Revoltas e Revoluções no Século XX | Temporalidades | 2017
“– Senhor, o povo tomou a Bastilha.
– É uma revolta? – Não, Senhor, é uma revolução.”
O diálogo entre o Duque de Liancourt e Luís XVI, na manhã do dia 15 de julho de 1789, nos remete diretamente às questões do presente dossiê: Revolta e Revolução. Ao longo dos últimos dois séculos, ambas foram constantes. Os séculos XIX e XX podem ser descritos como os séculos das revoltas e revoluções.
A ideia da revolta sofreu poucas modificações ao longo deste período. Grosso modo, pode ser descrita como ação de contestação de um estado de coisas ou autoridade, uma insurreição, um levante. Suas marcas seriam a contestação que, mesmo quando vitoriosa, não objetiva organizar uma nova ordem social ou sistema político pelo recurso da violência. Neste sentido, marcaria mais um descontentamento, uma recusa de uma situação dada e menos uma proposta de transformação ou de futuro. O que não nos autoriza a considerá-las como irracionais ou como não informadas por uma lógica de ação. Em “A economia moral da multidão”, Thompson demonstra a existência de noções legitimadoras nos motins de subsistência na Inglaterra do século XVIII.[1] A suposição e o resgate das convicções e concepções que informavam as revoltas também se fazem presentes nos estudos de Rudé e Hobsbawm [2] e são constitutivos da chamada História social.[3]
A constante que percebemos ao tratar das revoltas, na sua recorrência como ação, foi acompanhada de reflexões teóricas que alteraram as análises sobre a prática. No entanto, o percurso do conceito não sofreu revezes profundos e nem suscitou debates tão apaixonados como o de revolução.
Revolução, revoluções, revolucionário indicam um longo percurso pelas quais a ideia vem se transformando ao longo dos últimos séculos, pelo menos. A título de exemplo, recuperemos a crítica de Hobsbawm ao hoje clássico Da revolução de Arendt.[4]
A autora demonstra notável percepção sobre as motivações e os mecanismos psicológicos dos indivíduos (…) e tem lampejos ocasionais de clarividência, isto é, às vezes faz afirmações que, embora particularmente não sejam bem assentadas em evidência ou argumentos, impressionam o leitor como verdadeiras e reveladoras. Mas isto é tudo. E não basta. Haverá leitores, sem dúvida, que acharão a obra de Hannah Arendt interessante e proveitosa, mas é improvável que entre eles se incluam os estudiosos das revoluções, sejam eles historiadores ou sociólogos[5].
Por outro lado, a presença deste vocábulo nos projetos e movimentos políticos comprometidos em manter o status quo é revelador da trajetória sinuosa do termo Revolução. Os Nazistas nomearam como “revolução legal” as medidas legais implementadas entre 1933 e 1935. No Brasil, duas as ditaduras que surgiram para combater os movimentos sociais tidos como ameaças comunistas à ordem, autoproclamaram-se revoluções: 1930 e 1964.
As transformações da ideia de revolução nos últimos trezentos anos podem ser esquematizadas em momentos. O primeiro foi a substituição da restauração presente na Revolução Inglesa pela ideia de ruptura, inauguração, da novidade que emerge na Revolução Francesa.[6] Durante esta última, a inovação foi coroada com o surgimento e uso da noção de revolucionário. Segundo Condorcet, “de révolution, nous avons fait révolutionnaire; et ce mot, dans son sens général, exprime tout ce qui appartient à une révolution [7] ”. O revolucionário levou ao paradoxo de uma revolução feita em nome da liberdade mas que instaura um despotismo inédito: “O governo da Revolução é o despotismo da liberdade contra a tirania [8] ”. Em outras palavras, “a confluência paradoxal entre a defesa do regime republicano e a recusa de seus princípios [9] ”. Apesar da derrota da revolução em 1799 com o 18 Brumário e da França em 1815, a revolução continuou a ser uma fonte de inspiração ao longo do século XIX. Uma revolução que sempre recomeça, pois é sempre a mesma.[10]
Ao longo dos novecentos, a ideia de revolução se desloca de uma ocorrida no passado para outra que, no futuro, é animada pela ideia de igualdade, germe da eterna subversão. Em 1917, a Revolução de Outubro aparece como esta promessa sendo cumprida. Não por acaso, um dos primeiros relatos sobre a queda do czarismo recebe o título de Os dez dias que abalaram o mundo. [11] O evento desde seu início é saudado não em termos de uma história russa ou local, mas como transformação na história do mundo, da humanidade. Já nasce como espetáculo, como garantia de futuro grandioso, aspecto que a Revolução Francesa só adquiriu após 1792. As esperanças e o fascínio por Outubro de 1917 foram gerais e contaminaram todo o Ocidente.[12] Para muitos, como Goldman, a expectativa inicial se transformou em frustração.[13] Nesta chave é que devemos entender as considerações de Guérin em “Irmãos gêmeos, irmãos inimigos” em Por un marxismo libertário. [14]
Em resposta às mobilizações e partidos que buscavam reproduzir à Revolução em seus países, apareceu no entre guerras movimentos conservadores nacionalistas antiliberais e anticomunistas, a chamada Terceira Via, que incorporou em seu vocabulário o termo revolução. Este recurso pode ser interpretado tanto como evidência do capital simbólico da ideia, quanto a sua aceitação junto aos grupos descontentes.
