Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades – NUSSBAUM (C)

NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: M. Fontes, 2015. Resenha de: CESCON, Everaldo. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 2, p. 461-466, maio/ago, 2016.

Ensinar a ser homens de negócios ou cidadãos responsáveis? Treinar para obter lucros ou educar à cultura do respeito e da igualdade? É preciso saber interpretar o mundo no qual se vive ou bastam técnicos e cientistas capazes de fazê-lo funcionar? Essas são algumas das questões enfrentadas por Nussbaum, filósofa liberal de tendência reformista e progressista com ascendência aristotélica.

A autora aborda a crise do ensino humanista que, vista em escala mundial, parece prejudicial para o futuro da democracia e das novas gerações. A corrida ao lucro no mercado mundial está dissolvendo a capacidade de pensar criticamente, de transcender os localismos e de enfrentar os problemas mundiais como “cidadãos do mundo”.

A professora de Direito e Ética na Universidade de Chicago (USA), na presente obra, leva à maturação reflexões que iniciou há pelo menos 30 anos na sua formação clássica (ela é estudiosa da filosofia grega), antes de ampliar seus horizontes de interesse à filosofia moral e política (temas que lhe são relevantes: injustiça e discriminações, direitos humanos e justiça, justiça social) com uma abordagem de teoria ética sensível ao ponto de vista feminista e, ultimamente, aos estudos de psicologia cognitiva e afetivo-relacional, etologia e neurobiologia.

Na base do seu quadro teórico-conceitual, podem-se evidenciar os seguintes pilares: a valorização inteligente de algumas emoções (especialmente as atinentes à vulnerabiliade humana: dor, desgosto e vergonha, cuidado e compaixão), que configuram uma natureza humana universal (não metafísica), não neutra ou fechada etnocentricamente,  mas respeitosa do multipluralismo cultural; uma ideia de bem humano “vaga, mas forte”, de natureza não compreensiva porque parte de avaliações diferentes sobre a qualidade de uma vida digna de ser vivida; uma lista aberta de “capacidades” fundamentais que contribuam à fundamentação daqueles princípios constitucionais, que servem para garantir, politicamente, a dignidade de cada ser humano: vida, saúde, integridade corpórea, uso dos sentidos, pensamento e razão prática, liberdade política, participação e o âmbito sobre o qual versa a obra: a educação.

A obra ilumina e esclarece a complexidade das relações existentes em torno das problemáticas que guiam e orientam o ensino para os desenvolvimentos econômico e político, portanto, sociais. Especialmente considerando as dinâmicas sempre mais invasivas assumidas a partir dos anos 1960 pela ciência e pela técnica, a filósofa analisa como o ensino e as políticas de investimento e financiamento promovem uma verdadeira e própria mudança de paradigma (a cultura humanista é substituída por uma formação baseada em disciplinas sempre mais técnico-científicas e administrativo-contábeis), até determinar aquilo sobre o qual insiste desde as primeiras linhas do texto: “a crise mundial do ensino”, nos nível fundamental, médio e superior.

Com duas citações, uma de Tagore e outra de Dewey, que lamentam a crise do ensino humanista, Nussbaum inicia a sua obra explorando o nexo formação-cidadania, que deveria constituir o eixo das democracias modernas no contexto da economia mundial, porque uma economia dividida pela ética e pela política poderia produzir mais prejuízos do que os que produz atualmente, alienando os indivíduos das próprias vocações mais elevadas para submetê-los às leis puras e simples do mercado e da tecnologia.

Não se trata de defender a superioridade de um tipo de formação sobre a outra: Nussbaum defende a irrenunciável flexibilidade mental que deriva do estudo humanista, também para quem trabalha em âmbito técnico-econômico. Adverte que estamos numa crise global, que ultrapassa o aspecto econômico. É a crise silenciosa do ensino, “de proporções inéditas e de alcance global […] que passa inobservada […] bem mais prejudicial para o futuro da democracia” (primeiro capítulo), em um contexto mundial seduzido pela maximização do crescimento econômico e pela lógica do lucro no curto prazo, a qual penetra nos conteúdos e nos métodos de ensino e aprendizagem escolares.

O fato relevante, para a autora, é que os sistemas de ensino de vários países estão abandonando, gradualmente, o ensino das artes e das disciplinas humanas em favor das disciplinas técnicas e científicas, reputadas mais idôneas para perseguir os objetivos impostos pelas políticas de desenvolvimento econômico e pelo mercado. De fato, os defensores do crescimento econômico ilimitado não somente consideram as artes e os estudos humanistas inúteis e caros – aqui está a política indiscriminada de cortes orçamentários em tempos de crise –, mas as consideram até mesmo prejudiciais, visto que, dotando os cidadãos de uma consciência crítica, constituem uma ameaça ao progresso de uma sociedade que ignora as desigualdades reais e as discriminações de todo tipo.

O livro é constituído de sete ensaios (A crise silenciosa; Ensino para o lucro, ensino para a democracia; Formar os cidadãos: os sentimentos morais (e antimorais); A pedagogia socrática: a importância do raciocínio; Cidadãos do mundo; Cultivar a imaginação: a literatura e as artes; O ensino democrático às cordas) que atravessam o dilema relativo à presumida supremacia da ciência sobre a cultura. Na realidade, um sistema educacional, privado ou desprovido dos conhecimentos artísticos e humanistas, poria em crise ou enfraqueceria a própria noção de democracia, que “está construída no respeito pela pessoa, ao passo que o modelo do crescimento só pensa em termos de agregados”. (p. 41). Para Nussbaum está em jogo o tipo de nação que queremos para as gerações futuras e o tipo de cidadão que gostaríamos de formar, para que possa desempenhar plenamente o próprio papel na sociedade. Portanto, a tarefa dos sistemas de ensino é enorme, porém, desde que eles já não tenham sido submetidos aos poderes fortes ou funcionais do chamado pensamento único. A escola pode ser uma espécie de fronteira avançada contra a submissão a tal pensamento e à intoxicação geral de cientificismo acrítico.

