Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos | Ludmila Costhek Abílio
O Brasil é, hoje, o terceiro maior mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumes e cosméticos. Segundo dados do setor, no ano de 2013, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão e à frente de gigantes como a China. A previsão é que o Brasil ocuparia, até o primeiro semestre de 2016, o segundo lugar no ranking. No Brasil, a campeã de vendas nesse setor é a Natura. A enorme quantidade de pessoas vendendo produtos cosméticos revela o crescimento exponencial desse setor. No mundo são cerca de 95 milhões de vendedoras. O Brasil tem, atualmente, 4,5 milhões. Somente a Natura tinha, em 2007, 400 mil pessoas revendendo seus produtos. Em 2014, já tinha chegado à marca de 1,3 milhões. O sucesso da Natura adveio, principalmente, da adoção, desde 1974, do “Sistema de Vendas Diretas” (SVD). As vendas nesse formato não exigem postos físicos de trabalho; elas ocorrem através de relações interpessoais, com “consultoras” que vão de porta em porta apresentar os catálogos aos clientes. Esse sistema é antigo no Brasil, mas, no último decênio cresceu de modo avassalador. O Brasil ocupa hoje a quarta posição nessa área, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e China. O volume de negócios do setor movimentou mundialmente o montante de US$ 169 bilhões em 2013; no Brasil chegou à marca de R$ 41,6 bilhões.
Vendo esses expressivos números, uma pergunta logo vem à baila: será que o crescimento do setor de perfumes e cosméticos no Brasil está sendo acompanhado no mesmo ritmo de melhorias salariais e de trabalho para os indivíduos que dele fazem parte? Será que o negócio do SVD, que vem crescendo em ritmo galopante, tem realmente gerado lucros e benefícios para os revendedores, conforme divulgam amplamente as empresas que operam nesse sistema? O recente livro de Ludmila Costhek Abílio aponta que não. Escolhendo como objeto de estudo uma das mais importantes empresas de cosméticos do país, a Natura, a autora revela que a empresa tem conquistado lucros exorbitantes adotando uma “estratégia de negócios” que acarreta inúmeras condições adversas para quem está na ponta – baixa remuneração, informalidade, indistinção entre tempo de trabalho e de não trabalho, instabilidade, precariedade, exploração do trabalho, flexibilidade, adoecimento, sofrimento, falta de reconhecimento etc. Ludmila tira a maquiagem da Natura e revela que o SVD dessa empresa é uma atividade que, sob o amparo legal, tem a aparência de um “não trabalho”, mas que, na prática, tem a concretude de um trabalho pesado, precário, extremamente extenuante, ausente de normas e de vínculos empregatícios reconhecidos, e o mais grave: “não pago”.
A pesquisa de Ludmila desnuda friamente a “contradição” que permeia a relação entre a Natura e as revendedoras: de um lado, a “visibilidade” da marca; de outro, a condição “invisível” das consultoras, que estão em toda parte, mas que não têm o trabalho reconhecido, nem visto como tal. Em outras palavras, o que fica visível na relação entre a Natura e o seu exército de um milhão de revendedoras (menos de 5% dos consultores são homens) é que muito embora essas mulheres não sejam reconhecidas como trabalhadoras pela empresa, a verdade é que sem elas os atuais lucros da Natura não existiriam. A Natura conseguiria manter o mesmo valor de mercado e a sua alta margem de lucro se assalariassem um milhão de revendedoras com direitos e garantias trabalhistas? A resposta de Ludmila Abílio é, obviamente, um “não”, pois a acumulação, o sucesso comercial e os lucros galopantes da Natura advêm justamente da exploração do trabalho, da flexibilização, da extração de valor do excedente, da informalidade, ou seja, do duro trabalho “não pago” às revendedoras.
Na primeira parte da obra, Ludmila realizou um fecundo panorama sobre os perfis socioeconômicos das “profissionais” e a relação que elas mantinham com as vendas. Para atingir o seu objetivo, a autora realizou entrevistas com consultoras das mais variadas regiões e posições sociais. Ao longo da pesquisa, Ludmila percebeu que o perfil socioeconômico das revendedoras é bastante heterogêneo, englobando estratos da classe baixa, média e alta. Ludmila apontou que as pessoas de baixa renda formam a maioria das empregadas no ramo do SVD. E o motivo não é difícil de entender. Deve-se, grosso modo, à voracidade do capitalismo que aumenta cotidianamente a fileira dos desempregados e tende a puxar para baixo o poder de compra dos mais pobres. A Natura se apresenta para muitos indivíduos como uma verdadeira “tábua de salvação”. Para as mulheres que estão empregadas no trabalho formal (domésticas, faxineiras e babás, por exemplo), a Natura é tida como um complemento de renda; já para as centenas de desempregadas, ela é vista como a única fonte de renda. O que se revela surpreendente no estudo de Ludmila é que as revendedoras de baixa renda são as que amargam, no geral, tanto os “menores lucros” como os “maiores prejuízos” decorrentes dos altos índices de inadimplência. Aqui, cabe advertir que a Natura repassa para as revendedoras todos os riscos (de estocagem e de inadimplência) envolvidos na atividade.
