A Rússia hoje se apresenta como uma nação fortalecida no condomínio geopolítico mundial. Com aspirações hegemônicas regionais (o “Exterior Próximo”), estabelecimento de relações com Grandes Potências como os Estados Unidos da América (cujo relacionamento é baseado numa alternância de fases – aproximação/distanciamento ou cooperação/ conflito) e com potências emergentes como o Brasil, China e Índia, a nação eurasiana redesenha, a despeito de sua assertividade renovada, um novo caminho no cenário global, ainda que com impasses e dissonâncias em sua retórica interna/externa. Remontar ao passado da Federação e projetar seus passos futuros é testemunhar um percurso interessante de uma nação que se desperta, pós uma série de momentos intempestivos, a um cenário em transformação. Entender essa dinâmica dentro de um espaço brasileiro torna-se um desafio para alguns analistas, principalmente pela carência de bibliografia e autores engajados com a temática no país.
Conforme sugestão do próprio título – Russia since 1980 – os autores Stefan Hedlund e Steven Rosefield – estendem aos leitores o convite a uma viagem por quase 30 anos de história russa, perpassando por acontecimentos impares como as reformas de Leonild Brezhnev e posteriormente de Gorbachev, mudanças que repercutiram na eclosão da União Soviética (URSS) e a política de mercado de Yeltsin (primeiro presidente da Rússia pós Império). Adicionalmente, o livro traz ao leitor debates e discussões acerca de uma possível democratização ou a permanência de um autoritarismo latente na Rússia, adentrando a era Vladimir Putin. Tal era promove a reinserção e fortalecimento do Estado depois da crise do fim da Guerra Fria e a adesão a um modelo dito ocidental de economia e política, bem como a projeção de uma nova postura no contexto global. As complexidades e contradições de Putin são examinadas, assim como a eleição de seu aliado Dmitri Medvedev que surge às sombras do seu antecessor.
A obra é dividida em seis partes que abrigam os 14 capítulos existentes. A parte I abrange a Rússia antes de 1980, as partes II, III e IV discorrem sobre as Eras Gorbachev, Yeltsin e Putin respectivamente, a V aborda os avanços e retrocessos e, por fim, a última parte trabalha com as Perspectivas da Federação. Em paralelo, os autores tendencialmente se apresentam como pró-ocidente, tecendo sérias críticas ao sistema soviético e depois russo no que se refere a sua organização, sociedade, estruturas, comparando os sistemas e enfatizando as deficiências destes frente correspondentes regimes ocidentais.
Na abertura da obra os autores apresentam o ano de 1980 como o começo de ambos – o fim do comunismo soviético e o momento de turbulência da transformação da Rússia. Esse retrospecto é essencial para se entender a posição que o país toma hoje frente às dinâmicas contemporâneas. A matriz da cultura Moscovita percorre toda a trajetória e leitura de Russia Since 1980, modelo este que prevaleceu por mais de cinco séculos, segundo o qual o governante autocrata tem em mãos toda a produtividade e direção do país, ele está acima da lei, governa para si em nome da nação (este modelo remonta ao governo de Ivan, o grande, fundador do Estado Russo – século XV). Dessa forma, Hedlund e Rosefield entendem que Putin e seus predecessores são apenas outra variação desse autoritarismo moscovita, o que explica, segundo eles, o atraso econômico, político e social do país. O progresso russo atual é visto não como um progresso substancial, mas como produto de ilusões estatísticas e, a democracia, somada a uma ausência de ações, é condecorada a meras palavras.
Gorbachev (1985/1991) é retratado como um homem de muitas faces (alternância de um modelo de crescimento econômico frente à mobilização da Reforma Comunista para um projeto de reformas econômicas liberais). Estas reformas – radicais apenas na retórica – são consideradas ineficazes, uma vez que a estrutura de organização física não sofreu qualquer alteração. Os autores entendem que as intempéries da “terapia de choque” vindas à tona na Era Yeltsin (1991/1999), possuem suas raízes no governo Gorbachev e a oligarquia já emergia aqui como uma profícua jogadora. As ineficiências dessas reformas são colocadas em segundo plano e a administração Gorbachev é percebida como a mola propulsora da queda da União Soviética.
Na seqüência, Yeltsin numa primeira fase de sua gestão, apresenta uma administração de quase total alinhamento com o Ocidente (1993 – encontro com George Bush, 1994 – parceria formal com a OTAN, 1995 – encontro com Bill Clinton). Paralelamente, os oligarcas tornavam-se peças-chaves na manipulação e controle do mercado, aumentando a corrupção e desagregação do Estado russo. Hedlund e Rosefield explicitam que o sistema pós-comunista de Yeltsin não teve domínio sobre todos os aspectos da economia, política e sociedade e não serviu como impulso a um modelo real de livre mercado democrático. Entendem que esse momento pós-soviético foi apenas uma transição formal de um autoritarismo da organização física da Reforma Comunista para um autoritarismo do Mercado moscovita – que emerge às sombras de uma política de abandono das obrigações políticas e sociais do Estado. Como a administração Gorbachev, a presidência Yeltsin sofre críticas referentes ao retrocesso russo, sobretudo no tocante ao desgaste das condições sociais, como a queda da taxa de natalidade, aumento da mortalidade masculina e agravamento da pobreza.
