O livro que estamos resenhando pode ser considerado uma obra pioneira no Brasil e como tal será de grande utilidade para quem se interessa pela Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM)1. A contribuição do Prof. Antônio Brussi examina um conceito ao mesmo tempo fundamental e difícil da EPSM. Um conceito que usamos frequentemente – inclusive porque o Brasil parece se enquadrar muito bem como parte da semiperiferia – mas sem a preocupação de problematizar o conceito, que como Brussi procura demonstrar, tem lá seus problemas.
Immanuel Wallerstein, que prefacia o livro de Antonio Brussi, lançou a noção de semiperiferia já no primeiro volume de O Moderno Sistema-Mundo. E o fez por constatar que a economia-mundo capitalista apresentava uma zona intermediária entre os dois polos (centro e periferia), já identificados por Raúl Prebisch em 1949. Correndo o risco de não fazer justiça ao gênio de Wallerstein, nos arriscaríamos a dizer que ao apontar essa região ou posição intermediária, ele estava transplantando para a o sistema social mundial algo perceptível ou constatado em qualquer esforço de classificação ou de ordenação de uma amostra: um grupo bem afinado com o critério de classificação, outro claramente divergente dele e um terceiro que o atende parcialmente.
Na “Recapitulação teórica” do volume I de O Moderno Sistema-Mundo, publicado em 1974, Wallerstein (pg. 339) apontou a existência “áreas semiperiféricas que estão entre o centro e a periferia em uma série de dimensões, tais como a complexidade de atividades econômicas, a força do aparelho de Estado, a integridade cultural, etc.”. Essas áreas desviariam as pressões políticas que na sua ausência a periferia dirigiria contra o centro. As referências bastante genéricas à semiperiferia parecem não ter convencido Giovanni Arrighi, que tomou a decisão de verificar empiricamente a existência de tal zona intermediária e ao fazê-lo verificou “a persistência de um grupo intermediário de Estados” localizados entre o pequeno número de Estados ricos e o grande número de Estados pobres. Para fazer essa classificação, Arrighi e Drangel ([1986] 1997:190) usaram o PNB per capita e provavelmente por isso decidiram se referir à semiperiferia exclusivamente como “uma posição em relação à divisão mundial do trabalho e nunca (…) a uma posição no sistema inter-estados.” (Arrighi, Drangel, 1997:144, grifo nosso). Antonio Brussi toma este posicionamento de Arrighi para organizar sua exposição. No primeiro capítulo, intitulado “Inovação nos estudos do desenvolvimento: a perspectiva do sistema-mundo” (no singular, embora a perspectiva estude sistemas-mundo, como o faz Christopher Chase-Dunn), são apresentadas as inovações conceituais da EPSM: o capitalismo como sistema mundial e a noção de semiperiferia. A revisitação de Antônio Brussi a essa segunda inovação é realizada em três etapas. Na primeira, intitulada “A Semiperiferia como categoria política”, é reprisada a contribuição de Immanuel Wallerstein, mas com alguma inovação na nomenclatura, com a introdução da expressão “economia-mundo do capitalismo”. Merece destaque o debate sobre as condições que impedem os Estados semiperiféricos de agirem como grupo frente ao centro, após o que autor discute o tema da rivalidade entre os Estados e aporta uma valiosa contribuição ao argumentar que a uma cadeia mercantil (que ele denomina cadeia de mercadorias) ligando o centro à periferia corresponde um encadeamento de interesses, com o que as relações entre os Estados centrais e periféricos deixam de ser “primariamente marcad[a]s pela rivalidade” (Brussi, 2016:53).
