O conceito de “ritual” tem sido largamente debatido por antropólogos desde a criação da Antropologia como disciplina. Em arqueologia, o âmbito do ritual, bem como aquele da religião, foi, até recentemente, considerado como vago, impreciso, irracional e incerto, e, por conseguinte, amplamente evitado por grande parte dos arqueólogos. Em verdade, ritual era mais freqüentemente empregado sem claros critérios e aleatoriamente para nomear estruturas e achados cuja função era, a princípio, obscura para os arqueólogos, a ponto de se tornar “anedota” – tudo o que não tinha função prática aparente, passava, então, a ser designado como “ritualístico” (cf. Orme 218-19; Whitehouse 1996). A década de 90 trouxe, porém, um largo manancial de estudos, sobretudo na academia de língua anglo-saxã, preocupados com questões referentes à religião e às formas rituais, visando “reabilitar” o âmbito do ritual para a pesquisa acadêmica, rompendo com a visão do sagrado como epifenômeno e demonstrando sua relevância para a interpretação da cultura material. Entre os préhistoriadores, destacou-se sobremaneira o trabalho de Parker Pearson (1996) [1], que descortinou novas possibilidades de análise, tornando-se grande divisor de águas. Seguindo a linha de análise apontada por Parker Pearson, a tese de doutoramento de J.D. Hill (1995) tornou-se, sem sombra de dúvida, um marco no campo. Hill questionou profundamente os modelos de análise de hillforts para os assentamentos da Idade do Ferro em Wessex (Sul da Inglaterra). Refutando a idéia desses assentamentos como centros controladores da produção e de redistribuição nessas sociedades, propôs ele que tais assentamentos eram, em verdade, centros cerimoniais. Isto porque os depósitos em poços/covas nos assentamentos eram resultado de rituais e não de restos de lixo residencial, de modo que tais depósitos constituíram vias de ritualização da vida cotidiana.

É justamente na trilha indicada por Hill, que Bradley (doravante referido como B.), desenvolve seu Ritual and Domestic Life in Prehistoric Europe. Rompendo com a visão bipolar de “sagrado” x “profano”, “irracional” x “racional”, procura B. demonstrar a profunda relação entre o sagrado e a vida cotidiana, entre práticas rituais e a vida nos assentamentos da Europa pré-histórica desde o Neolítico até a Idade do Ferro. Fazendo uso dos trabalhos de Bell (1992) e de Humphrey e Laidlaw (1994), prefere ele, tal como Hill, o uso do conceito de “ritualização” ao de “ritual”, pois que se trata de prática, que, como define Bourdieu (1977), consiste em habitus, isto é, um conjunto de disposições habituais que define e in-forma as convenções sociais. Tal fornece ao pesquisador meios de compreender a performance ritual não como algo distante e/ou a parte do cotidiano, mas sim como permeando todas as instâncias da vida de uma comunidade.

Para tanto, B. estrutura seu argumento em sete capítulos, organizados em duas partes – “Parte 1 – a importância das coisas comuns” (capítulos 1 a 3) e “Parte 2 – onde incide a ênfase” (capítulos 4 a 7). Parte 1 consiste, em verdade, no desenvolvimento do artigo “A life less ordinary: the ritualisation of the domestic sphere in later prehistoric Europe” publicado por B. em 2003, e originalmente apresentado como palestra em Cambridge em 2002. No capítulo 1, B. define a problemática e abordagem teórica adotada no livro, propondo que, ao invés da tradicional distinção entre sítios sagrados e assentamentos, encontra-se, na Europa pré-histórica, uma união desses âmbitos. No capitulo 2 “A consagração da casa”, ele aponta como aspectos da vida doméstica (e, sobretudo, das estruturas de habitat) da Europa pré-histórica estão marcados por um significado ritual que os distingue e torna não-ordinários, a ponto de em Heuneburg o local de uma habitação de alto status ter sido utilizado como base para a construção de um montículo funerário (p. 57). No capitulo 3 “Uma questão de Cuidado”, ele demonstra como “na pré-história, o ritual deu à vida doméstica sua força, e [como], em retorno, a vida doméstica proveu uma organização de referência para rituais públicos. [Donde,] ritual e vida doméstica (…) formavam duas camadas que parecem ter sido precisamente superimpostas” (p.120).

A parte 2 procura, então, pontuar: 1) os contextos e locais onde tal superposição pode ser encontrada: agricultura (cap. 4), enterramentos, depósitos votivos e metalurgia (cap. 5); e 2) as performances de rituais públicos e rituais domésticos (cap.6). Neste último, B. mostra ser impossível traçar uma distinção entre oferendas rituais e o conjunto doméstico, posto que as atividades em assentamentos, monumentos e santuários não estavam dissociadas e seguiam o mesmo padrão.

