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Salazar: uma biografia política – MENESES (Tempo)

MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar: uma biografia política. 3. ed. Lisboa: D. Quixote, 2010. Resenha de: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. A monografia de um tempo português. Tempo v.17 no.31 Niterói  2011.

Em 2007, a RTP (Rádio e Televisão de Portugal) promoveu um concurso intitulado “Os Grandes Portugueses”, a fim de escolher o nome mais representativo de sua história. Concorrendo com personagens da grandeza de Camões, Vasco da Gama e Fernando Pessoa, entre outros, o ditador do Estado Novo Oliveira Salazar saiu vencedor com pouco mais de 40% dos votos.12

A despeito de sua “representatividade”, Salazar ainda não havia sido objeto de um trabalho acadêmico rigoroso. A lacuna foi, entretanto, preenchida com a chegada do estudo de Filipe Ribeiro de Meneses.

Publicada originalmente para um público não português, a obra consiste em um aprofundado estudo que integra as vidas pessoal e pública de um professor de Economia, católico e solteirão que incorporou para si a tarefa de fazer os portugueses viverem habitualmente, conforme disse ao pensador católico francês Henri Massis. O viver projetado por Salazar consistia em uma ditadura alheia às aventuras revolucionárias dos fascismos clássicos alemão e italiano ou mesmo do militarismo de pendor cesarista de seu vizinho espanhol. Filipe de Meneses consegue perceber os importantes traços de continuidade entre o filho de Santa Comba Dão, o ex-seminarista que, quando ingressou como professor da Universidade de Coimbra, apresentou uma tese defensora da pequena propriedade agrícola, e o chefe de governo que nunca deixou de afirmar a superioridade do campo sobre a cidade, esta lugar dos “vícios dissolventes” da tradição portuguesa.

Filho caçula de uma família pobre, com quatro irmãs, Salazar estudou no seminário de Viseu. Destacado aluno, ingressou na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1911. Dessa época o livro aponta para relações de amizade que permaneceram ao longo de toda a vida do futuro ditador, como Mário de Figueiredo e Manuel Gonçalves Cerejeira, o futuro patriarca da Igreja Católica em Portugal.

Militante na Universidade do Centro Católico, Salazar foi sempre fiel aos valores legados de um pensamento social católico que tem na Encíclica Rerum Novarum a sua principal referência. Foi, por isso, um forte opositor tanto do liberalismo e da democracia parlamentar quanto do comunismo e dos movimentos socialistas. Seu projeto político-ideológico sempre foi a constituição, em Portugal, de um regime centralizado e fiel às tradições que, a seu ver, marcam a formação portuguesa: um catolicismo marcado por uma forte vocação messiânica, cruzadista e expansionista.

O livro é rico em exemplos que demonstram a capacidade de Salazar em mediar com interesses conflitantes no seio do regime autoritário. Como ministro das Finanças, arquitetou a transição de uma ditadura militar para uma ditadura civil e corporativa sob o seu controle. Mantendo sempre um militar na presidência, não deixou de acalentar as esperanças dos monarquistas ávidos pela mudança do regime. Na montagem do governo, incorporou à sua máquina republicanos conservadores, católicos e até mesmo militantes do integralismo lusitano, a versão portuguesa do fascismo. Nesse caso, sobretudo, trouxe para a esfera da administração jovens universitários que, em breve tempo, teriam espaço e importância crescente no regime, como Pedro Teotónio Pereira e Marcello Caetano. Ciente do complexo leque de alianças que o apoiava, Salazar dissolveu o Centro Católico e criou um partido único, um “não partido”, de acordo com suas palavras, a União Nacional. A constituição aprovada em 1933, corporativa e autoritária, manteve, entretanto, um verniz liberal quer na permanência de uma Câmara, aliás duas, se contarmos a Câmara Corporativa, quer na eleição, por sufrágio universal, do presidente da República.

Apesar da preocupação em analisar a vida privada de Salazar, o livro cresce nos momentos em que relata as crises vividas pelo Estado Novo português e as medidas tomadas por Salazar. Como durante a Segunda Guerra Mundial, quando a incerteza a respeito da continuidade do Estado Novo era motivo de euforia para seus opositores e preocupação para seus adeptos. Naquela conjuntura, Salazar adotou uma política de neutralidade, ao mesmo tempo em que envidava todos os esforços para impedir que a vizinha Espanha aderisse ao conflito. Neutralidade que, entretanto, não impediu a cessão para os Aliados da Base Militar dos Açores. A estratégia do ditador garantiu a entrada imediata de Portugal na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e a continuidade do regime no pós-guerra. No final da década de 1950, novo período de instabilidade, com a campanha à presidência da República de Humberto Delgado. Uma campanha de massas, “à americana”, estranha e incômoda ao regime. Também na década de 1950, Salazar se viu obrigado a mediar as disputas entre setores “conservadores”, sob a liderança de Santos Costa, e “modernos”, capitaneados por Marcello Caetano.