Paralelamente, duas noções se confundem no conceito: o projeto de transformação social e o momento de assalto ao poder. Assim, as duas ideias que o Duque de Liancourt distinguia em 1789, reencontram-se após 1917.
Após 1917, revolução passou a se referir a 1917 e não mais a 1789. A vitória de Outubro resultou, apesar das críticas anarquistas e mesmo liberais, no aumento de adeptos e defensores da revolução. De um lado, assistimos a criação de Partidos Comunistas no mundo inteiro ao longo da década de 1920, por inspiração soviética e orientação da Terceira Internacional. Nos anos 1930, a proposta de aliança com a democracias liberais para o combate ao fascismo aumenta esse prestígio. Ao término da Segunda Guerra, nas disputas com os EUA, a pátria da Revolução apoia os movimentos que se opunham à dominação ocidental direta ou indireta, ao colonialismo e ao imperialismo. Por conseguinte, a revolução aparece como a forma de luta tanto contra essa dominação, quanto contra as injustiças que a constituem. Os movimentos do chamado Terceiro Mundo buscam a sua libertação na chave da revolução.
Se 1917 foi um espetáculo, seu final em 1991 foi um anticlímax. A URSS ruiu por dentro, não foi derrotada por nenhum de seus inimigos históricos e não deixou uma civilização de herança.[15] No centenário da Revolução, as comemorações, publicações e debates acadêmicos em vários países não tiveram equivalente na Rússia ou qualquer das ex-repúblicas soviéticas.
Os artigos aqui reunidos tratam do tema da revolução tanto na chave dos movimentos inspirados de alguma forma na revolução, estes pensados como transformação e construção de uma sociedade menos injusta, quanto como conceito que nos ajuda a organizar e pensar os processos históricos. Os trabalhos nesse dossiê apresentados possuem, ainda que pesem as diferenças em suas empirias, algumas linhas de força, centradas especialmente na discussão da luta contra diversos tipos de dominação.
A discussão do republicanismo, defendida em “O Republicanismo de Hannah Arendt: Pensamento contra a barbárie”, torna-se imperativa pelos limites entre legalidade e legitimidade postos em questão pelo governo revolucionário. Já o artigo “Cara y cruz: a Conferência Tricontinental sob os olhares do semanário Marcha” estuda a influência da Revolução ao longo do século XX, com especial eco na América Latina. “O último discurso de Amílcar Cabral: um projeto de Estado binacional para Guiné-Bissau e Cabo Verde” enfrenta a questão da luta contra o domínio colonial nesses países de África. Por sua vez, “Cultura política comunista em Montes Claros – reflexões e apontamentos” trata da militância nos idos de 1948 a 1970. Por fim, redes de solidariedade e sociabilidade internacionalistas na presença de estudantes na URSS podem ser avaliadas em “Educação e Clandestinidade: memórias de comunistas brasileiros na União Soviética (1953-1955).
Notas
1. THOMPSON, E. P. La economia moral de multitud em la Inglaterra del siglo XVII:. Tradición, revuleta e lucha de clase. Barcelona, Crítica, 1979, pp. 62-134 ; Ver também ____. A História vista de baixo. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, Unicamp, 2001, pp. 185-202. A data original da publicação está indicada entre colchetes.
2. HOBSBAWM. E. J. Rebeldes Primitivos. Rio de Janeiro, Zahar, 1978; RUDÉ, G. A multidão na História. Rio de Janeiro, Campus, 1991; RUDÉ, G. e HOBSBAWM. E. J. Capitão Swing. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982; HOBSBAWM. E. J. Bandidos. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1975; RUDÉ, G. Ideologia e protesto popular. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
3. Dos décadas de Historia Social. Historia Social. Valência, nº 10, Primavera-verano 1991.
4. ARENDT, H.. Da Revolução. São Paulo, Ática, 1988.
5. HOBSBAWM, E. J. Hannah Arendt e a Revolução. Revolucionários. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 208.
6. _______. Da Revolução, 1988; OZOUF, M. Revolução. Dicionário crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, PP. 840-853
7. CONDORCET, Antoine-Nicolas de. Sur le sens du mot “révolutionnaire“. Journal d’Instruction sociale. 1 jun 1793.
8. ROBESPIERRE, M. de. Sobre os princípios de moral política que devem guiar a Convenção Nacional na administração interna da República. Discurso e relatórios na Convenção. Rio de Janeiro, Eduerj | Contraponto, 1999, p. 150.
9. BIGNOTTO, N. As aventuras da virtude. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 311.
10. TOCQUEVILLE, A. de. Lembranças de 1848. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 87.
11. REED, J. Os dez dias que abalaram o mundo. São Paulo: Círculo do Livro, S | d.
12. FERRO, M. O Ocidente diante da Revolução Soviética. São Paulo: Brasiliense, 1984.
13. GOLDMAN, E. O fracasso da Revolução Russa IN: WOODCOCK, G. Grandes escritos anarquistas. Porto Alegre: LP&M, 1981. pp. 140-150.
14. GUÉRIN, D. Por un marxismo libertario. Barcelona: Jucar, 1979.
15. FURET, F. O passado de uma ilusão. São Paulo, Siciliano, 1995.
Luiz Arnaut – Universidade Federal de Minas Gerais.
ARNAUT, Luiz. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.9, n.2, maio | ago. 2017. Acessar publicação original [DR]