Russia: a new cold war? (T), Vallentine Mitchell Academic | Michel Korinman e John Laughland

Estendendo-se da Europa à Ásia, com uma trajetória marcada por dois séculos de história, a Rússia busca na atualidade o reconhecimento do seu status como potência e a redefinição da sua identidade enquanto país reemergente depois da imediata crise do pós-Guerra Fria. De império soviético à nação russa, Estado em reconstrução, à luz de tal dualidade, o país que fora palco de grandes transformações revolucionárias, vivenciou nessas quase duas décadas, uma situação de rápida mudança. Frente a essa reconfiguração, velhos dilemas se misturam aos novos desafios reascendendo o debate sobre qual é o papel da Rússia. Dessa forma, terá a Rússia perspicácia e desenvoltura para enfrentar uma ordem em transformação ou se renderá às suas heranças e bases ideológicas soviéticas? Ou ainda buscará um caminho diferente como sugerem alguns autores?

Para tentar responder a estes questionamento, o livro intitulado Russia: a new Cold War? é produto de uma cooperação entre o Daedalos Institute of Geopolitics em Chiore e o OGENI (Geopolitical Observatory for Nations and the World) da Sorbonne em Paris, sendo organizado por Michel Korinman e John Laughlan. Em seu conjunto, é uma coletânea de artigos, cujos assuntos diversos são divididos em nove blocos, os quais de uma maneira ou de outra, buscam refletir acerca da pergunta título da obra e discorrem sobre as movimentações russas do Ocidente ao Oriente. O livro traz ao leitor questões concernentes aos problemas internos como demografia, território, economia, identidade, bem como as perspectivas e desafios à nação russa.

Quatro artigos inauguram a Parte I intitulado “O urso russo e o lobo americano”, os quais discorrem sobre as complexas relações da Rússia com os EUA. Os autores reconhecem a dinâmica contínua de desconfiança mútua entre ambos os países. As duas primeiras exposições – “The Missile Shield Upsets the Balance Between the US and Russia” por Alexander Grushko e “The Long Road to a Russian-American Anti-Ballistic Missile System” por Alexander Karavayev – explicitam o descontentamento russo com relação ao projeto dos escudos antimísseis norte-americano, visto como contrário aos interesses do país. No mesmo compasso, Fyodor Lukyanov em “Fear and Complacency versus Global Stability” demonstra sua relutância e descrença, não apenas com a criação desse projeto, mas com a escala de tensões e diferenças ideológicas entre Moscou e Washington, defendendo a diplomacia como única solução para as controvérsias mútuas. Paralelamente, Pavel Andreev, no paper “Russia and Britain: Upon Finding Ourselves, We May Find Each Other”, discorre sobre a relação da Rússia com a Grã-Bretanha, vista como um incentivo ao incremento da parceria RússiaOTAN e considerada pelo autor como um atual vetor político em depressão.

Na parte II – “Rússia Ressurgente” – os autores trabalham com fatores e problemas à nação, como o declínio demográfico decorrente de indicadores desfavoráveis como a baixa fertilidade, alta mortalidade e relevante migração. Tais situações são debatidas por Gérard-Françóis Dumont em “Russian Depopulation and Geopolitics” e Anatoly Vishnevsky em “In the Same Boat as the West”, as quais poderão levar ao encolhimento populacional e escassez de trabalho em todos os níveis num futuro não muito distante. O novo conceito de política demográfica debatido no Kremlin ainda não apresenta mudanças reais.

Irina Palilova em “Public Opinion in Russia”, examina a opinião pública da Federação Russa em assuntos referentes ao nível de satisfação aos padrões de vida correntes e à política no país, constatando, no entanto, uma confiança em demasia ao presidente, em contraste a um baixo envolvimento da população na vida política do Estado. Outro desafio analisado diz respeito às reformas militares, no qual Oliver Crone em “Putin’s Army: Between Decline, Reform and Revival”, analisa a nova doutrina militar do Kremlin, bem como os desafios da reforma e modernização do setor bélico como resposta às ingerências dos EUA e da OTAN na região eurasiana. Paralelamente, as fraquezas dos serviços de inteligência da Rússia são ressaltadas em “The Kremlin’s New Spies” por Antoine Colonna, o qual destaca a relevância do serviço de inteligência para a Rússia, representando a mesma importância como em décadas passadas.

Na seqüência, o terceiro conjunto de artigos, “Administrando o território”, apresenta dois textos que discorrem sobre as relações centro (Rússia) e periferia (novos países da CEI) no tocante às dissonâncias entre as novas fronteiras da Federação e as ex-repúblicas soviéticas. Em “Russia’s Territory in the Twenty-First Century”, Vladimir Kagansky aborda o contraste da preservação das estruturas soviéticas (autoridade de Moscou sobre as ex-repúblicas) e o enfraquecimento dos laços entre o Kremlin e as elites regionais. Vladimir Kolossov em “Building an ‘Administrative Vertical’: Looking for a Delicate Balance in the Relations Between the Centre and the Regions in Russia”, restabelece aspectos históricos dessas ingerências, encontrando no fracasso da Perestroika, a razão do aumento de tensões étnicas e dos movimentos separatistas e nacionais, abrindo caminho para a ameaça da desintegração.

