Segurança internacional no pós-Guerra Fria | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2013
A segurança é um tema estruturante para as Relações Internacionais (RI). Originariamente vinculado às perspectivas mais estritas da segurança nacional e da estratégia militar, o conceito de segurança tem passado por uma ampliação ontológica, que corresponde à diversificação do pensamento teórico no campo das RI. Passaram a compor o debate securitário questões sobre quem devem ser os objetos referentes da segurança, sobre quais são os setores da vida social onde a segurança se manifesta, sobre qual é o papel dos Estados na sua promoção ou degeneração. Em suma: a segurança tornou-se um conceito contestado de fato.
Os teóricos reconhecem que se trata de um “conceito essencialmente contestado”, isto é, há decisões políticas e normativas fundamentais envolvidas na definição da segurança (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 10; SMITH, 2005). A palavra “essencialmente” implica que essa contestação é da própria essência do conceito e, portanto, subsistiria de um ponto de vista lógico atemporal. Mas foi apenas com o relaxamento da bipolaridade estrita que a área pôde se converter em um verdadeiro campo de batalha, em si e por si: um campo de batalha teórico-político. Provavelmente, foi o medo do holocausto nuclear que reavivou a preocupação civil em torno dos assuntos antes confiados aos Estudos Estratégicos. Tornava-se cada vez mais atual a frase de Georges Clemenceau: “A guerra é um assunto demasiado sério para ser deixado apenas aos generais!”
Ao mesmo tempo, a maioria dos Estudos de Segurança parece ainda corroborar com a ênfase estadocêntrica, nacionalista e eurocêntrica, herdada dos Estudos Estratégicos. Por mais vozes dissonantes que surjam, a guerra parece ser o tema por excelência da segurança e os acadêmicos que se envolvem com a segurança o fazem frequentemente por uma inclinação para os assuntos militares. A perspectiva da segurança nacional continua movendo muitos centros de pesquisa. E a lógica westfaliana de um clube de cavalheiros disputando alegremente possessões em territórios distantes, quase como num jogo de cartas, não foi completamente abolida. Continua muito periférica a perspectiva de um Josué de Castro e sua denúncia humanista da geopolítica da fome (BRIGAGÃO, 2004, p. 15-18) e a lúgubre constatação de que o armamentismo segue sendo uma prioridade mais acentuada do ponto de vista da Alta Política.
Nesse contexto, o dossiê “Segurança internacional no pós-guerra fria” ora se apresenta com a pretensão de ser uma plataforma para o instante atual do debate securitário no Brasil. Assim, é digno de nota que a edição tenha início com a entrevista concedida pelo Prof. Dr. Antonio Jorge Ramalho da Rocha (IRel/UnB), um dos maiores especialistas em Segurança Internacional no Brasil, um dos acadêmicos cuja trajetória é mais rica em interações com o setor governamental e um incansável promotor do diálogo entre civis e militares no País. Fica registrado aqui o agradecimento, em nome da revista Monções e de toda a UFGD, pela atenção dispensada.
Foi aprovada uma significativa quantidade de trabalhos de reflexão teórica, o que indica uma salutar tendência à reavaliação dos fundamentos da produção em Segurança Internacional, como base indispensável para catapultar uma futura produção voltada mais diretamente para a solução de problemas. Nessa linha, dão início à edição, os trabalhos de Carlos Frederico Pereira da Silva Gama (PUC-RJ), Aureo de Toledo Gomes (UFU), Luiza Rodrigues Mateo (PPGRI-San Tiago Dantas) e Leonardo Paz Neves (CEBRI).
O texto de Carlos Silva Gama propõe-se abordar as falhas tectônicas (fault lines) da segurança internacional no pós-guerra fria, isto é, os pontos de atrito que foram ativados a partir da expansão vertical do conceito de segurança, atrevendo-se a assumir plenamente o desafio da (re)formulação ontológica. Com isso, discute de maneira competente conceitos-chave da subárea, tais como securitização e segurança humana.
