Roteiro para construir no Nordeste. Arquitetura como lugar ameno nos trópicos ensolarados | Armando de Holanda Cavalcanti
Logo ao entrar no curso de arquitetura, em 1985, fui apresentado ao Roteiro para Construir no Nordeste de Armando de Holanda, um pequeno livro que era uma leitura essencial para os estudantes de arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE desde seu lançamento em 1976. Por meio de algumas estratégias – criar uma sombra, recuar as paredes, vazar os muros, proteger as janelas, abrir as portas, continuar os espaços, construir com pouco, conviver com a natureza – o autor buscava ajudar estudantes e arquitetos a projetar no Nordeste do Brasil. Só tempos depois é que pude compreender a real significância deste livro. Mais do que algumas estratégias para se chegar a um bom projeto, ele nos fala muito mais da relação entre arquitetura e natureza e do real significado da arquitetura moderna.
Os princípios propostos por Armando de Holanda eram compartilhados por vários arquitetos locais, tanto em suas práticas profissionais como no ensino da escola de arquitetura da UFPE, onde Armando se formou em 1962 e ensinou entre 1974 e 1979. Essa escola de arquitetura, que teve origem na década de 1930 na Escola de Belas Artes de Pernambuco, adquiriu uma orientação moderna a partir do estabelecimento no Recife do italiano Mario Russo, do carioca Acácio Gil Borsoi e do português Delfim Amorim, entre 1949 e 1951.
Para lidar com um clima marcado pela forte insolação, que aporta calor e luminosidade em excesso, esses arquitetos preocuparam-se com a racionalidade construtiva e com maior atenção à adequação ao clima, à cultura e aos recursos locais. A arquitetura desses mestres, assim como a de seus discípulos, priorizava o uso de separações leves e vazadas, elementos que favoreciam a entrada e saída dos ventos, como cobogós, brises, venezianas, treliças de madeira e amplos beirais e varandas. Além disso, utilizaram pés-direitos elevados com coberturas protegidas por telhas cerâmicas e tentavam obstinadamente evitar a insolação excessiva nos ambientes de maior permanência, através da sua orientação. A vegetação também era frequentemente utilizada para gerar sombras e para criar espaços de integração entre interior e exterior.
De fato, não foram estes arquitetos os primeiros a se preocuparem com tais aspectos. A observação da orientação solar e do regime de ventos, a prevenção do calor ou do frio excessivos e o melhor aproveitamento dos materiais e dos recursos disponíveis estão presentes há séculos nas construções de sociedades tradicionais ao redor do mundo. Com o surgimento da arquitetura moderna no início do século 20, a relação de um edifício com o clima do lugar e os meios para compreender essa relação passaram por uma transformação significativa.
A preocupação com a adaptação do edifício ao clima do lugar onde seria construído foi uma constante na consolidação da arquitetura moderna e a aproximação com métodos científicos propiciou uma abordagem mais embasada da questão. No Pós-Segunda Guerra alguns arquitetos passaram a estudar de forma mais aprofundada a maneira como um edifício poderia se relacionar com o clima do seu entorno, integrando conhecimentos físicos, meteorológicos e biológicos. Isto aconteceu particularmente em escolas de arquitetura norte-americanas, a exemplo do Form and Climate Research Group da Escola de Arquitetura da Universidade Columbia (1) e do Architecture Laboratory da Universidade de Princeton. Este último era liderado por Victor Olgyay, que publicou o marco Design with Climate: Bioclimatic Approach to Architectural Regionalism em 1963 (2).
Estes trabalhos buscavam desenvolver métodos e ferramentas para que os arquitetos pudessem melhor entender os aspectos climáticos e, assim, projetar de forma mais adequada. Integrar estes conhecimentos científicos na prática do projeto era um desdobrar natural da lógica da arquitetura moderna dos anos 1920, quando se acreditava que a arquitetura deveria ser o resultado de leis objetivas, princípios científicos e requisitos funcionais.
Apesar de muitos acreditarem que a arquitetura moderna era um projeto universal, fruto da razão e da tecnologia, pronto para ser implantado nos mais distantes cantos do mundo, muitos arquitetos modernos, buscando adequar seus edifícios aos respectivos contextos, lançaram um olhar para os elementos tradicionais de adaptação climática de suas regiões.