Mas foi na década de 1960 que o “caldo” começou de fato a entornar. Os estudantes saíam às ruas e misturavam reivindicações tanto acadêmicas como políticas. Nas relações diplomáticas, a Europa tornava-se um parceiro cada vez mais constante, relativizando a natureza atlântica, tão cara aos adeptos do Estado Novo. Mas, sobretudo na África, os movimentos de libertação começavam, em 1961, a defender a ruptura com a antiga metrópole. Apesar de tentativas de mediação por parte das diplomacias americana, brasileira, espanhola ou mesmo do Vaticano, Salazar recusava-se a ceder ou mesmo negociar. “Estamos cada vez mais orgulhosamente sós”, foi o que disse em resposta às insistentes pressões internacionais. Em 1968, ano em que sofre o acidente caseiro que o impossibilita de continuar a governar, a guerra colonial já não tinha retorno. Com ela, o país vê seus braços partirem. Para o ultramar alguns. Para a França ou para o Brasil outros. Que se a participar de um conflito que não compreendiam e não aceitavam, pelo menos não a ponto de se alistarem na tropa. Um paradoxo: o ditador recusava-se a mover qualquer palha em um país que já não vivia mais “habitualmente”. Essa última década de vida política de Salazar foi também a que sofreu mais questionamentos, inclusive internos. A recusa de ceder no caso africano reproduzia-se também na relação com o poder. Cedê-lo pressupunha a possibilidade de ser criticado por sucessores. Nesse caso, a aparência franciscana podia também ser confundida com arrogância e alhea-mento para com os outros.

Disse Gramsci que a trajetória de um homem pode ser a monografia de seu tempo. O livro de Filipe Ribeiro de Meneses, sólido, erudito, bem-documentado, é uma referência obrigatória para o entendimento da recente história portuguesa.

Francisco Carlos Palomanes Martinho – Professor do Departamento de História da USP e pesquisador do CNPq.

 

 

 

MENDONÇA, Sonia Regina de. O Patronato Rural no Brasil Recente (1964-1993). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2010. Resenha de: MOTTA, Márcia. Uma zona de sombra: o rural de nossos dias. Tempo v.16 no.30 Niterói  2011.

Uma zona de sombra da historiografia. É com estas palavras que a historiadora Sonia Mendonça apresenta o tema de sua trajetória acadêmica, mais uma vez registrada em livro. Ao perseguir as relações intraclasse dominante agrária, Mendonça discute em “O Patronato Rural“, como se estabelecem as relações e os fortes interesses dos grandes proprietários rurais no interior das agências estatais, entre os anos de 1964 a 1993.

O objeto de pesquisa por si só não é dos melhores, se entendemos uma obra a partir do registro de um passado festivo, cheio de glórias e comemorações.

O tema é feio e seus efeitos são ainda piores, mas eles fazem parte do lado obscuro de nossa história, ainda tão presente e tão pouco estudado. Como fantasmas, seus efeitos perseguem alguns poucos historiadores, suficientemente preparados para desvendá-los por detrás dos véus.

Na contracorrente de uma história bonita, Mendonça dilacera nossas visões mais otimistas e demonstra que estamos ainda longe de um país mais generoso para com os seus. Ao perseguir e esquadrinhar os sentidos das “modernizações”, a autora nos revela as estratégias utilizadas pelos terratenentes para chamar de nossos os seus interesses.

O livro exige leitura atenta, cuidadosa, já que a rigor o leitor mais desavisado, há de ter alguma dificuldade para acompanhar as principais ilações ali registradas. Para os mais interessados, asseguro: o esforço vale a pena. O próprio estilo da autora expressa uma resistência, contra as leituras prazerosas e superficiais de nossos dias. O leitor não estará lendo um resumo dos argumentos da imprensa diária, sempre pronta a falar sobre o que não sabe e a construir juízos de valor acerca de grupos sociais que desconhece. Também não há de encontrar ali um estilo poético, pois não há nada de poesia nos mecanismos de dominação/convencimento empregados pelos “nossos fazendeiros”.

O capitulo primeiro é uma aula, dessas que – como dizíamos quando jovens – só mesmo a Sônia Mendonça para ministrar. Ao deslindar as propostas presentes no Estatuto da Terra do governo Castelo Branco, a autora nos oferece uma oportunidade ímpar de conhecer a fundo quais eram os distintos projetos políticos da Sociedade Nacional de Agricultura e da Sociedade Rural Brasileira – entidades patronais – na “luta travada entre elas pela condição de porta-vozes autorizados e legítimos das facções agrárias da classe dominante agrária”. Mas se havia divisão, havia também união, cumplicidade; principalmente em relação aos projetos de reforma agrária dos setores de esquerda, na conjuntura que culminou com o Golpe de 64. É em oposição à mobilização camponesa e sua proposta de reforma que irão se insurgir as agremiações patronais, contra aquilo que consideram o mais grave dos crimes: o ataque à grande propriedade e ao direito de ser proprietário.