O bloco seguinte, “Rússia para os russos”, discute conceitos e a busca por uma nova identidade, engendrado na transformação pós-soviética, além de analisar o decorrente crescimento dos movimentos nacionalistas no país. Vale mencionar que esses movimentos ganharam impulso com a agenda nacionalista de Putin (1999/2008), diante de campanhas como a anti-Geórgia e a anti-imigração. Face ao exposto, Alexander Verkhovsky em “Changing Russian Nationalisms in Today’s Russia”, analisa a multi-etnicidade russa vista pelos nacionalistas como obstáculo à concretização do slogan, ‘Russia para os russos’, movimentação entendida pelo autor como inconstrutiva e retrógrada. Vladimir Mukomel em “Russia’s Migration Policy: The Ethnic Context” aborda a nova política de migração do Kremlin com vistas a atrair mão-de-obra, apontando para novos desafios à Rússia com relação a esse processo de transmigração que culminará com a diversificação de populações e culturas e conseqüentes focos de tensões.

Emil Pain em “Nationalism and the Imperial Idea in Russia: Confrontation and Synthesis” analisa o crescimento de grupos extremistas nacionalistas, resultando em uma queda nos níveis de democracia. Moscou tem tentado reconstruir uma identidade pós-soviética por meio do retorno dos símbolos (como bandeira e hino soviéticos), lugares, datas e reconstrução da própria imagem do país como grande poder. Esses fatores são analisados por Jutta Scherrer, em “Russia’s New-Old Places of Memory” como objetivo de clamar por um sentimento nacional, patriótico e imperialista. O artigo “Islam and Politics in Russia” de Alexei Malashenko propõe uma análise sobre o islamismo e sua influencia na Política, uma vez que muitos movimentos e organizações emergiram com apelos a ideais e slogans religiosos.

Em “Geo-Economia e Geopolitica”, quinto bloco to livro, os autores discutem às questões do Gás e os projetos russos de distribuição alternativa. Os dois primeiros artigos, embora com enfoques distintos, são devotados ao relacionamento russo-alemão através do projeto Nord Stream, visto como essencial ao abastecimento do continente europeu. Dessa forma, Oliver Crone em “Pipeline of Concern: The RussianGerman Gas Pipeline Project in the Baltic Sea seen from a Swedish Perspective”, examina, em especial, a perspectiva e os desafios à Suécia, principalmente sobre os planos russos de aumentar sua presença militar no mar Báltico. Tal exemplo revela as divisões entre os membros da União Européia. Roland Gotz, por sua vez, no artigo “Germany and Russia – Strategic Partners?” faz um retrospecto das relações Berlim-Moscou, caracterizadas por uma mistura de sentimentos contraditórios e laços históricos comuns, que ganham na atualidade novos contornos.

Por sua vez, Viatcheslav Avioutskii em “The Gas War Between Russia and Ukraine: A Geostrategic Opposition” analisa a relação assimétrica entre Rússia e Ucrânia, evidenciando a existência de uma dependência mútua (Ucrânia é dependente do gás russo e, ao mesmo tempo, um país trânsito de exportação de gás russo à Europa Oriental), o que explica uma relação marcada por conflitos. Viatcheslav Avioutskii (em seu segundo texto na coletânea) e Nadia Campaner em seus respectivos artigos “Gazprom’s Southern Strategy: The Caucasus and the Black Sea” e em “The Eastern Vector of Russian Oil and Gas Exports: What Impacto n the EU’s Energy Security?” analisam a nova estratégia de energia do Governo e das companhias russas de energia na região do Mar Negro, cujo intuito é diversificar os mercados e as rotas de fornecimento. Uma dessas alternativas é a região da Ásia Pacifico (APR), onde há grande demanda por energia e não requer uma infra-estrutura custosa. Vale mencionar que a projeção das exportações de hidrocarbonetos para a APR não representará, como lembram os autores, uma proporção significativa se comparados aos níveis de exportação à Europa.

Na seção seguinte – “O modelo Kosovo” – Natalia Narochnitskaya em “Thawing the Status of the “Unrecognized”, or Whether Transnistria Sets a Precedent for Kosovo” discute a política geográfica forçosamente imposta pelo desmembramento da URSS, culminando com a divisão da nação russa e um status territorial incompleto. A autora também aborda o papel dos novos estados independentes e o retorno de Moscou à sua ‘missão geopolítica natural’. Esses aspectos levantados abrem caminhos para as discussões realizadas por Predag Simic em “Russia and the Kosovo – Metohija Problem” e Florence Mardirossian em “The Geopolitics of the Southern Caucasus”, os quais discorrem sobre a presença e interesse da Rússia nos Bálcãs, os desencontros Rússia-OTAN na crise de Kosovo e as divergências de interesses russos e ocidentais no Cáucaso, movimentações que correspondem aos principais litígios da relação Washington-Moscou.