Em seguida, Aureo Toledo Gomes traz uma análise crítica da literatura sobre operações de construção da paz (peacebuilding). A partir do reconhecimento das limitações da tese da paz liberal, Gomes ensaia o início de uma muito ansiada crítica decolonial de matriz brasileira aos estudos de segurança e relações internacionais. O resultado esperado, no longo prazo, é a completa revisão das ideias eurocêntricas que têm pautado as missões humanitárias multilaterais.
Luiza Mateo, na sequência, corrobora a necessidade de reavaliar o entendimento atual sobre a relação entre segurança e desenvolvimento. A autora apresenta uma rica análise sobre as consequências da “securitização” do desenvolvimento e a simultânea “humanização” da segurança, sobretudo a maneira como tais ideias impactam a agenda das instituições multilaterais.
E o texto de Leornardo Neves desenha o percurso histórico do surgimento da tese da responsabilidade de proteger (RdP). Etapa obrigatória para analisar a política externa brasileira contemporânea em matéria de intervenções multilaterais, na medida em que a responsabilidade de proteger tornou-se intertexto imediato da proposta de responsabilidade ao proteger, avançada pela diplomacia brasileira. O autor comenta também a reação chinesa ao conceito da RdP.
Outra expectativa em relação ao dossiê referia-se à tarefa de interpretar os cenários estratégicos que se configuram na atualidade. Após o avanço da dinâmica planetária da competição bipolar, mas sobretudo com a invenção dos mísseis balísticos intercontinentais, o mundo inteiro tornou-se um tabuleiro estratégico integrado. A globalização, notadamente do ponto de vista da segurança econômica e societal, também enfatiza a dimensão planetária da estratégia.
Um dos principais desafios, nesse nível de análise, é endereçar-se à questão da transição hegemônica, tarefa assumida por Aline Tedeschi Cunha (PPG-Ciências Sociais, UNESP). A autora traz a lume importante revisão bibliográfica, contribuindo para compreender as variáveis que determinarão as relações bilaterais entre EUA e China nos próximos anos.
Complementarmente, o texto de Cauê Rodrigues Pimentel (USP) aborda um elemento estrutural que dialoga com a ideia de ruptura histórica no fim da guerra fria: o reaparecimento de companhias militares privadas. Trata-se de mais um fator a confirmar a fragilização da ordem vestfaliana nos nossos dias. O autor oferece um perfil dos conflitos internacionais contemporâneos e explora as causas da privatização da força.
Na sequência, vêm os artigos que privilegiam o nível regional. Evoca-se a crença de que o global não é o único, tampouco o nível de análise mais importante da segurança internacional nos dias de hoje. Como afirmam Buzan e Waever (2003, p. 3), “sem a rivalidade entre as superpotências se intrometendo obsessivamente em todas as regiões, as potências locais têm mais espaço para manobra”. Para esses autores, as dinâmicas regionais tornaram-se centrais à análise securitária no pós-guerra fria. Assim, as Américas surgem como a circunstância determinante da ação política brasileira, razão pela qual se observa o interesse por compreender as dinâmicas que exsurgem da relação entre a potência hegemônica, Estados Unidos, uma potência média pouco disposta a arcar com os custos da liderança regional, Brasil, e os demais países hemisféricos, alguns em busca de preservar um campo de autonomia, como Venezuela, e outros completamente entregues ao guarda-chuva bélico norte-americano, de que é o exemplo mais óbvio talvez a Costa Rica.
A dimensão regional é objeto das apreciações de Marcos Alan Shaikhzadeh Vahdat Ferreira (UFPB) e André Pimentel Ferreira Leão e Cristiano Morini (Unicamp). Marcos Alan Ferreira analisa a cooperação para o combate ao terrorismo no Cone Sul, notadamente a evolução das instituições domésticas dos países analisados, a partir da constatação, ligada às investigações dos atentados de 11 de setembro, de que haveria atividade terrorista na tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai.
Em seguida, já fazendo a interface entre o nível regional e o nível nacional, André Leão e Cristiano Morini abordam a postura do governo brasileiro diante do Conselho de Defesa Sul-Americano. Sua análise é de que há uma “hegemonia consensual” do Brasil nesse órgão, combinação entre liderança, por meio da difusão de ideias e valores, e valorização da cooperação como meio de institucionalizar um projeto para a segurança regional sul-americana.
