletos de silêncio e conciliação? As respostas podem ser encontradas nas próprias entrelinhas dos livros escritos pelos senhores da História e do Esquecimento.

Ciro de Melo foi extremamente feliz ao reconhecer o lugar do livro didático como instrumento de primeira ordem para a construção de visões de mundo, visto que atinge diretamente gerações de crianças e adolescentes. Tema consolidado no campo da História da educação, o manual merece maior atenção também por parte da história da historiografia. Afinal, ele pode ser inserido no movimento circular descrito por Jörn Rüsen,8 em que o conhecimento adquirido na vida prática (incluindo a educação formal) gera novas questões para a ciência especializada – no caso a História e suas instituições de construção de conhecimento, como o IHGB ou as futuras universidades. Sob esse ponto de vista, Melo arrola citações diretas de Ribeiro em obras de intelectuais de peso, especializados em História ou não, como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Fernando de Azevedo. Se o livro didático nos parece às vezes uma obra menor e mecanicista, cabe refletir sobre as conseqüências disso para uma população em massa que buscará nele o passado que deseja conhecer.

Por outro lado, uma história da recepção dos manuais em nível regional ainda está por ser feita. Ribeiro dá pistas de que esse processo de educação do povo não ocorreu sem conflitos:

Aqueles que descendem diretamente da escravidão ou da floresta viva nada tem com o passado que a prole deles, não tendo nobreza, não a estima. Nada aceitam da história, que naturalmente lhes é suspeita e indiferente. 9

Notas

1. GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. RJ: Civilização Brasileira, 1968. 253

2. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. RJ: Forense, 1982. O livro de Melo nos leva a refletir sobre outras questões: como esses lugares sociais são produzidos? Como interagem entre si?

3. Conceitos como verdade histórica, interpretação, representação, memória e identidade se relacionam às noções de luta simbólica e monopólio do discurso nessa obra.

4. Segundo o autor, o Lições, de Macedo, foi publicado até a década de 1920 (!), tendo passado por onze edições, cada uma delas com aproximadamente seis mil exemplares. Ele teria sido talvez o livro de História mais lido do século XIX. João Ribeiro não fica atrás: seu História do Brasil contou com inúmeras edições até 1960, influenciando grandes intelectuais do século XX.

5. MELO, Ciro F. de C. B. de. Senhores da história e do esquecimento, p.70.

6. Bastante interessante a observação de Ciro de Melo quanto à escolha do termo “Mameluco”, que para Ribeiro era sinônimo de “Mestiço”. Teriam entendido da mesma forma seus leitores? Segundo Melo, sua intenção foi minimizar a presença do sangue negro como parte integrante do povo brasileiro. A quem interessar, um estudo teórico sobre os atos de fala (intenções e conseqüências) pode ser encontrado em SKINNER, Quentin. “Interpretation and the understanding of speech acts”. In SKINNER, Q. Visions of politics: regarding method. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p.103-127.

7. Segundo Melo, somente em livros didáticos recentes é que a “Conjuração dos Alfaiates” ganhou algum espaço, embora tenha feito maior número de mártires que a Inconfidência: ao menos quatro foram enforcados.

8. RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001.

9. RIBEIRO, João. História do Brasil, curso primário. RJ: Livraria Alves, 1920, p.392. Citado por MELO, Ciro F. de C. B. de. Senhores da história e do esquecimento, p.166. (grifos nossos).


Resenhista

Amanda Silva Martins – Aluna do Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: amandamartinsbr@yahoo.com.br

Referências desta resenha


MELO, Ciro Flávio de Castro Bandeira de. Senhores da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008. Resenha de: MARTINS, Amanda Silva. Temporalidades. Belo Horizonte, v.1, n.1, p.253-257, jan./jul. 2009. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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