Em “The Geopolitics of Armenia Sixteen Years After the Fall of the Soviet Union – an Interview with Serzh Sargsyan, Prime Minister of Armenia”, Gerard François Dumont e Florence Mardirossian realizam uma entrevista com o Primeiro Ministro da Armênia em junho de 2007, o qual discorre sobre as boas relações econômicas do seu país com o Irã, bem como assuntos políticos e de segurança e a contestação com o projeto simbolizado pelo gasoduto Baku-TbilisiCeyhan que contornará o país armênio, fazendo como que este se aproxime ainda mais de Moscou.

Na sétima parte “A Rússia Asiática”, as relações de Moscou com Japão, China e Índia são colocadas em destaque. Abrindo a discussão, Yukiko Kuroiwa em “Russo-Japanese Relations, Stressed by Territorial Dispute” traz à tona as disputa de pequenas ilhas entre russos e japoneses que remontam ao período de confrontação e desconfianças entre japoneses e russos na II Guerra Mundial. As relações entre China e Rússia parecem, no entanto, enfrentar um melhor momento. O texto “Sino-Russian Relations – According to China de Yike Zhang”, demonstra a ênfase de Moscou e Beijing na cooperação energética. A parceria é importante para ambos os lados na luta pelo multilateralismo, mas possui forças e possibilidades limitadas para construir uma completa aliança antiamericana.

Sobre a relação com a Índia, “The Indo-Russian Strategic Partnership: Past, Present and Future” de Ronak D. Desai foca-se na histórica e atualidade da parceria estratégica russo-indiana, analisando os interesses mútuos, ameaças similares e poderes ascendentes em busca do seu lugar na arena internacional. O autor deixa claro que a intensidade da cooperação russo-indiana apresenta boas perspectivas, encontrando na área energética (sobretudo nuclear) um dos principais pilares dessa parceria. Paralelamente aos debates supracitados, Fabrissi Vielmini em “Russia and Central Asia” analisa a importância da Ásia Central aos interesses estratégicos russos, uma vez que a região liga a Rússia à China e ao subcontinente indiano, além de fazer parte dos interesses do Kremlin em se tornar um centro de poder na região eurasiana. Diante do contexto, Moscou terá que lidar não apenas com as infiltrações chinesas e norte-americanas na região, mas com as capacidades autônomas que estão ganhando impulso na região. Essas movimentações podem representar focos de tensões e riscos ao futuro da região eurasiana.

O penúltimo bloco “Psychoanalysis and Geopolitics” é composto por um único artigo “Who can understand Russia with his mind?” no qual Theodore Dalrymple discorre sobre as diferenças da Europa Ocidental e da Rússia, diferenças essas de cunho biológico, geográfico, dentre outros aspectos que podem influir, segundo o autor, diretamente nas respectivas culturas e na historia humana de um país.

A última parte denominada “Resenha de Livro” aborda, como sugere seu título, uma revisão da obra “Démographie politique. Le Lois de la géopolitique des populations” de Gerard-François Dumont por Laurent Chalard. A obra que fora resultado de mais de 20 anos de estudo, oferece uma análise geopolítica das populações baseada numa teoria experimental. O autor não se restringe à Europa ou outros países desenvolvidos, mas discute a historia e a contemporaneidade de todas as regiões do mundo, explicando a ligação entre política e demografia. Assim, Dumont busca amparo na geografia para explicar a desintegração da URSS e o crescimento natural negativo da população atual. Diante de tal cenário, o autor conclui que a Rússia não será capaz de se tornar um grande centro de poder como os EUA.

Esse livro traz consigo grandes contribuições ao estudo da Rússia contemporânea, levantando problemas e desafios reais deste país. Muitos do temas por ele tratados são de pouco conhecimento no Brasil que, dentre as nações emergentes, não surge com relevância no conjunto da obra, demonstrando a ênfase regional das preocupações geopolíticas russas e, em termos globais, no intercâmbio com os EUA. Por se tratar de uma coletânea de artigos, revela uma pluralidade de posicionamentos e questionamentos sobre os mais variados assuntos, diante dos quais a pergunta título da obra parece se perder na imensidão de assuntos explorados. Cabe, assim, ao leitor, construir suas próprias conclusões a partir da descrição dos desafios internos e externos russo em seu processo de recomposição como grande potência.


Resenhista

Alessandra Aparecida Luque – Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista – UNESP (campus de Marília) e bolsista de Iniciação Científica da FAPESP. E-mail: alessandra.luque@yahoo.com.br


Referências desta Resenha

KORINMAN, Michel; LAUGHLAND, John (Orgs.). Russia: a new cold war? London: Vallentine Mitchell Academic, 2008. Resenha de: LUQUE, Alessandra Aparecida. Meridiano 47, v.10, n.110, p.33-36, set. 2009. Acessar publicação original [DR]

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