Não é preciso repetir aqui o que todos sabem e naturalizam. A partir do Golpe de 64, a grande propriedade rural é absolvida e consagra-se a ideia de que ela não deve ser discutida, questionada, mas estimulada. A concentração territorial não é mais um pecado; é, quanto muito, a expressão de nossa especificidade, num país que orgulhosamente chamamos de continental.

Não á toa, os anos de abertura política reinauguraram as tensões entre as entidades patronais, sempre dispostas a defender a política de modernização da agricultura com subsídios fiscais. Mas a abertura também implicou a renovação da esperança, a expectativa de um acerto de contas com o passado, expresso – por exemplo – na promulgação do Plano Nacional de Reforma Agrária do governo Sarney, cuja proposta, a princípio, visava atender às demandas sociais mais urgentes no campo, principalmente em relação aos conflitos fundiários. O fracasso da proposta expressou, mais uma vez, que a despeito das diferenças, as entidades patronais não estiveram dispostas a construir um consenso político a favor das mudanças.

O papel específico da Sociedade Nacional da Agricultura é o tema do capítulo dois. Nele, Mendonça analisa a revista A Lavouracorpus documental raras vezes utilizado pelos historiadores. Enquanto entidade de classe, a SNA defendeu suas propostas a partir de cinco eixos: a modernização da agricultura, a difusão do cooperativismo como instrumento de desenvolvimento agrícola, a necessidade de se empreender algum tipo de reforma agrária, a implementação de uma justiça agrária e o combate ao tabelamento de preços. Para além da excepcionalidade da entidade na defesa de algum tipo de reforma agrária e de justiça social (questões ausentes da pauta de outras entidades patronais) destaca-se também o apelo nos últimos anos em favor da causa ecológica, no esforço de consagrar-se como a legítima e histórica entidade preocupada com as questões ambientais.

O terceiro capítulo é dedicado à Sociedade Rural Brasileira, cujas visões de classe são expressas em outra revista A Rural, também pouquíssimo explorada por historiadores. Coerente com suas bases sociais, a entidade procuraria defender os interesses dos grandes cafeicultores, agropecuaristas e empresas agroindustriais. Em nome deste grupo, a SRB se poria radicalmente contra qualquer alteração da estrutura fundiária no país, na defesa de uma posição assentada na intocabilidade da propriedade territorial. Mas a entidade também criou uma dada concepção de reforma agrária que se consubstanciou na defesa de uma política agrícola e na construção de uma nova imagem do “moderno” produtor rural, “de cujos atributos a entidade ressaltava o uso da tecnologia/pesquisa de ponta”.

Mas se a história do campo brasileiro tem a marca da complexidade, parece-nos óbvio que suas demandas e perspectivas não se resumem apenas a duas entidades de classe. Para além do dualismo e das disputas entre a SNA e a SRB, o quarto capítulo é dedicado ao estudo da Organização das Cooperativas Brasileiras, umas das mais jovens agremiações patronais que, após a abertura política, tornar-se-ia a grande força dirigente do patronato “agrário” nacional. Na OCB, o foco é o apelo ao cooperativismo, enquanto expressão maior da democracia e do igualitarismo. Entende-se assim que a reforma agrária defendida pela entidade está assentada na ideia do cooperativismo. Seus dirigentes se veem como os porta-vozes do que há de mais moderno: o agronegócio, modernizando a agricultura brasileira em bases empresariais e internacionalizadas. A atuação da entidade é ainda o exemplo emblemático das estratégias de construção de hegemonia e de representação política no interior do Estado Brasileiro.

O coroamento desta hegemonia – expressa na consolidação do papel e importância do agronegócio – é exemplificado pela criação da Associação Brasileira de Agribusiness, objeto do último capítulo. Em nome do novo – o agronegócio – e da necessidade de encontrar novos canais de representação política, a ABAG, como é comumente chamada, constitui-se na face mais obscura do poder dos empresários rurais, não apenas como uma entidade patronal de defesa de seus interesses de classe, mas como uma agremiação de empresas. A “responsabilidade social dos empresários do agronegócio com a sustentação alimentar de uma comunidade internacional altamente ‘globalizada’ seria o grande argumento de sua legitimação e da produção do consenso em âmbito nacional”. Na construção deste discurso e na falácia do consenso, a sociedade brasileira condena – sem ao menos se dar a conhecer – a pequena produção familiar que, mais uma vez, é refém de valores sociais que lhe são impostos de fora: atrasada, antiprodutiva, sem função.

Há, em suma, um novo projeto para a agricultura brasileira, vendido em prosas e versos nas campanhas publicitárias, nas propostas do governo, nas telenovelas, nos jornais. Tal projeto – o agribusiness – dificulta o nosso olhar sobre os problemas e mazelas do campo brasileiro e deslegitima e condena ao esquecimento a trajetória e luta dos pequenos agricultores deste país, responsáveis – eles sim – por parte ainda importante da produção de alimentos do Brasil. Eu conto nos dedos quantos historiadores estão cientes desta elementar informação…

Márcia Motta – Doutora em Historia e Professora da Universidade Federal Fluminense.

Itamar Freitas

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