Sem mais delongas, na sequência de Haroldo de Campos, o primeiro acontecimento diz respeito a uma “crise da normatividade” que teria explodido no século XX, suscitada por vários estudiosos da problemática dos gêneros literários. Entre eles, Mukarovsky, um dos fundadores do Círculo Linguístico de Praga. Para Mukarovsky, a nossa tendência à delimitação literária dos gêneros se deve a uma forte influência do Classicismo.
Nesse sentido, Haroldo de Campos ratifica o discurso de Mukarovsky, dizendo que “o Classicismo, por definição, é propenso à exata delimitação dos vários dialetos funcionais [2] ” (CAMPOS, 1979, p. 281), e que o Romantismo, posteriormente, lutou contra essa visão clássica, revolução essa que começou no campo do léxico com algumas palavras, a saber “nobres” (nobles) e “baixas” (bas), observação feita por Mukarovsky a partir do seu estudo dirigido principalmente aos franceses.
Em seguida, o segundo acontecimento mencionado por Haroldo de Campos remonta a uma incorporação dos elementos da linguagem prosaica e conversacional na poesia. Dessa vez não somente o campo do léxico que sofreu alterações, bem como também a sintaxe da frase. Ou melhor, do verso. Tal hibridismo dos gêneros, portanto, encontrará, usando as mesmas palavras de Haroldo de Campos, no jornal seu desaguadouro natural devido a simultaneidade e o fragmentarismo deste.
Como “efeito” dos acontecimentos arrolados acima, segundo Haroldo de Campos, na América Latina teremos como precursor da superação do canôn dos gêneros o romântico Sousândrade, do Guesa (1888), contemporâneo síncrono de Baudelaire, das Flores do Mal (1857); na América hispânica, Rubén Darío, e Huidobro, na América Espanhola; no Brasil, num primeiro momento, Machado de Assis com as Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Depois, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, para falar de alguns deles.
Ainda sobre o processo de ruptura dos gêneros literários no Brasil, o crítico cita o caso do Grupo Baiano, liderado por Caetano Veloso, que se abeberou da fonte da poesia concreta para criar suas composições, depois da positiva repercussão da encenação da peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, escrita em 1933 e publicada em 1937.
Dado o exposto, ficou evidente para nós que o processo de ruptura dos gêneros, dado meio que por uma “contaminação tardia” no Brasil, deu-se em detrimento do esquecimento ou abandono da teoria canônica dos gêneros pelos escritores e crítica dos estudiosos pela sua inexequibilidade em tempos modernos.
Ficou claro também que esse problema da teoria canônica dos gêneros encontra explicações na língua, que, de tempos em tempos, sofre com novos acordos ortográficos, com o deslocamento dos falantes para outras regiões, etc.
Sendo assim, diante desse revés, historicamente sempre teremos duas forças que se levantam e se opõem seja pela pureza da língua, seja pela sua arbitrariedade. Nesse caso, Mukarovsky e o próprio Haroldo de Campos escolhem a segunda como escudo contra o inimigo e defendem seu ponto de vista com o engenho de raciocínio que todo crítico deve ter.
Para finalizar, aproveitemos o momento para pensar no que está acontecendo com a nossa língua, o que, por conseguinte, de maneira positiva ou negativa, dependendo da posição do interlocutor ou receptor, afeta os gêneros literários. A respeito disso, aproveito também para recomendar a todos que leiam, neste mesmo espaço em que publico esta resenha, minha outra resenha sobre a forma de Mar paraguayo (1992), de Wilson Bueno (Referências), que, coincidentemente, vai ao encontro do que Haroldo de Campos apresentou no ensaio, objeto de análise desta resenha. Nela, problematizo, de modo amplo, a questão da forma da novela supracitada de Wilson Bueno, em minha modesta opinião um dos principais desafios encarados pelo leitor que se atreve a deslindá-la
essa forma vista como problema é resultado das experiências pelas quais o homem passou no século XX, como a Primeira Guerra Mundial, para citar uma delas, que alterou o pensamento do homem moderno e, por conseguinte, a forma de narrar o sujeito, entre outras mudanças noutros campos do conhecimento (VALE, 2020, p. 2).
Por fim, lembremos, portanto, do processo de ruptura dos gêneros literários, tardio e contaminado pelo fazer literário de escritores europeus no Brasil, mas nem por isso descaracterizado. Prova disso, se dá em grande parte pela obra de grandes escritores como Machado de Assis, por exemplo, que soube ler a realidade do seu tempo ora de perto, ora de longe, como um dedicado e aplicado analista. Dito isso, a quem interessar possa, fica a dica da leitura de Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana, de Haroldo de Campos.
Nota
2. Dialetos funcionais, aqui, devem ser entendidos como linguagens funcionais ou funções da linguagem.
Referências
CAMPOS, Haroldo de. Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. In: UNESCO (Org.). América latina em sua literatura. Coordenação e introdução de César Fernández Moreno. São Paulo: Perspectiva, 1979, pp. 281-305.
VALE, Victor César de Oliveira. O problema da forma em Mar paraguayo, de Wilson Bueno. Revista Resenhando. Alfenas, v. 1, n. 2, pp. 1-4, 18 dez. 2020. Disponível em: https://publicacoes.unifal-mg.edu.br/revistas/index.php/resenhando/article/view/1257/963. Acesso em: 12 jun. 2021.
Resenhista
Victor César de Oliveira Vale – Licenciado em Letras – Português pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Licenciando em Letras – Inglês e Literaturas da Língua Inglesa (LILLI) na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Pós-graduando em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura na Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: victorcesar761@gmail.com
Referências desta Resenha
CAMPOS, Haroldo de. Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. In: UNESCO (Org.). América latina em sua literatura. Coordenação e introdução de César Fernández Moreno. São Paulo: Perspectiva, 1979. Resenha de: VALE, Victor César de Oliveira. Resenhando. Alfenas, v.3, n.3, 2021. Acessar publicação original [DR]
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