Ruralização do ensino: as ideias em movimento e o movimento das ideias (1930-1950) | Agnes Iara Domingos Moraes

“Sem sombra de dúvida, um marco na historiografia da educação rural no Brasil”. Essas palavras são da Profa. Dra. Rosa Fátima de Souza-Chaloba, ao comentar, no Prefácio (p. 12), o livro intitulado Ruralização do ensino: as ideias em movimento e o movimento das ideias, de autoria da Profa. Dra. Agnes Moraes, publicado em 2021 e lançado em 2022 pelas editoras Oficina Universitária e Cultura Acadêmica1.

Moraes, professora na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), é integrante Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Cultura e Instituições Educacionais (GEPCIE) e do Grupo de Pesquisa História da Educação e do Ensino de Língua e Literatura no Brasil (GPHEELLB), ambos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), câmpus de Marília, da Universidade Estadual Paulista (UNESP). É autora e coautora de diversos artigos, capítulos e livros, dentre outras produções, relacionados à história da educação, especialmente ao ensino primário rural, com ênfase no ensino ruralizado, concepção defendida pelo Movimento pela Ruralização do Ensino, cujo ápice da atuação ocorreu na primeira metade do século XX. Segundo Moraes (p. 21),

A ruralização do ensino foi uma proposta concebida por sujeitos participantes desse Movimento para as escolas primárias rurais. Isso deve-se ao fato de que esses sujeitos consideravam, por diversas razões, as escolas rurais existentes inadequadas para o meio no qual estavam instaladas, assim, defendiam a ruralização da escola, ou seja, a implementação da concepção de educação desse Movimento. Noutras palavras, uma escola primária rural não necessariamente é uma escola ruralizada, porém, uma escola ruralizada é sempre uma escola primária rural.

O livro é resultado de pesquisa histórica em nível de Doutorado, realizada no mencionado Programa de Pós-Graduação, sob a orientação da Profa. Dra. Souza-Chaloba, e envolveu estágio na Universidad de Salamanca, sob a supervisão do Prof. Dr. José María Hernández Díaz. A defesa da Tese ocorreu em 2019. A banca examinadora foi composta, além da orientadora, pela Profa. Dra. Maria Teresa Santos Cunha, da Unidade de Florianópolis da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), pelo Prof. Dr. Flávio Anício Andrade, do câmpus de Nova Iguaçu da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e pela Profa. Dra. Maria do Rosário Longo Mortatti, do câmpus de Marília da UNESP.

Moraes estipulou como objetivo geral investigar a circulação das ideias do Movimento pela Ruralização do Ensino no Brasil, entre as décadas de 1930 e 1950. Para isso, ela definiu como objetivos específicos analisar: 1) vestígios da circulação das ideias desse Movimento no território nacional; 2) sujeitos individuais ou coletivos implicados, de maneira direta ou indireta, no processo de circulação dessas ideias, suas redes de sociabilidade e respectivos integrantes, bem como as ideias postas em circulação por esses sujeitos; 3) ações propostas ou implantadas pelos ruralistas do ensino para promover essa circulação; 4) o protagonismo de Sud Mennucci nesse Movimento; 5) a circulação dessas ideias em âmbito internacional.

A autora defendeu a hipótese de que as ideias do Movimento em tela circularam, em diferentes regiões do país, no período delimitado, por meio de ações diversificadas que implicaram uma ampla rede de sociabilidade, cujos principais integrantes eram organicamente articulados com o ruralismo brasileiro, que entendia que o Brasil era naturalmente um país de vocação agrícola.

Outra hipótese de Moraes foi de que as ideias dos ruralistas do ensino foram apropriadas, de diversas maneiras, em variadas regiões do país e que a circulação dessas ideias extrapolaram o âmbito do território brasileiro, principalmente por meio de materiais impressos, em especial pelos livros de autoria de Mennucci atinentes a essa temática.