A argumentação socrática é o fio condutor que sustenta toda a tecitura do livro, pois, desde quando Sócrates exortava os atenienses que “uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”, a democracia sempre se fortaleceu e, com ela, as suas instituições. A ideia que cada um assuma a responsabilidade dos próprios pensamentos e mude de opiniões com outros em uma atmosfera de recíproco respeito, é essencial à solução pacífica das diferenças, seja nas nações, seja em um mundo sempre mais polarizado pelo conflito étnico e religioso”. (p. 71). Retomando o pensamento de Tagore e de outros grandes pedagogos do passado, Nussbaum atribui à cultura e à literatura um papel quase militante, que consiste em reforçar as reservas emotivas e imaginativas dos cidadãos, garantindo-lhes aquela compreensão de si mesmos e dos outros, aquela empatia que é uma “parte essencial das melhores concepções de educação à democracia”. (p. 111).

Já no ambiente escolar, se pode começar a formar cidadãos democraticamente “sãos”, ensinando aos jovens a se confrontarem com os outros respeitanto o ponto de vista deles, estimulando a sua responsabilidade, promovendo o pensamento crítico e, portanto, a coragem de discordar. “As democracias têm grandes reservas de inteligência e de imaginação”, mas a educação que tem o olho voltado exclusivamente ao mercado global produz “uma tacanhez e uma docilidade – em técnicos obedientes e treinados – que ameaçam a própria vida da democracia”.

O caso dos Estados Unidos é emblemático. A crise econômica induziu muitas faculdades a cortarem drasticamente dos currículos as disciplinas humanistas. Também outras áreas sofreram cortes: a diferença com as disciplinas humanistas é que, sendo consideradas não essenciais, parece natural redimensioná-las ou até mesmo suprimi-las. “A qualidade do saber não pode ser julgada com base no número de ‘usuários externos’ ou a nível dos ‘indicadores de impacto’”: os próprios professores deveriam fazer entender que a pesquisa deles considera “a atividade humana na sua máxima riqueza e diversidade”, e não pode ser reduzida a uma espécie de “venda porta a porta dos produtos mais comerciais”. Até agora, segundo Nussbaum, o presidente Obama “não deu sinal algum de apoio às disciplinas humanas”. Pelo contrário, elogiou os países do Extremo Oriente que “estão investindo menos tempo a ensinar coisas que não servem e mais tempo a ensinar coisas que servem. Estão preparando os seus estudantes não para a universidade, mas para a carreira”.

Aonde tudo isso nos levará no longo prazo? A ter “nações habitadas por pessoas treinadas tecnicamente que não aprenderam a ser críticas em relação à autoridade, gente capaz de dar lucros, mas sem criatividade. “Como disse Tagore”, um suicídio da alma”.

Enfim, não somente a presença de disciplinas humanistas, mas também de “aspectos mais humanistas das ciências” são fundamentais: o alvo final da polêmica de Nussbaum não é a componente científica dos currículos didáticos, mas a lógica do ensino baseada na assimilação passiva e na aprendizagem “por imposição”, exemplificada pelo célebre “O conto do papagaio”, de Tagore:1 Um rajá se convenceu de que o magnífico papagaio que possuía precisava de ensino. Assim, fez chegar eruditos de todos os cantos do seu reino. Esses homens discutiram sem fim sobre a metodologia e, sobretudo, sobre livros-texto. “Os manuais jamais serão suficientes para o nosso objetivo!”, sentenciaram. O pássaro obteve uma magnífica escola: uma gaiola toda em ouro. Os professores mostraram ao rajá o refinado método que haviam escolhido. “O método era tão estupendo que o pássaro pouco importava.” E, portanto, com o manual em uma mão e o bastão na outra, pode-se dizer que os excelentes mestres deram ao pobre pássaro uma verdadeira boa aula!” Certo dia, o pássaro morreu. Ninguém se importou por algum tempo. Os sobrinhos do rajá, entretanto, decidiram avisar o tio.

– “Senhor, o ensino do pássaro está completo.” – “Voa?” – perguntou o rajá.

– “Não!” – foi-lhe respondido.

– “Saltita?” – “Não”.

– “Tragam-me o pássaro” disse o rajá.

O pássaro foi trazido, e o rajá se deu conta de que ele estava morto e que a sua barriga estava cheia de páginas de livros.

Nota

1 A tradução é de uma história de Rabindranath Tagore intitulada “O conto do papagaio” (Tota Kahini, em bengali, ou The Parrot’s Tale, em inglês). O texto pertence ao chamado Sabuj Patra Period, de 1914 a 1918 aproximadamente, em que Tagore escreveu seus contos ficcionais mais populares, à procura de capturar as manifestações folclóricas na Bengala Ocidental e, ao mesmo tempo, elaborar um projeto pedagógico para sua gente. Como se trata de enorme dificuldade avançar sobre o texto original, em idioma Bengali, utilizei a fonte: http://www.filosofix.com.br/ blogramiro/?p=10964 Acesso em: 24 abr. 2016.

Everaldo Cescon – Doutor em Teologia. Professor na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul – RS. E-mail: ecescon@ucs.br

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