Em sua expansão pelo mundo, a partir da década de 1930 a arquitetura moderna encontrou regiões que além não serem urbanas e industriais, estavam longe de um processo de reforma social e detinham características climáticas bem diferentes daquelas dos poucos países europeus onde foi gestada. Além de lidar com a com contextos políticos e culturais diversos, arquitetura moderna também teve de lidar com climas bem diferentes. Seus aspectos supostamente universais tiveram de dialogar com heranças históricas, materiais e práticas tradicionais e vernáculas de construção. Neste processo, ela incorporou uma infinidade de expressões bastante individuais e desenvolveu uma série de particularidades determinadas pelas condições dos diferentes locais.
A grande diversidade de expressões da arquitetura moderna foi resultado dos esforços de arquitetos de adaptarem suas criações aos diferentes climas em que projetaram. Desde a invenção do brise-soleil por Le Corbusier em 1928, eles buscaram uma redefinição da relação do interior com o exterior (3). Os trabalhos de Richard Neutra na Califórnia e em Porto Rico, Lucio Costa no Brasil, Hassan Fathy no Egito, Maxwell Fry & Jane Drew em Gana e na Nigéria e de Jose Luis Sert em distintos países (Estados Unidos, Espanha, Iraque e Peru) mostraram que esta arquitetura foi capaz de encontrar formas mais adequadas de se relacionar com o meio ambiente, por meio de artifícios de adaptação climática, que sempre encontravam raízes na tradição construtiva de cada região. O estudo destes autores, particularmente Costa e Neutra, ainda atuantes quando Armando de Holanda iniciou sua carreira, permite-nos compreender melhor o contexto no qual o Roteiro foi gestado.
Ao responder às acusações de seu antigo mestre, José Marianno Filho, de que sua reforma no ensino na Escola de Belas Artes, estaria desalojando o vocabulário da arquitetura neocolonial e, assim, desrespeitando as tradições do país, Lúcio Costa explicou que admirava tanto a arquitetura colonial que compreendia seu espírito, sua lógica e sua adequação ao seu tempo e lugar. Ao enfatizar a honestidade e clareza das construções coloniais, ele criticou a ênfase decorativa do neocolonial e afirmou que os princípios da arquitetura colonial poderiam ser incorporados à arquitetura moderna, resultando em uma arquitetura mais capaz de responder aos desafios da nova era (4).
Esse exercício de adaptação pode ser visto nas casas que ele chamou de “casas sem dono”, realizados entre 1932 e 1936, após ter abandonado a estética neocolonial e de ter realizado alguns projetos com o vocabulário abstrato da arquitetura funcionalista, em conjunto com Gregori Warchavchik. Nessas casas, vê-se que sua compreensão da tradição não se baseava apenas em materiais e formas, mas nas experiências sensoriais, nas práticas culturais do morar e nas formas de lidar com o meio ambiente (5). Neste retorno às origens, foi necessário estudar os elementos de uma casa colonial, incluindo técnicas de construção, variações de planta, janelas e elementos de proteção solar. Os desenhos das “casas sem dono” contêm princípios que estão na base das residências que projetou nas décadas seguintes, mas estes poderiam também servir para projetos mais complexos demandados pela sociedade de sua época, como os edifícios em altura.
Nas fachadas do Parque Guinle (projetado e construído entre 1948 e 1952), para filtrar a luz excessiva da fachada poente, Lucio Costa criou uma combinação singular de brises-soleil, venezianas e elementos vazados, elementos extraídos de um distante passado mouro dos portugueses. O jogo de elementos transparentes, opacos e translúcidos desmaterializa a fachada. Considerando a fachada como uma grande janela, Costa propôs uma inovadora forma de pensar a superfície arquitetônica. Esta fachada satisfaz todas as funções de uma janela, ela emoldura vistas para a paisagem, ilumina o interior, e permite que o edifício respire. É um dos melhores exemplares que a arquitetura moderna brasileira ofereceu em termos de mediação entre exterior e interior.
Um olhar mais atento para a obra escrita e construída de Richard Neutra revela uma inovadora reflexão sobre a relação entre arquitetura e clima. Neutra incorporou o ideal de arquitetura orgânica de Frank Lloyd Wright, para quem trabalhou em 1923, mas ele foi mais adiante.
Neutra concebia o design como um processo no qual as questões físicas, sensoriais e sentimentais do ser humano eram centrais. Admitindo que o ser humano, como um organismo oriundo da natureza, deveria, em sua busca contínua de adaptação, construir um habitat para si de forma harmônica com esta, ele definia a arquitetura como “biologia aplicada” e “fisiologia aplicada” (6). A arquitetura deveria ser como a pele do nosso corpo que faz a mediação entre a natureza lá fora e os nossos sentidos: “nós precisamos aprender a estimar o constante fluxo entre interior e exterior, que é a nossa própria vida” (7).