Souza-Chaloba, no Prefácio (p. 12), destaca que “A relevância do tema é inquestionável.” e que esse livro apresenta contribuições importantes para a sua compreensão aprofundada. Aliás, trata-se de uma temática relevante tanto em âmbito nacional quanto internacional. Souza-Chaloba (p. 13) comenta, ainda, que

A novidade deste livro reside, justamente, na releitura do Movimento pela Ruralização do Ensino, feita com muita propriedade. O ponto de partida são duas problematizações fundamentais: a primeira, a reconstituição histórica do movimento a partir dos educadores que se auto reconheciam como ruralistas do ensino e, a segunda, a revisão da noção do Ruralismo Pedagógico.

Tendo como referencial teórico-metodológico a História Cultural, para a realização dessa pesquisa Moraes recorreu principalmente ao arquivo pessoal de Mennucci, a relevantes periódicos – a Revista Brasileira dos Municípios e a Revista do Professor – e a livros de autoria desse intelectual sobre o assunto em tela, publicados no período delimitado.

O arquivo pessoal de Mennucci, considerado por Moraes “um monumento”, é composto por uma quantidade expressiva de documentos, em especial pela correspondência por ele recebida. A pesquisa pautou-se em fontes epistolares até então inéditas, pois o acesso a esse arquivo, no momento do início da pesquisa da qual resultou esse livro, estava restrito. Vale destacar, ainda, que dentre os remetentes dessas cartas estão, além de sujeitos radicados noutros países, personalidades com relativa expressividade em variadas áreas, em especial na educação, tais como, Amália Xavier de Oliveira, Noêmia Saraiva de Mattos Cruz, Renato Sêneca Fleury e Thales Castanho de Andrade.

Em termos estruturais-formais, esse livro, que totaliza 276 páginas, é composto por quatro capítulos, além do Prefácio, da Introdução, das Considerações finais, das Referências e das Fontes citadas.

No primeiro capítulo, denominado Sud Mennucci: a maior “autoridade em ruralismo”, Moraes apresenta aspectos da sua trajetória como profissional da educação e como principal intelectual/militante do Movimento pela Ruralização do Ensino, e discorre sobre aspectos da sua produção bibliográfica, em especial dos livros relacionados à temática da educação. A autora aborda, ainda, ideias defendidas por sujeitos vinculados a esse Movimento, bem como a circulação, a ascensão e o arrefecimento dessas ideias.

Em “A ruralização do ensino é a solução”?: sujeitos movimentando ideias, segundo capítulo, a autora analisa a rede de sociabilidade constituída e mobilizada para a circulação das ideias sobre a ruralização do ensino. Com base em cartas recebidas por Mennucci, ela realiza um mapeamento da sua rede de sociabilidade, com ênfase na temática da pesquisa. Demonstra, principalmente por intermédio dessas cartas, o protagonismo e a expressividade de Mennucci, em especial no círculo de integrantes ou simpatizantes do Movimento pela Ruralização do Ensino e/ou do ruralismo brasileiro.

No terceiro capítulo, intitulado “Assim é fazer ruralismo, com trabalho e ação e não com palavras”: Movimento em ação, a autora trata das ações levadas a termo pelo Movimento para promover a circulação e a implementação das suas ideias. Dentre essas ações destacam-se a realização de eventos – congressos, conferências, palestras, discursos, semanas ruralistas, dentre outros –, a impressão de livros, revistas e jornais e também a criação de iniciativas educacionais, tais como, formação de professores, Escolas Típicas Rurais2, clubes (com destaque para os clubes agrícolas), sociedades e institutos. Essas ações contribuíram para ampliar a circulação das ideias ruralistas por diferentes pontos do país.

No quarto capítulo, Ruralização do ensino: aqui e acolá, Moraes analisa aspectos da circulação das ideias desse Movimento em âmbito internacional, discorrendo sobre a correspondência procedente dos Estados Unidos da América, país que registra a maior frequência de cartas enviadas do exterior a Mennucci. A autora analisa, ainda, aspectos da influência desse país e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) na educação rural brasileira. Essa influência ocorreu de variadas formas, especialmente por intermédio de programas de cooperação, que tinham inter-relações com fatores políticos, econômicos e culturais, em conformidade com os seus objetivos geopolíticos para a América Latina no período delimitado.