A 2a .etapa da revisitação é a contribuição de Giovanni Arrighi, apresentada no 3º. Capítulo, intitulado “A semiperiferia como um conceito econômico”. Como no exame das ideias de Wallertstein, também aqui o debate centra-se no momento mais propício (fase A ou B do Kondratieff) para a mobilidade ascendente da periferia e da semiperiferia. Antonio Brussi não reluta em afirmar que essa questão “tem sido apresentada de maneira muito irregular nos estudos do sistema-mundo” (Brussi, 2016:64) e recupera o conceito de descontinuidade 2, cuja ocorrência permitiria a novos grupos/classes de um Estado semiperiférico ou periférico quebrar resistências e aproveitar condições sistêmicas para promover a ascensão desse Estado na economia-mundo. Como faz em todo o livro, o autor explora as ambiguidades de Arrighi também neste tema e o critica por desconsiderar a dimensão política da semiperiferia, pois assim procedendo estaria também ignorando o sistema interestatal, que é “o mais eficaz sustentáculo de todas as cadeias de mercadorias” (idem, pg. 65). Esse desvio é evitado, afirma Brussi, quando se considera que “uma cadeia de mercadorias se reproduz [eu diria, se expressa] no nível político como encadeamento de interesses”. (idem, pg. 66). De todo modo, parece-me que o debate sobre a descontinuidade, as pressões da economia-mundo, as instituições e a capacidade de resposta dos Estados semiperiféricos é relevante para um país como o Brasil. (ver especialmente, pg. 70 e seguintes).
Na terceira e última etapa da revisitação à semiperiferia, Antônio Brussi empreende um exercício para questionar o suposto da divisão centro-semiperiferia-periferia segundo o qual o centro abriga majoritariamente atividades inovadoras. Usa a lista as 500 maiores empresas da Revista Forbes para os anos de 1985 e 2010 e as classifica segundo a nacionalidade e o dinamismo inovador. Ainda que o critério de classificação não tenha sido informado, as 500 empresas foram divididas em inovadoras e pouco inovadoras. Em 1985 e 2010, o montante dos lucros daquelas que o autor classificou como atuando nas atividades menos inovadoras repartiu-se entre centro e semiperiferia da seguinte maneira: o percentual dos lucros apropriado pelas empresas localizadas no centro caiu de 79,5 para 53,0, enquanto a proporção apropriada pelas empresas da semiperiferia subiu de 20,50 para 47,0. Esse último resultado deve-se à inclusão da China. Portanto, os lucros das empresas menos inovadoras continua sendo importante no centro e é crescente na semiperiferia. A relevância das atividades pouco inovadoras para o centro fica comprovada pelo comportamento dos lucros. O autor verifica que nos dois anos o peso das menos inovadoras nos lucros das 500 empresas diminui no centro (de 32,0 para 28,8) e também na semiperiferia (de 32,5 para 29,0). Ou seja, as duas regiões apresentam números praticamente idênticos nos dois anos. Esses e outros cálculos levaram o autor a concluir que não se deve tomar como um dado absoluto que o centro não abriga atividades pouco inovadoras e que na semiperiferia as atividades inovadoras não são relevantes.
Esperamos ter mostrado que, em sua revisitação, além de contrapor com um olhar crítico as ideias de Wallerstein e Arrighi sobre a semiperiferia, Antônio Brussi também lançou luz sobre aspectos poucos notados do conceito revisitado. Por isso e também pelo pioneirismo, esse livro torna-se uma leitura obrigatória para quem quiser usar o conceito de semiperiferia.
Notas
1 A perspectiva de análise criada por Immanuel Wallerstein com o lançamento do volume I The Modern World-System em 1974, também é conhecida como Análise ou Perspectiva dos Sistemas-Mundo. A expressão EPSM procura tornar a Perspectiva mais próxima da nomenclatura das disciplinas acadêmicas.
2 Entendida como “desorganização de uma arquitetura politico-institucional e econômica por longo tempo prevalescente em um Estado ou região” (Brussi, 2016:64)
Resenhista
Pedro Vieira – Professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais-UFSC Coordenador do Grupo de Pesquisa em Economia Política dos Sistemas-Mundo. www.gpepsm.ufsc.br
Referências desta Resenha
BRUSSI, Antônio José Escobar. Semiperiferia: Uma revisitação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015. Resenha de: VIEIRA, Pedro. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.5 n.9, p.337-340, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]
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