Nos seus projetos em Porto Rico e na Califórnia, ele utilizou as mais diversas estratégias para estabelecer uma linguagem moderna profundamente sintonizada com as particularidades climáticas. Nas escolas de Porto Rico, dispôs salas abrindo-se diretamente para os jardins, nas quais o ensino e a aprendizagem desenvolvem-se a partir do interior até o espaço exterior (8). Consciente do desafio de construir no deserto californiano, ao apresentar a casa Kauffman, ressaltou que “o deserto pode queimar… resistência e respeito mútuo são a base da amizade entre a casa e o deserto“. Assim, brises de alumínio “ajustam as condições de sol e ventos: abertos eles deixam passar as brisas nos dias quentes, fechados eles protegem contra os ventos, a areia e o sol” (9).
Richard Neutra, detalhes da estrutura e dos fechamentos e aberturas para ventilação para projetos de centros de saúdes urbanos em Porto Rico
Imagem divulgação [Richard Neutra, Architecture of Social Concern]
Os edifícios e os escritos de Neutra e de Costa, assim como outros arquitetos atuando no mundo, procuraram intermediar entre racionalidade, e universalidade, por um lado, e tradição, convenção, por outro, como forma de se adequarem ao clima do lugar. Eles demonstraram que tecnologia e herança cultural podem ser conciliadas com uma arquitetura que respondesse aos climas e culturas locais, sem recorrer a pastiches do passado ou a formas pretensamente orgânicas.
Essas formulações encontraram eco no ambiente arquitetônico recifense, onde Armando de Holanda se formou. Após retornar de seu mestrado na Universidade de Brasília e de sua pós-graduação no Bowcentrum de Rotterdam, Armando de Holanda iniciou sua atividade profissional no Recife, em 1967, onde encontrou uma arquitetura moderna consolidada e amplas possibilidades de atuação. Em sua intensa atividade profissional aplicou esses princípios em projetos de casas residenciais, edifícios multifamiliares, indústrias e outros.
O Roteiro para construir no nordeste sintetiza princípios que eram comuns a toda uma geração de arquitetos atuantes em Pernambuco e que ele também irá desenvolver em sua atividade profissional. Segundo Armando, a arquitetura deveria ser pensada como uma grande árvore:
“Comecemos por uma ampla sombra, por um abrigo protetor do sol e das chuvas tropicais; por uma sombra aberta, onde a brisa penetre e circule livremente retirando o calor e a umidade; por uma sombra amena, lançando mão de uma cobertura ventilada, que reflita e isole a radiação do sol; por uma sombra alta, com desafogo do espaço e muito ar para se respirar” (10).
Nas lições do livro, assim como em seus próprios projetos, percebe-se claramente a influência das antigas casas grandes de engenho com amplos terraços e sombras generosas. Armando estava interessado nos interiores despojados dos edifícios de nossa era colonial, que tinha apenas o necessário, na “bela tradição da casa do Nordeste, criando ambientes cordiais, que estejam de acordo com o nosso temperamento e com o nosso modo de viver” (11).
Ele reitera a necessidade de valorizar a força da natureza local, por vezes esquecida em prol de modismos, lembrando passagens de Gilberto Freyre que apontavam a incoerência dos costumes da aristocracia pernambucana do século 19 ao plantar vegetações europeias em canteiros geométricos no jardim da casa e se deliciar com frutas tropicais dos quintais.
Armando de Holanda, proteger as janelas. Redesenho de croquis de Lucio Costa de Sobre arquitetura
Imagem divulgação [Armando de Holanda, Roteiro para construir no Nordeste]
Armando reforça a noção de espaço contínuo, buscando reduzir as paredes, tornando-as mais finas, transparentes, semiabertas, seletivamente permeáveis, reduzidas ao necessário. Venezianas, brises e cobogós garantem a privacidade e, ao mesmo tempo, possibilitam a entrada do ar, criando ambientes sombreados, agradáveis e protegidos, que orquestram a vida familiar.
Além de buscar novas formas arquitetônicas, Armando propunha a continuidade dos padrões culturais definidos pelas formas de se relacionar com o meio ambiente. Para ele, esta sabedoria de uma cultura de lidar com o seu clima é que merecia ser preservada, fortalecendo nossa identidade cultural. Segundo seu amigo, o arquiteto Glauco Campelo, Armando foi:
“O arquiteto pernambucano de sua geração que melhor compreendeu os problemas do meio ambiente e da arquitetura do Nordeste. Na defesa dos bens culturais e naturais da região, ele esteve sempre voltado para a sua terra e a sua gente… Ele aplicou sua inteligência e sensibilidade na busca de novos caminhos para a harmoniosa integração dos valores de nossa história, de nossa raça e de nosso meio” (12).
