Samba, caneta e pandeiro: cultura e cidadania no sul do Brasil | Karla Rascke Leandro
Construída enquanto ilha turística de Santa Catarina, um pedacinho da Europa e lar de uma açoraneidade, Florianópolis, é desvelada historicamente em Samba, caneta e pandeiro: cultura e cidadania no sul do Brasil através de fragmentos e marcas da presença de africanos e seus descentes. Suas experiências cotidianas, formações associativas, projetos de cidadania e manutenção cultural, são apreendidas frente a uma sociedade racializada e marcada pelos estigmas da escravidão, findada com o regime republicano, pautado nos ideais de progresso e civilização.
Em uma narrativa a contrapelo, menos do ponto de vista dos vencedores e mais pelo lócus das lutas, embates e disputas em torno de um cotidiano citadino, a historiadora Karla Leandro Rascke empreendeu esforços notórios numa pesquisa sobre agremiações organizadas por afrodescendentes na capital catarinente, entre os anos 1920 e 1950. O livro é oriundo da sua tese de doutorado que buscou investigar como diferentes associações de origem africana (clubes recreativos; blocos, cordões, ranchos e escolas de samba; grupos de cacumbi; irmandades religiosas; clubes de futebol; comunidades negras) empreenderam ações e articulações de solidariedade e sociabilidades.
O trabalho da pesquisadora também é fruto de sua inserção intelectual em torno dos estudos das temáticas das populações de origem africana no Brasil. Rascke formou-se em História (2010) pela Universidade do Estado Santa Catarina – UDESC onde atuou como bolsista em projetos de pesquisa e extensão do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB/UDESC). No mestrado (2013), realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, sua dissertação deu continuidade aos estudos desenvolvidos no TCC sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, de Florianópolis durante o período de 1888 a 1940 1.
Ampliando questões, temas e período, no doutorado, a autora preocupou-se com as formas de organização, estratégias de atuação política, combate ao racismo, festividades e encontros de culturas de origem africana. Seus objetivos permeiam o rastreio de sinais de reatualizações culturais e mobilizações em territórios negros, apreendendo aspectos sociais, políticos e culturais em torno das expectativas de cidadaniaa, projetos de vida, e de agrupamentos de sujeitos afrodiaspóricos.
Um elemento central no debate trazido na obra, é a ideia de diáspora africana para compreender as novas reorganizações e relações de solidariedade articuladas por afrodescendentes em torno das demandas por moradia, educação, espaços e práticas culturais no pós-abolição. Para a pesquisadora, os povos da afrodiáspora incorporam elementos em contatos com outros códigos culturais, e assim “refizeram e reatualizaram memórias por meio de religiosidades, ritmos, sons, danças e performances, reinventando identidades e reconstituindo humanidades desde ambientes de cativeiro a que foram submetidos” (RASCKE, 2019, p. 14).
A perspectiva da autora enquadra-se numa bibliografia apropriada e assertiva aos estudos da temática africana no Brasil efetuados nas últimas três décadas vinculadas ao campo dos Estudos Culturais. Sua abordagem permitiu formular interpretações mais possíveis e dignas das experiências em torno de mudanças sociais e culturais, a partir de rupturas com ideais tradicionais de cultura, apreendendo para além da classe, as dimensões de gênero e raça. Igualmente, essa área cumpri seu papel do ponto de vista metodológico, ao contribuir nas tratamento as diferentes fontes impressas (jornais, periódicos, revistas, correspondências, fotografias, poemas e canções) de acervos de memória da cidade de Florianópolis e do estado de Santa Catarina utilizados por Rascke.
Por outro lado, a obra também traz um contraponto ao analisar e rediscutir a historiografia catarinense produzida e consolidada em torno de memórias que excluem e invisibilizam a presença e a atuação de grupos socioculturais de origens africanas, trazendo numa leitura abrangente, recentes análises e demandas do campo dos estudos do pós-abolição no Brasil. Estas pesquisas, segundo ela, formam uma diversidade de estudos, que abordam a temática do pós-abolição em Santa Catarina sob uma perspectiva do “protagonismo negro”, com produções que têm compreendido personagens, agenciamentos políticos, conexões sociais, fluxos culturais e interlocuções raciais.
O cuidado com os conceitos, categorias e termos também é algo fundamental para a pesquisadora. Devido a uma multiplicidade de associações e sujeitos históricos estudados, Racke trabalha com a noção de afrodescendentes ou populações de origem africana, não no sentido de raça, mas enquanto grupos populacionais com suas perspectivas de cultura e organização social, evitando ideias em torno de uma homogeneidade e ideologia “Ao pensar em populações de origem africana, despertamos para possibilidades mais amplas, podendo inserir e tentar vislumbrar diferentes povos e experiências” (2019, p.23)
No intendo de ampliar os debates e lançar novos desafios em termos de pesquisas deste campo de conhecimento, é interessante ressaltar, que a historiadora soma ao rol de justificativas, sua preocupação relacionada as questões contemporâneas que afligem as populações negras brasileiras:
Parece-nos que a preocupação do(a) historiador(a) e seu papel político e social estão mais requisitados e importantes ainda nestes tempos sombrios de limitação de direitos. Neste sentido, esta tese constitui ainda um projeto de vida e coletivo de aspirações e anseios que sonhamos quando os ventos sopravam em prol das políticas de promoção da igualdade racial, de gênero e de classe. (RASCKE, 2009, p. 23)
O livro de Rascke é composto por quatro capítulos, cuja analise se dará sobre um grande quantitativo e qualitativo material arquivístico, composto pelo: acervo do Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, em especial anuários, periódicos, relatórios de governadores e interventores do estado Santa Catarina e correspondências; documentação de constituições, documentos manuscritos e impressos sobre Florianópolis do acervo da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Centro de Memória); fotografias, documentos manuscritos e impressos do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC); obras literárias disponíveis para consulta no Setor de Obras Raras da Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); obras literárias e documentos pessoais e púbicos que constituem acervo de família, materiais cedidos por terceiros; jornais e periódicos contidos na Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina no acervo de Obras Raras; e Livro Atas das associações.