As reflexões sobre segurança do Brasil ficaram a cargo de Priscilla Villela (PPGRISan Tiago Dantas) e Daniel Opperman (USP). O texto de Villela aborda o tráfico de drogas como tema da agenda de segurança no Brasil, fomentando o debate sobre o significado deste problema para o País e sobre a possibilidade de classificar tal ilícito como uma ameaça à segurança nacional, notadamente diante da imposição pelos Estados Unidos de uma perspectiva de combate orientada pelo ângulo da oferta e não do consumo de drogas.
Fechando o dossiê, Daniel Opperman preenche uma importante lacuna no debate securitário brasileiro. Diante dos recentes acontecimentos de espionagem virtual norte-americana, o texto é elucidativo ao correlacionar a segurança cibernética com a governança da Internet, transitando entre a apresentação de informações técnicas e o debate político.
Chamo atenção também para a continuação da coluna de traduções da revista Monções que, neste número, traz o texto de Stefano Guzzini, intitulado em português “Uma reconstrução do Construtivismo nas Relações Internacionais”. A tradução é produto da Oficina de Tradução em Relações Internacionais, projeto de ensino sob minha coordenação. A Oficina tem o objetivo não somente de proporcionar ao público em geral a leitura em vernáculo de textos essenciais de Relações Internacionais, mas também permitir o aprofundamento e a diversificação da aprendizagem na graduação em Relações Internacionais da UFGD. O desafio foi de grande monta e teria sido impossível sem a colaboração de colegas discentes, docentes e servidores técnicos, mas sobretudo a colaboração do próprio Stefano Guzzini, que mostrou-se de uma simplicidade incomum no mundo acadêmico, dispondo-se a rediscutir passagens polêmicas e explicando outras que talvez fossem óbvias para um leitor nativo de língua inglesa.
Para concluir, vale ressaltar que a consolidação da área de Segurança Internacional no Brasil indica o amadurecimento da democracia no nosso País. Ao desvincular-se da relação quase exclusiva com o estamento militar, que caracteriza os Estudos Estratégicos e a Ciência Bélica, a Segurança Internacional contribui para que a subordinação dos militares à definição política dos interesses nacionais seja percebida como parte integrante da vida democrática normal (Soares de Lima, 2010, p. 402). Ao rememorar os 50 anos do golpe militar no Brasil, é fundamental celebrarmos a superação dos traumas que afastaram a comunidade civil da investigação dos assuntos de segurança e defesa. O pleno amadurecimento de nossa democracia demanda que os civis concordem em participar da reflexão securitária. Somente assim poderão instruir os processos decisórios sobre os objetivos que devem ser perseguidos por meio das armas militares.
Referências
BATISTELLA, Dario. La sécurité. In: D. Batistella, Théories des relations internationales. Paris: Presses de Sciences Po, 2009, p. 507-542.
BRIGAGÃO, Clóvis. Estudos e pesquisas da paz no Brasil: Uma memória. In: C. Brigagão e D. Proença Jr. (orgs.), Panorama brasileiro de paz e segurança, São Paulo: Hucitec, 2004, p. 11-44.
BUZAN, Barry; HANSEN, Lene. The Evolution of International Security Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
BUZAN, Barry; WAEVER, Ole. Regions and Powers: The Structure of International Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
SMITH, Steve. The Contested Concept of Security. In: K. Booth (ed.), Critical Security Studies and World Politics, Boulder: Lynne Rienner, 2005, p. 27-62.
SOARES DE LIMA, Maria Regina. Diplomacia, defesa e a definição política dos objetivos internacionais: o caso brasileiro. In: N. Jobim, S. Etchegoyen, J. P. Alsina (orgs.), Segurança internacional: Perspectivas brasileiras, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 401-418.
Organizador
João Nackle Urt – Doutorando em Relações Internacionais pela UNB Professor do Curso de Relações Internacionais da UFGD E-mail: joaourt@ufgd.edu.br
Referências desta apresentação
URT, João Nackle. Apresentação. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.2 n.4, p.1-5, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]