A reedição deste livro faz-se muito oportuna, pois essas lições parecem estar sendo esquecidas, particularmente após a popularização dos equipamentos de ar-condicionado. Entretanto, desde o começo do milênio, a economia de energia, o reaproveitamento de água, a busca da melhor performance e a obtenção de selos de eficiência energética passaram a ter destaque entre as preocupações dos arquitetos. Estes desafios são importantes para a prática contemporânea e não devem ser negligenciados, mas a obra de Armando mostra que uma arquitetura boa e sustentável pode alcançar mais do que o simples atendimento a determinados índices e requisitos. A arquitetura vista pelo lado do ser humano deve privilegiar uma convivência adequada com o meio ambiente, filtrando os elementos da natureza, sem se perder em tecnicalidades periféricas ao fazer arquitetônico. A arquitetura dita sustentável deve ter uma continuidade com nossas práticas culturais, incluindo particularmente nossa relação com o clima de nossa região. Esta é a tradição do morar bem.
Notas
1Sobre este grupo, ver: BARBER, Daniel. The Form and Climate Research Group, or Scales of Architectural History in James Graham, ed. Climates architectures and the planetay imaginary Zurich, Lars Müller Publishers, 2016, p. 303-317.
2Publicado pela primeira vez em 1963, Design with Clima foi um dos livros mais pioneiros no campo e continua sendo uma referência importante para arquitetos. Neste livro, Victor Olgyay explora o impacto do clima na forma de projetar, identificando quatro regiões climáticas distintas e explicando o efeito de cada uma na orientação, movimentação do ar, local e materiais. Ele deriva princípios da biologia, engenharia, meteorologia e física, e demonstra como uma abordagem analítica para lidar com os efeitos do clima pode se fundir em um projeto de qualidade. Uma análise inovadora dos princípios da obra de Olgyay e de seu irmão gêmeo, Aladar Olgyay, podem ser encontrados em: LEATHERBARROW, David; WESLEY, Richard. Performance and style in the work of Olgyay and Olgyay. ARQ. v. 18, n. 2, 2014, p. 167-176.
3SERT, Josep Lluis. Windows and walls. In Progressive architecture, 1962, p.132.
4COSTA, Lucio. Uma Escola Viva de Belas Artes (1931); Razões da nova arquitetura (1936). In XAVIER, Alberto (Org.). Depoimento de uma Geração. São Paulo, Pini, 1987, p. 47-51; p. 26-43.
5COSTA, Lúcio. Uma documentação necessária (1937). In Arquitetura Civil 2: textos escolhidos da Revista do Iphan, São Paulo, MEC/Iphan/FAU USP, 1975, p. 93-97.
6NEUTRA, Richard. Residências/Residences. São Paulo, Todtmann & Cia, p.25-29.
7NEUTRA, Richard, Survival Through Design. Oxford, Oxford University Press, 1954, p. 151.
8NEUTRA, Richard, The architecture of social concern. São Paulo, Gerth Todtmann, 1948, p.76-117.
9NEUTRA, Richard. Mystery and Realities of the Site. Nova York, Morgan & Morgan Publishers, 1952, p.35.
10HOLANDA, Armando de. Roteiro para construir no Nordeste. Recife, MDU/UFPE, 1976, p.11.
11HOLANDA, Armando de. Roteiro para construir no Nordeste. Recife, MDU/UFPE, 1976, p.33.
12Citado em GOMES, Geraldo. Armando de Holanda. AU, n. 61, São Paulo, dez.1996.
Resenhista
Fernando Diniz Moreira
Referências desta Resenha
CAVALCANTI, Armando de Holanda. Roteiro para construir no Nordeste. Arquitetura como lugar ameno nos trópicos ensolarados. 3ª Edição. MONTEZUMA, Roberto; MARQUES, Isabel de Holanda (Orgs.). Brasília: CEPE – Companhia Editora de Pernambuco; Família Amando de Holanda Cavalcanti, 2018. Resenha de: MOREIRA, Fernando Diniz. Armando de Holanda. A tradição do morar bem. Resenha Online. São Paulo, n. 207, mar. 2019. Acessar publicação original [DR]