Foi publicado pela Editora Sagga, em 2019, Segredos de Estado: o governo britânico e a tortura no Brasil (1969-1976), de autoria do historiador João Roberto Martins Filho. O livro teve origem em meados de 2013, quando o autor submeteu o projeto à cátedra, perante o King´s College, em Londres, com o título “As Democracias europeias e a ditadura militar brasileira: o caso do Reino Unido”.
A obra se embasa na documentação da diplomacia do Reino Unido e traz uma enorme contribuição para a historiografia sobre as ditaduras militares na América Latina. A obra quebra alguns mitos sobre a instauração de regimes autoritários no Cone Sul. O primeiro deles refere-se ao deslocamento da temática sobre a relação entre a ditadura militar no Brasil e outros países, saindo do foco dos EUA, apesar de ainda haver muito a ser estudado sobre a participação norte-americana no Golpe de Estado e no planejamento e apoio ao regime militar. Há uma vasta lacuna sobre a relação entre o regime autoritário brasileiro e os países europeus.
Fiel à temática, o autor discorre sobre um tema sensível: a tortura. Esse mecanismo dos regimes ditatoriais trazia constrangimento à comunidade internacional. Porém, João Roberto Martins Filho demonstra que, apesar disso, as democracias europeias consolidadas mantinham as diversas formas de relações diplomáticas com esses regimes ditatoriais, ignorando ou relativizando seus excessos.
Outro ponto elucidado pelo autor que merece destaque é a posição do Partido Trabalhista Inglês sobre a ditadura, criando-se, de certa forma, um paradoxo: se por um lado os trabalhistas tentavam não se vincular com a intervenção militar no Brasil, por outro tendiam a elogiar o crescimento econômico e os acordos bilaterais entre os dois países.
Dessa forma, o livro resenhado coloca em questionamento o mito de que o Partido Trabalhista se caracterizou por uma postura crítica diante das ditaduras latinas-americanas. O governo britânico tenderia na verdade a fechar os olhos para a política interna dos países quando isso era interessante à sua economia, e não foi diferente quando o Partido Trabalhista estava no poder.
O autor que, já havia pesquisado e publicado sobre a influência francesa com sua doutrina da guerra revolucionária no pensamento das forças armadas no Brasil, estende o leque com esse novo trabalho na medida em que ele analisa a participação das forças armadas britânicas na formação do aparato de tortura utilizado pelos militares brasileiros.
Assim, o livro é uma continuidade do estudo sobre a participação das democracias europeias nos regimes ditatoriais da América Latina, em especial no Brasil. De certa forma, “Segredo de Estado” tende a questionar as teses defendidas pelo padre Joseph Comblin no clássico livro “Ideologia de Segurança Nacional”, publicado em 1977, que sustenta a tese de ser incontestável que as doutrinas que inspiraram os golpes militares “vêm diretamente dos Estados Unidos”.
A Doutrina de Segurança Nacional, para Comblim, funda-se na concepção da guerra total em três componentes: a guerra generalizada, a guerra fria e a guerra revolucionária, sendo que, durante muito tempo, o estudo do pensamento militar concentrou-se nessa doutrina, elaborada pela Escola Superior de Guerra a partir dos anos 40, com forte influência da escola norte-americana.
Martins Filho, em “Tortura e ideologia: os militares brasileiros e a doutrina da Guerre Révolutionnaire (1959-1974)”, não questiona e muito menos nega que o pensamento militar no Brasil foi influenciado pelos EUA. Entretanto, demonstra que não foi somente os vizinhos do Norte que tiveram participação na formação e assessoramento das ações militares durante a Ditadura Militar.
Dessa forma, a visão dominante sobre a relação entre ideias e práticas repressivas na América Latina dos anos 60 e 70 exposta pelo padre Joseph Comblim no seu livro A ideologia da Segurança Nacional, passa a ser relativizada com o surgimento desses novos estudos.