A título de conclusão, o capítulo 7 desvenda novos pontos a serem abordados em pesquisas futuras seguindo esta forma de abordagem. Primeiramente, a transformação da relação homem-ambiente e da noção de propriedade com o desenvolvimento do processo de domesticação e sedentarização das sociedades pré-históricas européias. Depois, a inter-relação entre assentamentos, monumentos e santuários, a construção de enterramentos sobre assentamentos e/ou terras aráveis nas Ilhas Britânicas (no continente, ao contrário, os enterramentos encontram-se em terras não-aráveis), e o significado dos celeiros e poços de estocagem de alimentos, bem como sua relação com o sagrado, isto é, com a arquitetura de certas fontes sagradas e com os enterramentos em poços (muitas vezes realizados em antigos poços de estoque de grãos, haja vista os achados de Danebury). Finalmente, alerta ele para a necessidade de futura reflexão acerca das categorias teóricas empregadas para o estudo tanto da esfera ritual quanto da doméstica.

B. vem, com maestria, unir pontos que têm sido amplamente debatidos para o estudo das sociedades “pré-históricas” européias na academia de língua inglesa, a saber: 1) entender que ritual não se encontra vinculado tão somente à religião, mas que permeia toda a vida de uma sociedade; 2) a necessidade de compreender que grande parte dos achados arqueológicos de que dispomos advêm de contextos rituais (não somente em santuários e enterramentos, mas em fundações de casas, atividades artesanais, poços de estocagem e extração); e 3) a necessidade de abandonarmos a lógica simplista do “utilitário” x “simbólico” na interpretação desses achados.

Eis, pois, que uma nova forma de abordagem se consolida, oferecendo-nos a possibilidade de compreender as estruturas de assentamentos através de um viés menos simplista, menos corriqueiro, ressaltando, no dizer de B. (2003), “uma vida menos ordinária”.

Nota

1 Apesar de só ter sido publicado em 1996, este trabalho circulou entre os colegas ingleses desde 1990, causando grande impacto (Woodward 2002: 71).

Referências

BELL, C. Ritual Theory, Ritual Practice. New York/ Oxford: Oxford University Press, 1992.

BOURDIEU, P. Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University Press, Cambridge studies in social anthropology – 16, 1977.

BRADLEY, R. A life less ordinary: the ritualisation of the domestic sphere in later prehistoric Europe. Cambridge Archaeological Journal 13 (1), 2003, pp. 5-23.

HILL, J.D. Ritual and Rubbish in the Iron Age of Wessex: a Study on the Formation of a Specific Archaeological Record. Oxford: Tempus Reparatum, BAR British Series 242, 1995.

HUMPHREY, C. & LAIDLAW, J. The Archetypal Actions of Ritual: A Theory of Ritual Illustrated by the Jain Rite of Worship. Oxford: Clarendon Press, 1994.

ORME, B. Anthropology for Archaeologists: an Introduction. London: Duckworth, 1992, Chap. 5, pp.218-254.

PARKER PEARSON, M. Food, fertility and front doors in the first millennium BC. In: CHAMPION, T.C. & COLLIS, J.R. (eds.) The Iron Age in Britain and Ireland. Sheffield: University of Sheffield; J.R. Publications, 1996, pp.117-129.

RENFREW, C. (ed.) The Archaeology of Mind. Cambridge: Cambridge University Press, New Directions in Archaeology, 2001.

WHITEHOUSE, R.D. Ritual objects – archaeological joke or neglected evidence? In: WILKINS, J.B. (ed.) Approaches to the Study of Ritual. London: Accordia Research Institute/University of London, 1996, pp. 9-30.

WOODWARD, A. Sherds in Space: pottery and the analysis of site organisation. In: HILL, J.D. & WOODWARD, A. Prehistoric Britain: the Ceramic Basis. Oxford: Oxbow, Prehistoric Ceramics Research Group/Occasional publication 3, 2002, pp. 62-74.

Adriene Baron Tacla – Doutoranda em Arqueologia St Cross College, Oxford. E-mail: adrienebt@yahoo.com.br


BRADLEY, R. Ritual and Domestic Life in Prehistoric Europe. London: Routledge, 2005. Resenha de: TACLA, Adriene Baron. Práticas Rituais e Assentamentos Pré-históricos na Europa. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 57-59, 2006. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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