Das Considerações finais, destacam-se algumas questões. Moraes ressalta a existência de nexos entre as ideias defendidas pelos ruralistas do ensino e outros referenciais educacionais. Essas ideias foram, em alguns casos, apropriadas de maneiras singulares, segundo os sujeitos envolvidos e/ou as regiões do país. O Movimento pela Ruralização do Ensino não era unívoco; existiam divergências entre seus integrantes no que se refere a determinados assuntos, como, por exemplo, a configuração curricular da formação ruralizada de professores. A concepção de educação desse Movimento visava, recorrendo a palavras da autora, à domesticação das populações rurais, entendidas, por variados fatores, por governantes e frações das classes proprietárias como potenciais ou efetivos riscos à governabilidade. Moraes destaca, também, que a semente da educação ruralizada já estava plantada antes do início da atuação de Mennucci na área da educação e continuou a ser cultivada após o seu falecimento.

Considera-se que a obra em referência configura-se como relevante aporte em vários aspectos para a história da educação escolar brasileira, tanto pela temática quanto pelos sujeitos pesquisados.

Um desses aspectos é a contribuição para o preenchimento de lacunas na história do ensino primário rural, que, não obstantes os vários estudos concluídos ou em andamento, é um tema que continua a demandar pesquisas, como destacado no livro. A autora analisa e articula aspectos que envolvem as esferas política, econômica e cultural, nos âmbitos local, regional, nacional e internacional, direta ou indiretamente implicados com os objetivos e as ações do Movimento para promover a circulação e, principalmente, a implementação das suas ideias.

Outro aspecto é a contribuição para o aprofundamento da compreensão de disputas e polêmicas – algumas delas inter-relacionadas entre si, perpassando parte significativa da história da educação brasileira, especialmente a partir dos primórdios do período Republicano – direta ou indiretamente envolvidas com as variadas propostas de educação escolar (a ser) propiciada aos povos do campo defendidas por determinados setores sociais em diferentes momentos históricos. Isso instiga ao estabelecimento de inter-relações entre a história da educação, tanto do tempo passado quanto do tempo presente, e as políticas educacionais vigentes, para a compreensão do processo de mudança de paradigma, isto é, da Educação Rural para a Educação do Campo, processo esse, em termos práticos, inconcluso e sob constante e iminente risco de retrocessos, especialmente na atual conjuntura.

O livro contribui, ainda, para as discussões em torno de uma polêmica – cujos principais aspectos podem ser analisados especialmente em produções acadêmico-científicas do Prof. Dr. Luiz Bezerra Neto (2016) e da Profa. Dra. Camila Timpani Ramal (2016) –, que é o estabelecimento de relações diretas, sem as devidas mediações e problematizações, entre a educação ruralizada, defendida pelo Movimento pela Ruralização do Ensino, extinto e de posicionamento conservador, e a reivindicada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, uma organização em atividade, de matiz contra-hegemônico e que tem uma concepção própria de educação, qual seja, a Pedagogia do Movimento, consoante com a sua visão de mundo. Essa distinção é fundamental, inclusive porque determinados equívocos em termos teóricos tendem, em algumas circunstâncias, a repercutir no plano prático. Moraes (p. 87) propicia elementos que contribuem para a enfática demarcação dessa diferença, ao comentar sobre a educação ruralizada: “[…] partindo da perspectiva freireana, tratava-se de uma educação para a domesticação, ou seja, uma educação para, e não das populações rurais, debate esse retomado e complexificado no Brasil, a partir da década de 1990, pelo Movimento Nacional por uma Educação do Campo.”

Essa questão remete a outra polêmica, que assume diferentes sentidos, conforme os sujeitos envolvidos, qual seja, o direito a uma educação contextualizada, o que, por sua vez, remete aos termos para, no e/ou do campo. Trata-se de uma questão estratégica, pois, para além de proposições gramaticais, esses termos têm relações diretas com a concepção de educação (a ser) propiciada aos povos do campo. Por variados motivos e a partir de diferentes perspectivas, inclusive no âmbito acadêmico-científico, sujeitos com diversos posicionamentos político-ideológicos, divergentes e até antagônicos entre si, manifestam-se contra a existência da Educação do Campo.