Assim como a população pobre, a classe média também não é homogênea. Em relação à venda dos produtos, Ludmila dividiu a classe média em dois grupos. O primeiro é constituído por mulheres que fazem das vendas sua ocupação e principal fonte de renda. São mulheres que empregam vários dias da semana e horas do dia para a venda de Natura. São mulheres que trabalham duramente para subir no ranqueamento da empresa e, assim, serem premiadas com viagens, troféus, bijuterias, cosméticos etc. As entrevistas de Ludmila revelaram que, de uma maneira geral, esse grupo é formado por mulheres que largaram sua profissão para se dedicar exclusivamente à Natura. O que torna trágico para essas mulheres é o fato de que se antes a atividade gerava um razoável lucro, hoje, devido ao aumento do número de revendedoras, muitas se arrependem de terem largado o trabalho formal.
O segundo grupo de vendedoras no interior da classe média é constituído por mulheres que não apresentam a venda dos produtos da Natura como a sua principal fonte de renda. De acordo Ludmila Abílio, 70% das revendedoras da Natura têm outra atividade principal. O que, na realidade, significa horas de trabalho para além de sua própria jornada, a banalização do “trabalho para além do trabalho”. Nesse grupo estão incluídas centenas de mulheres que vendem os produtos em seus locais formais de trabalho, mas sem maiores pretensões salariais e de carreira dentro da Natura. São mulheres, portanto, que optaram por uma dupla (ou tripla?) jornada – trabalho fora de casa, trabalho de dona de casa e venda dos produtos –, combinando a venda dos produtos com outras atividades. A existência de trabalho formal e estável possibilita que as vendas dessas consultoras sejam mais estáveis e rentáveis com pequeno índice de inadimplência. De modo geral, essas mulheres, que já detém uma profissão, não procuram se qualificar como “vendedoras” da Natura. Preferem preservar a identidade de sua ocupação principal, de seu trabalho formal. As vendas aparecem para esse estrato de mulheres como passatempo ou como uma oportunidade para consumir produtos por um preço menor, apagando-se, assim, todo o complexo e cruel processo de vendas envolto.
Além de expandir seu mercado consumidor e trabalhador para as classes baixas e médias, a Natura também alcançou estratos da elite. Há poucos anos, criou o “setor Crystal” para congregar consumidoras e vendedoras de altas rendas. Este setor funciona de forma diferente dos demais. Ao invés de 500 a 800 consultoras por cidades, a Natura destina, em média, 40 apenas por área. As consultoras são mulheres jovens, de nível superior, que vêm da elite ou circulam por ela. O ingresso ao seleto grupo se dá por meio de convites. Geralmente, a venda dos produtos não ocorre por meio do catálogo, mas através de reuniões e festas organizadas pelas vendedoras. Mas, por que mulheres de alta renda procuram essa atividade? As respostas, obviamente, são diversas: para terem maior “independência financeira”; preencherem o tempo; aumentarem o círculo de amizade com as pessoas da mesma posição social; ou até mesmo porque acreditam nos valores da empresa, sua filosofia vinculada ao capitalismo verde, que cultua a “sustentabilidade” e se apresenta como “politicamente correta”. Para muitas pessoas, a Natura representa a prova do “Brasil que dá certo!”. A análise de Ludmila Abílio em relação ao comportamento das vendedoras dessa classe social é mordaz: embora não se sintam “trabalhadoras”, todas as ações envolvidas no processo de venda dos produtos levam essas socialites desempenharem exatamente a mesma atividade pela qual as suas empregadas domésticas recorrem para complementar a renda familiar.