Fazendo um paralelo com o caso da Guerra Revolucionária, de origem francesa, essa doutrina considera que os movimentos beligerantes diferem da guerra convencional porque colocam o recurso às armas no final e não no começo do conflito. Para o autor, sua evolução pode ser explicada em cinco etapas.
A inspiração da guerra revolucionária estava voltada para combater de forma ideológica o marxismo, principalmente as teorias leninistas de organização. Na primeira etapa, os revolucionários agem sem declarar seus objetivos, preparando a população que se pretende conquistar. Na segunda etapa, efetiva- se a construção de uma rede de organizações subversivas e formam-se bases que subvertem a capacidade de ação governamental, com manifestações, tumultos e sabotagem. Na terceira etapa, a formação de grupos armados iniciam ações de menor escala, destinadas a corroer os governos constituídos. É a fase do terrorismo. Na quarta etapa, há o estabelecimento de zonas liberadas ou bases. Na quinta e última etapa, há a implantação de um governo provisório que procura o reconhecimento externo.
João Roberto Martins Filho demonstra como essa doutrina foi utilizada no regime ditatorial no Brasil em três momentos. O primeiro deles refere-se ao relatório IPM 709, que partia da idéia-força de que a “Guerra Revolucionária” é a ação comunista para a conquista do mundo. Esse relatório cita o discurso de Kruschev, intitulado “por novas vitórias do movimento comunista mundial”, de 06 de janeiro de 1961. A mesma peça procura enfatizar a centralidade atribuída pelos comunistas às guerras de libertação nacional.
As Forças Armadas passaram a utilizar os aparelhos repressivos nas ações de combate aos integrantes da luta armada após o sequestro do embaixador americano, em setembro de 1969. Depois desse episódio, a Polícia Federal e as delegacias estaduais de ordem política passaram a ser coadjuvantes no processo de repressão aos opositores do regime. Isso porque, para os norteadores dessa doutrina, a guerra tinha sido declarada.
Assim, o emprego da tortura, como principal método de combate à subversão, que teve na Argélia um precedente histórico, foi utilizado pela repressão no Brasil. O autor menciona documentos e depoimentos em que remete o caso argelino à experiência brasileira.
O caso mais paradigmático de aplicação operacional da doutrina francesa no Brasil foi a terceira campanha militar contra as forças guerrilheiras do partido comunista do Brasil em Xamboá, na região do Araguaia, que utilizou como princípio estratégico o aniquilamento de todos os adversários com o controle e o comando das operações totalmente feita pelo exército.
Voltando ao livro “Segredos de Estado”, João Roberto Martins Filho traz a contribuição na pesquisa apresentando a participação dos britânicos na prática de tortura no regime ditatorial brasileiro, demonstrando que democracias consolidadas, como é o caso da britânica, não sentiam nenhum constrangimento em apoiar práticas de violação de direitos humanos aos quais eram signatários e propagadores no direito internacional. Assim, a obra em questão coloca em evidência as contradições entre o discurso oficial de chefes de estado e sua real atuação em bastidores de regimes ditatoriais. No caso especifico, a atuação do governo britânico.
Dessa forma, a obra resenhada, além de constituir um esforço para o entendimento sobre a prática de tortura utilizada na ditadura brasileira e sua repercussão em várias esferas da sociedade e no estado britânico, tende a ser também uma contribuição para um entendimento de que a ditadura militar brasileira e sua múltiplas formas de repressão também se apoiavam em outras orientações de exércitos de democracias capitalistas, não só restringindo aos EUA, cuja parceria já era conhecida, no golpe e na consolidação da ditadura no Brasil.
O livro é dividido em 13 capítulos. No primeiro, João Roberto Martins Filho discorre sobre a ação dos diplomatas do Reino Unido para descrever os acontecimentos do A-5, demonstrando o paradoxo com que a diplomacia britânica via a situação do Brasil. Se, por um lado, a política tinha retrocesso com o avanço do autoritarismo, na economia o crescimento leva o país ao entusiasmo. É o momento em que o embaixador Sir Thomas Wentworth Russell, que fora otimista com o golpe, começa a fazer suas ponderações e começa a perceber que se torna obrigado a enviar para o governo do seu país uma visão mais real do que acontecia no Brasil.
