A utilização de jornais e revistas como fontes no trabalho de pesquisa é algo corriqueiro no fazer historiográfico. Vez por outra recorremos a eles para verificar dados, analisar discursos, relacionar idéias dominantes de um período ou personagem que buscamos conhecer. Poucas vezes, no entanto, vemos esses veículos de comunicação no centro da cena. A busca dos significados de sua criação e dos detalhes de suas relações com a cultura e sociedade da época não é tratada com o rigor necessário, sendo subdimensionada na pesquisa.
A historiadora Ana Luíza Martins resolveu inverter essa lógica. Centrando foco na imprensa periódica das quatro primeiras décadas da República, através do estudo específico das revistas, a pesquisadora acabou compondo um verdadeiro painel da cultura e dos meios literários e jornalísticos paulistanos entre os anos de 1890 e 1922. O resultado pode ser conferido em Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922), produto de sua tese de doutorado na USP.
Utilizando-se de uma narrativa prazerosa, a autora busca recompor para nós, como num quadro, as condições conjunturais que permitiriam o florescimento e consolidação das revistas. Um dos méritos do trabalho, aliás, é essa recomposição, pela riqueza em detalhes. O que vemos é uma São Paulo, em plena virada do século, no compasso do desenvolvimento de sua agricultura movida pelo café e de uma indústria e comércio emergentes. A velocidade das transformações no espaço urbano corria no ritmo de trens e vapores e, mais tarde, no das rotativas, de onde surgiriam, em cores, as páginas de dezenas de títulos de revistas.
Estas traziam em seus textos e ilustrações a idéia de progresso e “civilidade”, profundamente inspiradas pelo periodismo francês. Muitos dos títulos, nos primeiros tempos, eram produzidos por brasileiros da elite agrária em seus escritórios em Paris. Essa relação foi fundamental para a divulgação de hábitos e produtos em voga na França, através da publicidade. A realidade das casas reais européias, o embevecimento com os hábitos aristocráticos e a vida elegante e refinada da nobreza, em permanente lazer, serviam como alimento para o panorama Belle Époque vivido em São Paulo. A cidade era assim vendida como a “Capital Artística”, a “Paulicéia”. O papel couché e a arte, presente nas riquíssimas gravuras, procuravam dissipar os rastros de tensão entre as classes e os conflitos urbanos em um espaço que se pretendia saneado e ordenado.
Num país onde 80% da população ainda era analfabeta, São Paulo destacava-se pelos investimentos públicos na esfera escolar, embora para a maioria da população, isso não representasse mais que aprender a ler, escrever e contar. O “saber ler” era chave para a participação do “cidadão” nas decisões políticas e no mundo da informação. Sem a presença de uma indústria livreira e com a dificuldade de acesso e entendimento dos jornais, “paladinos da verdade”, a revista com seus textos leves, ligeiros e profusão de ilustrações e gravuras, depois fotografias, seduzia pelo encanto da leitura facilitada e atraente, feita para entreter. Não era à toa que as revistas eram chamadas de “sorriso da sociedade”.
Do ponto de vista da história da imprensa brasileira, a pesquisa de Martins é de fundamental importância por recuperar um momento de transformações no fazer jornalístico. Isso se dá tanto no plano das condições estruturais para o desenvolvimento industrial – produção de papel, formação de pessoal qualificado para o trabalho em oficinas gráficas, estratégias de divulgação e venda dos produtos – como também no campo das representações ideológicas sobre esse fazer.
As contendas entre literatos e jornalistas são situadas nesse contexto de mudanças. O trabalho nas redações feito, em grande parte, por escritores, exigia a adaptação a um regime mais rígido de horários e novas formas de texto. A figura do jornalista boêmio dava lugar ao profissional disciplinado, apto a responder às necessidades de produção de um mercado competitivo e, a partir dali, remunerado.
O debate estimulante entre jornalismo e literatura no Brasil pode encontrar ali o seu elo perdido, uma vez que estamos tão acostumados a pensar essa questão, através da bibliografia norte-americana. A autora relata como a mercantilização imposta aos jornais vai gerar um mal-estar entre os literatos. Subjugados em sua arte pelo “vil metal”, estes vão procurar nas revistas a maneira de se expressarem com integridade, obtendo a qualificação e o reconhecimento desejados como artistas e não como “operários da notícia”.
O trabalho de Ana Luíza Martins também nos fornece pistas para pensar a questão da linguagem jornalística propriamente dita, a partir da contribuição literária das revistas aos campos da reportagem e opinião. Mas a forte presença dos escritores e poetas nas revistas não estava retratada apenas nos contos, crônicas e sonetos publicados pelas ilustradas. Está também na publicidade e propaganda que estabelecia relação direta do comércio e indústria com essas publicações, afinal “o reclame é a vida do comércio”. Quem imaginaria Olavo Bilac como um dos nossos primeiros publicitários, divulgando em sonetos as vantagens do xarope Bromil? A revista era a embalagem ideal para a divulgação de bebidas, medicamentos e novidades tecnológicas da indústria em seu começo.
O papel das revistas como formadoras e mesmo educadoras da sociedade paulistana pode ser depreendida do escrutínio feito pela autora nas bibliotecas de três importantes colaboradores das revistas e agitadores culturais nesse momento: Eduardo Prado, Lima Barreto e Mário de Andrade. Imbuída dos instrumentos da história da leitura, ela esmiúça e analisa as várias formas de consumo e utilização dessas publicações para os interesses de grupos culturais diversos na cidade de São Paulo, nos dando uma idéia do ecletismo desse veículo de comunicação. Ficamos sabendo que, para muitos dos intelectuais da época, as revistas ocuparam um papel tão importante quanto os livros.
As várias imagens de São Paulo, unificadas pela idéia do progresso e modernidade, nas publicações destinadas à agricultura, ciência, comércio, agremiações literárias, ligas de operários e ao público feminino, são cuidadosamente analisadas na pesquisa. O livro nos brinda ainda com ilustrações de capas, anúncios e gravuras, retirados de algumas das publicações estudadas. Estes elementos gráficos e artísticos só vêm somar informações ao texto denso e bem trabalhado de Ana Luíza Martins nessa que, sem dúvida, pode ser considerada obra de referência na história da imprensa brasileira.
Resenhista
Ana Rita Fonteles Duarte – Universidade Federal do Ceará.
Referências desta Resenha
MARTINS, Ana Luíza. Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp; Fapesp; Imprensa Oficial do Estado, 2001. Resenha de: DUARTE, Ana Rita Fonteles. Trajetos. Fortaleza, v.1, n. 2, 2002. Acessar publicação original [DR]
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