No primeiro capítulo a autora aborda aspectos políticos da cidade de Florianópolis e do estado de Santa Catarina, envolvendo questões como as reformas urbanas, os impactos no cotidiano da vida das pessoas, as transformações em torno da brasilidade e o Estado Novo, bem como as elites dirigentes em nosso estado e suas formas de governar, dimensionando articulações e redes mobilizadas por afros também junto a elas.
Já o segundo capítulo, adentra com maior ênfase no estudo das agremiações, transitando no universo das letras, as associações de homens de cor e suas preocupações com a educação, destacando também algumas trajetórias de intelectuais na história da cidade, que nem sempre foram conhecidos e devidamente referenciados.
O capítulo terceiro enreda-se nas vivências dos clubes recreativos, organizações de origem africana fundadas como meios de afirmação social, momentos de lazer sociabilidades e discussões pautadas nas demandas de seus agremiados. A autora destacou o perfil de algumas associações e seus objetivos, onde através de atas de clube e notas de jornais do período, evidencia elementos de uma proposta de visibilidade positiva para estas populações que, mesmo passadas décadas da Abolição, ainda sentiam os efeitos cotidianos do racismo aliado a heranças e marcas da escravidão.
No quarto e último capítulo, ela lança um olhar sobre formas públicas de expressão cultural e artística, por meio de blocos carnavalescos, cordões, ranchos, cacumbis e escolas de samba. Rascke abora que durante o Estado Novo e nas décadas seguintes, homens e mulheres afros alcançaram meios e ferramentas políticas, sociais e artísticas para movimentar a cidade com ritmos, tons e performances de matrizes afros, o qual ocorre uma reatualização dos usos do espaço público e a construção de uma visibilidade positiva.
No fazer historiográfico, pesquisadores lhe dão com uma série de percalços no caminho. Com Rascke não foi diferente, em vários momentos no livro a autora deixa claro as dificuldades de recompor determinado processo ou evento histórico ligada as organizações afrodescendentes desse período. A ausência de documentos e mais informações de episódios estudados acabam deixando menos respostas do que perguntas à historiadora. Ao narrar, por exemplo, que a União Recreativa 25 de Dezembro, clube recreativo de Florianópolis, ao organizar os festejos do carnaval de 1950, contratou músicos e recebeu cadernos de música da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (SBACEM), instituição que arrecada os direitos autorais de execução pública musical no Brasil, surgida em 1946, no Rio de Janeiro. Com a intenção de conhecer e analisar as músicas que seriam tocadas nas festas, Rascke afirma:
Infelizmente, não dispomos de informações sobre o conteúdo desses livros, nem quais seriam as músicas neles constantes, seus ritmos, orientações sonoras, letras, qualquer indicativo de sua qualidade e documentação. Não há registros sobre o processo de recebimento, se doação ou compra pela agremiação. Incumbe refletir sobre os motivos que levaram a União a receber esse tipo de material. (RASCKE, 2019, p. 164)
A obra de Karla Leandro Rascke compõe-se de uma rica e extensa pesquisa sob inúmeras possibilidades temáticas significativas e caras a recomposição do passado histórico das populações de origem africana no Brasil. Indico, não apenas aos pares historiadores e professores de História, mas igualmente, a todos/as aqueles/as interessados em conhecer experiências nacionais para além das belas narrativas oficiais permeada de heróis e suas conquistas. Nesta produção historiográfica cuidadosa e zelosa, o leitor irá perceber sonhos, disputas, articulações, vontades, lutas e ações empreendidas por atores sociais comuns no cotidiano da primeira metade do século XX em nosso país.
Nota
1 O TCC da autora intitula-se “Resolveo a Mesa que pelo menos houvesse huma missa resada”: Festas, procissões e celebração da morte na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos em Desterro/SC -1860 a 1890. No mestrado sua dissertação intitula-se “Divertem-se então à sua maneira”: festas e morte na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, Florianópolis (1888 a 1940).
Resenhista
Ana Júlia Pacheco – Mestra em História. Doutoranda no Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH/UFRGS). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5800-4862
Referências desta Resenha
RASCKE, Karla Leandro. Samba, caneta e pandeiro: cultura e cidadania no sul do Brasil. Curitiba: CRV, 2019. Resenha de: PACHECO, Ana Júlia. Cidadania e sociabilidades: populações de origem africana em Florianópolis/SC (1920-1950). Projeto História. São Paulo, v. 71, p. 394-399, mai./ago. 2021. Acessar publicação original [DR]