A ditadura se consolidava, para ele diferentemente da grega, já que na América Latina as forças armadas sempre foram atores preponderantes nos regimes políticos. Como demonstra João Roberto Martins Filho, a opinião publica inglesa não tinha estas informações. Além disso, o cidadão comum britânico estava muito pouco preocupado com o que acontecia no Brasil. Nos dois capítulos seguintes, o autor vai mencionar sobre a luta armada que enfrentava a ditadura, bem como forma de enfrentamento feita pela ditadura aos grupos de guerrilheiros.
A partir do quinto capítulo, o autor aborda o processo de distensão do Governo Geisel, momento em que o Partido Trabalhista volta ao poder no governo britânico. Nessa época, crescia a crise na economia, e a impopularidade do regime era crescente. Além do extermínio das esquerdas armadas, que fazia com que, para os países capitalistas centrais, o regime perdesse sua função e passasse a ser questionado no exterior.
É nesse momento que a tortura vai se evidenciar como prática abominável e de certa forma denunciada por setores da Igreja e jornalistas estrangeiros. A repercussão desses acontecimentos na Inglaterra é abordada na obra em questão, merecendo destaque a morte do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI (Destacamento de Operações e Informações) do CODI (Centro de Operações de Defesa Interna), órgãos ligados ao Exército. O acontecimento mereceu cobertura de vários jornais ingleses, entre eles o Times, conforme analisado na obra em tela.
Nos dois últimos capítulos, intitulados respectivamente de As cobaias e Testemunhas, o autor vai mencionar as técnicas de tortura ensinada pelos britânicos ao aparelho repressivo no Brasil. Entre elas, a técnica do Ulster, utilizada pelas forças armadas britânicas nas suas ações nas guerras coloniais. Além disso, o livro traz dados mais precisos de como essa prática foi utilizada no Brasil.
Vale salientar que João Roberto Martins Filho não foi o primeiro pesquisador a utilizar os arquivos diplomáticos do governo britânico para analisar a ditadura brasileira. O jornalista Geraldo Cantarino tem três obras valendo-se desta mesma documentação. Entretanto, o mérito do já consagrado historiador brasileiro nessa empreitada é demonstrar como uma das democracias mais consolidadas do mundo ocidental vai não só fazer vistas grossas para regimes que violavam profundamente os direitos humanos, como também contribuíam com esses regimes na abominável prática de tortura aos seus opositores políticos.
A obra em questão deve ser lida por aquelas pessoas que queiram ter um melhor entendimento sobre o que foi o regime ditatorial brasileiro em suas múltiplas faces, demonstrando como as ações sigilosas não eram dádivas internas de governos autoritários. Mesmo democracias solidificadas tendem a tratar com segredo parcerias feitas com esses governos. A revelação disso é uma das contribuições de “Segredo de Estado”, o qual revela que nem mesmo a Anistia Internacional, com sede em Londres, e próxima da diplomacia britânica, tinha ciência do auxílio do governo com os generais brasileiros em uma prática que era a razão desta instituição existir, qual seja, o combate à violação dos Direitos Humanos.
Por último, o livro em questão permite-nos concluir que a Inglaterra contribuiu para implantar o sistema de repressão e tortura da ditadura brasileira. Isso, por si só, já demonstra uma das importâncias de sua publicação.
Resenhista
Manoel Reinaldo Silva Rego – Professor de História da Rede Municipal de Ensino de Vitória da Conquista e mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia, UFBA.
Referências desta Resenha
MARTINS FILHO, João Roberto. Segredos de Estado: o governo Britânico e a tortura no Brasil (1969/1976). Salvador: Sagga Editora, 2019. Resenha de: REGO, Manoel Reinaldo Silva. A ditadura que os ingleses contribuíram. Perspectiva Histórica. Salvador, v.10, n.15, p. 139 – 144, Jun./jul. 2020. Acessar publicação original [DR]
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