Sob ingerência de Putin (1999/2008), também condicionado ao modelo de administração autoritária moscovita, o Kremlin inicia uma reforma no sistema de governo, fortalece a burocracia, centraliza o poder do Estado e amplia o poder da Polícia Secreta. O objetivo destas medidas? Recuperar o Estado russo, o poder do Kremlin e mesmo o orgulho nacional. Gastos com Defesa reascendem e Putin dá início a um modelo ambicioso de modernização de armas. Alguns elementos contrastam sua gestão com a gestão do seu antecessor Yeltsin: diminuição da pobreza, mercados mais eficientes, aumento da produção e um relativo equilíbrio da economia. Vale ressaltar, entretanto, que a economia russa é dependente da extração e exportação de recursos naturais, sobretudo do petróleo, o que a torna vulnerável aos preços dos bens primários, somada ao fato de que descobertas de novos campos não acompanham a produção desses recursos. Esta situação leva a pensar que a questão energética poderá ser o grande problema do país num futuro próximo gerando novos desequilíbrios. No compasso dessas tendências desfavoráveis, os autores se atendam aos aspectos negativos do Governo Putin, tais como a supressão da mídia independente, autoritarismo consolidado, desrespeito aos direitos humanos, ataques às Organizações não-governamentais (ONGs), perseguições políticas, repressão da oligarquia, dentre outros.
Como herança dessa Era Moscovita, autodenominada por Hedlund e Rosefield como “Patrimônio da Negligência” são lançados à mão um espectro de tendências que se distanciam da discussão acerca de uma ocidentalização sucedida, como a depressão da qualidade de vida, deterioração do capital humano, choque demográfico (crescente mortalidade e queda da fertilidade), degradação ambiental, capital intelectual pouco incentivado. Esses são alguns influxos apresentados ao futuro da Federação guiados por toda essa Era pós Império, conseqüentes – segundo os autores – de uma democracia incipiente quando comparada às regras ocidentais.
Em sua última parte, a obra discorre sobre as prospecções e distúrbios estruturais da Federação Russa, concluindo que o crescimento futuro do país será baixo, somado a fatores como o declínio da força de trabalho, não incentivo à mão-de-obra estrangeira, base cientifica defasada e vulnerabilidades a choques de petróleo. Esses fatores se agravam quando comparados à expansão do país chinês, que apesar de apresentar características semelhantes ao sistema russo – regime de governo autoritário, regras econômicas burocráticas, redes de segurança social ineficientes – vem demonstrando uma relativa superioridade em termos de desenvolvimento econômico, principalmente na junção dos fatores – trabalho, capital e progresso tecnológico. Nesse contexto, o relacionamento russo-chinês torna-se dúbio no âmbito das Relações Internacionais, ao passo que o crescimento econômico chinês se contrasta a um potencial russo que se deprime, conforme explicitado por Hedlund e Rosefielde ao longo de toda a exposição.
Por se tratar de um livro recente (2009) e que expõe de forma precisa as peculiaridades, sobretudo da política interna do país russo, ainda que às voltas de profundas críticas e uma postura relativamente pró-ocidental. A obra pode ser compreendida num contexto de vanguarda da temática, somada ao fato do contato próximo dos autores com as estruturas da sociedade e sistema russo, assim como o acompanhamento privilegiado das transformações sofridas pelo país.
O debate acerca da elaboração de um ideal social e um melhor caminho russo a seguir prepondera nos dias atuais. Ao sabor dessa discussão, a leitura de Russia since 1980, como já mencionado, conduz a uma viagem singular pela história da Federação, assim como a redescoberta de um país que – em sua essência – mistura elementos de uma história milenar com elementos de uma nova trajetória. Em meio a transformações e ajustes, bem como avanços e retrocessos, a Grande Rússia desperta como um ator de saliência no contexto contemporâneo, buscando um novo status no cenário global frente às suas vulnerabilidades internas.
Resenhista
Alessandra Aparecida Luque – Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista – UNESP (campus de Marília) e bolsista de Iniciação Científica FAPESP. E-mail: alessandra.luque@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
ROSEFIELD, Steven; HEDLUND, Stefan. Russia since 1980 (the world since 1980). New York: Cambridge University Press, 2009. Resenha de: LUQUE, Alessandra Aparecida. Meridiano 47, v.10, n.106, p.66-68, maio. 2009. Acessar publicação original [DR]
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