Na primeira parte do livro também foram trabalhadas outras questões que atingem as revendedoras da Natura, independentemente de sua posição social. A principal delas é que as consultoras raramente sabiam identificar quanto ganhavam por seu trabalho, quanto gastavam (“investiam”) com a compra dos produtos ou quanto tempo dedicavam à atividade. No geral, as contas feitas pelas revendedoras se mostravam complicadas e confusas, pois misturavam a venda dos produtos com o consumo próprio – que, surpreendentemente, se revelou, através da pesquisa, altamente excessivo, para não dizer desnecessário. E esse consumo supérfluo tem uma explicação simples: as vendedoras da Natura são constantemente envolvidas a se tornarem elas mesmas propaganda da marca. Cabe ressaltar que, além de incentivar as vendedoras a se constituírem em vitrines vivas dos artigos que vendem (na verdade, agentes não pagas pelo marketing que realizam), o estímulo da Natura ao consumo também se dá por meio de “pontuação”, com a qual a empresa encoraja as mulheres a “investirem” em maciços estoques de produtos que, na maioria, não são vendidos. Essas mulheres se constituem, assim, no dizer de Ludmila Abílio, em “trabalhadoras-consumidoras”, à medida que trabalham para consumir e consomem para trabalhar. Vale enfatizar que o trabalho de Ludmila – embora trate da relação e da situação de trabalho de um conjunto de mulheres numa empresa específica, a Natura – não deve ser entendido como mais um “estudo de caso”. O seu trabalho extrapola em muito essa definição. E este é justamente o brilhantismo da obra, que a fez ser a vencedora, em 2013, do prêmio Mundos do Trabalho, da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Na segunda parte da obra, Ludmila demonstrou claramente que a exploração econômica envolvida no SVD não ocorre de maneira acidental ou por acaso. A exploração faz parte da própria “gestão de negócios” das empresas desse ramo. Elas acumulam capital através da extração de valor do excedente, ou seja, acumulam capital através do duro trabalho (“não pago”) de seus próprios vendedores. Ludmila, ao tratar do caso específico da Natura, a insere nesse contexto mais amplo de exploração e precarização do trabalho que caracteriza hoje as políticas neoliberais. Ou seja, a autora parte do trabalho invisível, não reconhecido de mais de um milhão de mulheres para pensar na relação deste com a acumulação da Natura. A enorme disparidade entre o lucro da empresa e a “riqueza distribuída” para as consultoras fica visível, por exemplo, nos relatórios anuais da Natura. No Brasil, a receita líquida da Natura em 2014 foi de R$ 7,640 bilhões e o lucro líquido de R$ 732,8 milhões. No ranking das marcas mais valiosas em 2014, a Natura ficou em sexto lugar, superando, inclusive, a Petrobras. À frente da Natura estão apenas: Itaú, Bradesco, Skol, Banco do Brasil e Brahma. Por outro lado, essa bonança financeira não é sentida pelas trabalhadoras. No Relatório Anual de 2013, por exemplo, a companhia apresentou o rendimento anual médio de R$ 4.138 para as vendedoras, o que correspondia ao ganho de R$ 345 por mês. Vale salientar que, como toda média, esses números são problemáticos, pois as vendedoras não vendem necessariamente da mesma forma, nem a mesma quantia todos os meses, além de que existirem mulheres que pagam mais do que ganham por causa do assíduo consumo dos produtos.
No começo dos anos 1990, no auge das políticas neoliberais, diversas pessoas passaram a pregar basicamente duas teses. A primeira advogava a “inevitabilidade” das terceirizações, flexibilizações e desregulações trabalhistas para garantir a sobrevivência do “mercado”. A segunda dizia respeito à primazia do imaterial e à perda de centralidade do trabalho. Mas será que houve, de fato, um “adeus ao trabalho”? Ludmila responde que não. Para autora, é um equívoco pensar na tese do “fim do trabalho”. À bem da verdade, os trabalhadores estão todos aí em nosso redor – motoboys; atendentes de telemarketing; assalariados dos fast food; trabalhadores dos hipermercados; terceirizados de toda ordem, entre outros. É só olhar para os países do Terceiro Mundo – onde se encontram 2/3 da população mundial que trabalha – que se encontrará milhões desses trabalhadores. O momento atual representa uma “mutação do trabalho”, mas não a sua eliminação.
Os trabalhadores de hoje estão inseridos numa “nova morfologia” do trabalho que reduziu o operariado industrial de base taylorista/fordista e ampliou, a partir da lógica da flexibilidade toyotizada, contingentes de terceirizados, subcontratados, temporários e precarizados. Esse “novo proletariado” não está mais, em sua maioria, na indústria, mas sim no setor de serviços. O trabalho desse “novo proletariado”, just in time, toyotizado, está cada vez mais precário, intensificado, flexível, instável, rotativo, baixo remunerado, informal, desregulado e ausente de normas e vínculos empregatícios reconhecidos. São pessoas que trabalham por mais tempo, mais intensamente e também em formas que muitas vezes não são reconhecidas ou contabilizadas como trabalho. Ludmila Abílio, ao procurar entender como mais de um milhão de mulheres se envolveram em um negócio pouco rentável, que demanda investimento monetário e tempo e que permeia tanto o tempo de trabalho como o tempo do lazer, traz uma importante contribuição para entender a história recente do trabalho, mais precisamente a “nova morfologia” do trabalho e o seu desenho multifacetado, resultado das fortes mutações que vem abalando o mundo produtivo do capital nas últimas décadas.
Referência
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, FAPESP, 2014.
Resenhista
Rafael Leite Ferreira – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da Unibra – Centro Universitário Brasileiro. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0295848610110162 E-mail: rafaleferr@hotmail.com
Referências desta Resenha
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo; FAPESP, 2014. Resenha de: FERREIRA, Rafael Leite. O sistema de vendas diretas da Natura: O hiato entre a acumulação da empresa e a precarização do trabalho. Em Perspectiva. Fortaleza, v. 4, n. 1, p. 275-280, 2018. Acessar publicação original [DR]