Cem anos após o acontecimento mais marcante na história social do trabalho, a Revolução Russa, a Projeto História assume o compromisso de levar ao leitor um volume inteiramente dedicado à temática Revoluções, revoltas e resistências. Este é, acima de tudo, um compromisso com a totalidade objetiva da história neste momento decisivo das lutas sociais diante da mais aviltante ofensiva do capital contra o trabalho. Revoluções, revoltas e resistências alude à temática do trabalho e ao seu filósofo mais substantivo, Marx, nas vésperas de se completar duzentos anos de seu nascimento. Vale notar todas as séries de adulterações do pensamento marxiano que desde a época contemporânea ao próprio filósofo já ocorriam. Marx era e continua a ser objeto de um conjunto de interpretações e leituras sumariamente equivocadas, cujo âmbito de gradações tem a envergadura do mais baixo reducionismo stalinista ao mais complexo debate gnosiológico, sem deixar de passar pela detração consciente originada na apologética do capital. Desfigurações desta monta são notadas especialmente nos momentos de crise estrutural do capital, transformando o filósofo do trabalho num monstro quasimodesco, uma foz delta na qual todos os ódios deságuam.
István Mészáros, o mais importante filósofo marxista desde György Lukács, teve protagonismo na análise da ordem sociometabólica do capital, nas questões da ideologia e, especialmente, na definição da particularidade do mundo pós-capitalista que se ergueu na União Soviética e que, agora, urge à problemática da emancipação a remoção deste pesado entulho. Mészáros morreu no outubro em que se completou o centenário da Revolução Russa e deixou uma obra inacabada, o que desnuda o seu vigor: aos 86 anos, Mészáros escrevia Para além do Leviatã, que, segundo ele próprio, tratava-se do seu mais ambicioso projeto intelectual, uma monumental crítica do estado que seria composta em três partes: o desafio histórico; a dura realidade; e a alternativa necessária. Por seus materiais preparatórios, sabemos que o desafio histórico de superar o capital é uma montanha do tamanho do Everest, que a dura realidade é tentativa de elaborar uma alternativa sociometabólica viável cuja tônica é a criação de um modo de produção inteiramente novo, com instrumental produtivo igualmente inédito e superior ao do capital, evitando, deste modo, sua recalcitrância e transcendendo radicalmente em sua essência a hierárquica divisão social do trabalho1.
Um dos méritos de Mészáros é apresentar a alternativa sociometabólica viável não como um postulado ético abstrato ou uma utopia revolucionária idílica, mas como uma possibilidade concreta. Muita vez reduzido a sonho bucólico ou comunismo primitivo, o desenvolvimento técnico-produtivo potencializa o próximo salto da humanidade em seus complexos organizativos. Esta é a verve que anima o artigo inicial do dossiê deste volume da Projeto História, composto pelo pesquisador Claudinei Cássio de Rezende. Neste artigo, intitulado A regência do capital sem capitalismo nas sociedades pós-capitalistas, o debate é em torno de István Mészáros e sobre o ineditismo da experiência socialista, verificado na análise do conjunto das sociedades pós-capitalistas, e apresentando a teorização de José Chasin sobre a barbárie do socialismo de acumulação. Luiz Antonio Dias, por sua vez, traz Notícias do outubro vermelho, de co-autoria de Rafael Lopes de Sousa, apresentando-nos os limites da imprensa brasileira – ainda muito dependente de agências internacionais – a partir da cobertura do Jornal Estado de S. Paulo logo após a sucessão revolucionária de 1917. Nesta ponte entre a revolução internacional e a questão nacional temos a análise de Yuri Martins Fontes sobre A Revolução Russa e a revolução latino-americana, tratando com especial atenção da recepção teórica no nosso continente da ideia de revolução a partir dos anos 1920. Recomposição importante que acentua a necessidade de se entender as estratégias revolucionárias dos processos de 1905 e de 1917, matéria tratada por Alessandro de Moura em O movimento operário russo e suas revoluções: as estratégias de 1905 e 1917. Marly Vianna, autora que é referência nacional sobre a Insurreição de 19352, trata da Importância da revolução socialista de outubro para o PCB. José Arbex Jr., autor premiado com um Jabuti3, junto a Danilo Nakamura escrevem sobre Os camponeses russos sob o olhar da intelligentsia revolucionária dos séculos XIX e XX. Neste artigo, os autores traçam o itinerário da organização populista (narodniki). O último artigo do dossiê trata das Cidades e tensões: movimentos sociais urbanos em São Paulo e a retomada dos territórios de luta em tempos de mundialização do capital, de Fabiana Scoleso.
Na seção de artigos livres, temos Denise Simões Rodrigues abordando Política, memória e educação na Amazônia paraense nos períodos colonial e imperial à luz da teoria de Cornelius Castoriadis, que é seguido por Damián Andrés Bil que aborda, em espanhol, A crise mundial do setor automotivo (1978-1982) e os efeitos sobre o complexo na Argentina. Elizangela Barbosa Cardoso escreve sobre Infância, Médicos e Mulheres em Teresina nas Décadas de 1930 e 1940, encerrando esta parte. As resenhas de Iago Augusto Martinez de Toledo e de Paulo Fernando Souza Campos apresentam novidades editoriais sobre o revisionismo histórico e a liquidação do pensamento revolucionário – perspicaz análise deste jovem pesquisador em tom de ensaio –, no primeiro, e sobre feminismo, etnia e classe, no segundo.
Em outubro realizamos na PUC-SP, coordenado por Antonio Rago Filho e seu núcleo, um grandioso seminário internacional sobre os 100 anos da Revolução Russa, contando com a presença de Michael Löwy, Tariq Ali, Tamás Krausz4, Miguel Vedda, Alan Woods, Sean Purdy, Osvaldo Coggiola e dezenas de outros estudiosos mundialmente reconhecidos por esta área de atuação intelectual.
Notas
1 Cf. o prefácio de Claudinei Cássio de Rezende na obra SANTOS, Antonio Carlos dos. Eric Hobsbawm e a Revolução Russa. Curitiba: Editora Prismas, 2017
2 VIANNA, Marly. Revolucionários de 1935. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
3 Prêmio Jabuti de melhor livro de reportagem por ARBEX, José. O século do Crime. São Paulo: Boitempo, 1998.
4 Destacamos a publicação da biografia de Lenin por Tamás Krausz pela Boitempo Editorial, intitulada Reconstruindo Lenin, fruto de mais de quatro décadas de trabalho deste historiador húngaro.
Antonio Rago Filho
Carlos Gustavo Nobrega de Jesus
RAGO FILHO, Antonio; JESUS, Carlos Gustavo Nobrega de. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.60, 2017. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.