Várias polêmicas e disputas – em especial em termos de concepção de currículo – envolvendo a educação (a ser) propiciada aos povos do campo configuram-se como uma permanência na história da educação brasileira, sendo, por diversas razões, significativamente acentuadas na atualidade. No que se refere a essas disputas e polêmicas, Souza-Chaloba, no Prefácio (p. 16), ressalta que

Continuam em debate e em disputa na sociedade brasileira propostas de educação para o campo. A proposta de natureza política e pedagógica passa, também, por um projeto de nação. Prescrutar o Movimento pela Ruralização do Ensino, além de alargar o repertório reflexivo sobre a história da educação rural, serve de alerta salutar. O que se encontra em jogo, no passado e no presente, é a defesa da democracia, a luta por uma sociedade mais humana e igualitária. Resta saber qual projeto atende melhor a tais necessidades.

Assim como ocorre com a educação escolar comum, a Educação do Campo é, com as especificidades que lhe são típicas ou inerentes, direta ou indiretamente imbricada com fatores políticos, econômicos e culturais, em âmbitos local, regional, nacional e transnacional.

O momento de publicação desse livro é oportuno, pois o ano de 2022 é marcado, por um lado, pelos 130 anos do nascimento de Sud Mennucci (1892– 1948), principal intelectual do Movimento pela Ruralização do Ensino, e, por outro lado, pelo 20.º aniversário das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do campo (BRASIL, 2002), documento-chave da legislação que normatiza a Educação do Campo, que se contrapõe à Educação Rural, concebida por intelectuais das classes proprietárias para os povos do campo. Essa modalidade da educação escolar brasileira é uma conquista importante dos e para os povos do campo no Brasil, que há décadas demandam o direito a uma educação contextualizada, que considere suas especificidades étnico-culturais, conforme determina a legislação federal brasileira.

Entretanto, a atual conjuntura é marcada por efetivos ou iminentes retrocessos para a Educação do Campo, devido às políticas implementadas – especialmente após o golpe parlamentar de 2016 –, assim como em decorrência das políticas pretendidas ou em vias de implementação pelo governo federal durante o mandato de Bolsonaro e que afetam de maneira negativa o direito à educação escolar dos povos do campo, historicamente preteridos pelo Estado brasileiro, em especial no que se refere às políticas educacionais. A dedicatória elaborada por Moraes contribui para evidenciar isso: “Aos povos do campo […] que continuam, por diferentes motivos, tendo negado seu direito à educação escolar”.

Notas

1 Essa obra pode ser descarregada gratuitamente no sítio da UNESP/Marília na internet: https://ebooks.marilia.unesp.br/index.php/lab_editorial/catalog/book/323.

2 Essas escolas foram objeto da pesquisa de Mestrado de Moraes (2014).

Referências

BRASIL. Resolução CNE/CEB 1, de 3 de abril de 2002. Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do campo. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=12992. Acesso em: 7 out. 2014.

BEZERRA NETO, Luiz. Educação rural no Brasil: do ruralismo pedagógico ao movimento por uma educação do campo. Uberlândia: Navegando Publicações, 2016.

MORAES, Agnes Iara Domingos. Ensino primário tipicamente rural no Estado de São Paulo: um estudo sobre as Granjas Escolares, os Grupos Escolares Rurais e as Escolas Típicas Rurais (1933-1968). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.

RAMAL, Camila Timpani. Ruralismo pedagógico versus concepção de educação do MST: abordagens divergentes de projetos de educação do campo no Brasil. 2016. 154 f. Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2016.


Resenhista

Cláudio Rodrigues da Silva – Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), câmpus de Marília. Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da FFC/UNESP. Integrante do Grupo de Pesquisa Organizações e Democracia, vinculado ao PPGE/FFC/UNESP. E-mail: claudio.rodrigues-silva@unesp.br https://orcid.org/0000-0001-9036-3101


Referências desta Resenha

MORAES, Agnes Iara Domingos. Ruralização do ensino: as ideias em movimento e o movimento das ideias (1930-1950). Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2021. Resenha de: SILVA, Cláudio Rodrigues da. O movimento pela ruralização do ensino e a circulação das suas ideias no Brasil e no exterior (1930–1950). História da Educação, v. 27, e125586, 2023. Acessar publicação original [DR]

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