Retrotopia | Zygmunt Bauman
As primeiras publicações do autor surgiram no Brasil, nos anos de 1970. Poucos textos foram traduzidos nas décadas seguintes, todavia ocorrendo uma inflexão editorial em 1998, com O mal-estar da pós-modernidade e Modernidade e holocausto. Alguns anos depois, com Modernidade Líquida, esse escritor polonês tornou-se conhecido e apreciado para além do ambiente acadêmico e começou a ser discutido como teórico da modernidade líquida. A partir de então, seus livros eram traduzidos aqui tão logo lançados originalmente na Inglaterra, onde lecionou. Duas características pouco comuns destacam-se: escritor prolífico e editoração rápida, ambas de alta qualidade. Mais de quarenta títulos estão publicados no Brasil. Retrotopia, lançado na Europa, em 2017, foi o último escrito pelo autor, falecido nesse mesmo ano.
Bauman expôs, ao periódico alemão Der Spiegel, em setembro de 2016, o projeto sobre o qual trabalhava e que se transformaria no livro. Terrorismo, crise financeira, estagnação econômica, desemprego e precariedade colocavam em xeque a ideia de progresso, destruindo esperanças e gerando desapontamentos: “uma vez que não consigo encontrar a felicidade no futuro, volto-me para o passado” (BAUMAN, 2016, p. 124). A rearticulação temporal quanto ao novo termo não era privilégio dos estudos do sociólogo polonês naquele momento. Enquanto Bauman rascunhava seu projeto sob o espírito de desencantamento, era lançado o livro de mesmo título escrito pelo norte-americano John Michael Greer. O romance futurista tem como cenário uma América do Norte esfacelada por conflitos e misérias. Em meio às novas repúblicas decadentes, somente uma alcança a prosperidade ao voltar-se para o passado na busca de modelos.
A expressão retrotopia, em rápida observação, no Google books e Google acadêmico, já constava em publicações da década de 1970. O artigo Retrotopia: critical reason turns primitive foi publicado em abril de 1998, e constou posteriormente como capítulo em Schools of thought: twenty-five years of interpretative social Science. Seu autor, Istvan Rev, é professor de História e Ciência Política na Universidade da Europa Central em Budapeste (Hungria). O substantivo aplica-se à visão dos intelectuais de esquerda, principalmente nos países europeus, por trás da Cortina de Ferro na década de 1960, ao desviarem-se da utopia orientada para o futuro e voltarem-se para tempos românticos pré-revolucionários em comunidades camponesas. O verbete retrotopia ainda não consta nos dicionários. Trata-se de neologismo retrabalhado, e não criado por Bauman, todavia somente com seu livro o termo difunde-se.
O uso do prefixo retro é pródigo na criação de neologismos. Entretanto nada se compara em utilizá-lo com um substantivo tão expressivo nas Ciências Humanas. Há, também, os não usuais retroutopia e retro-topia. De origem grega, utopia significa não lugar ou lugar inexistente. Bauman salta cinco séculos (2016-1516) para contrastar o título do famoso livro de Thomas More (1478-1535): Utopia é o nome dado à ilha imaginária com sistema sociopolítico ideal. Do humanismo no século dezesseis, passando pelo misticismo aos projetos sociais no conturbado dezenove, o termo agregou distintos significados. Cabe destacar a miríade no ciclo centenário do lançamento de Do socialismo utópico ao socialismo científico (1892), de Friedrich Engels, até o final da experiência socialista no leste europeu, em 1991. O terceiro livro de Bauman, editado em inglês, apareceu pouco antes do estertor dessa fase: Socialism, the active utopia (1976). Quarenta anos antes do projeto de Retrotopia, aquele texto, pouco mencionado, explorou formas possíveis que a utopia socialista poderia assumir nas sociedades industriais ao final do século vinte.
Na Sociologia contemporânea, destacam-se os trabalhos da socióloga Ruth Levitas na Universidade de Bristol (Inglaterra): The concept of utopia (1990) e Utopia as method: the imaginary reconstitution of society (2013). A autora parte da premissa quanto à urgência em reconciliar sociólogos e utopistas e, nessa perspectiva, defende um conceito mais positivado, flexível e otimista. Os graves problemas neste início de milênio (crises econômica, ecológica e europeia em particular) exigem “não só um revisionismo do conceito de utopia em quadros mais benéficos, mas também reconhecer as características utópicas da Sociologia” (TEIXEIRA, 2016, p. 261). Contudo utopia como assunto acadêmico recente extrapola os limites disciplinares. No livro organizado por Jörn Rüsen, Michel Fehr e Thomas W. Rieger, Thinking utopia: steps into others worlds (2007), por exemplo, os autores não compartilham a moda de declarar o fim da utopia após a ruptura dos sistemas socialistas no leste europeu. Deve-se reabilitar o pensamento utópico da sua estreiteza em diversas áreas do conhecimento.
Muito antes de os estudiosos aporem o prefixo retro ao conceito tão polêmico para lhe dar distinto sentido, foram criadas distopia e, a menos utilizada, antiutopia. Esses termos significam lugar ou estado imaginário no qual se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação. Entretanto, se o foco da retrotopia está no passado, o olhar distópico continua a estender-se, como o utópico, para o futuro. Famosas distopias foram criadas por Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo (1932), e George Orwell com o seu 1984 (1949). A crise econômica mundial e a particular fragilidade da União Europeia fazem, outrossim, com que acadêmicos tracem cenários tenebrosos. Nesse sentido, o professor de Economia William Mitchell, um dos fundadores da Teoria Monetária Moderna, publicou o livro Eurozone dystopia, groupthink and denial on a grand scale em 2015.
O livro de Bauman está inserido nesse debate editorial e interdisciplinar brevemente supraexposto. Nas palavras introdutórias, após referenciar a obra maior de Thomas More, ele expõe seu entendimento de retrotopia: “visões instaladas num passado perdido/roubado/abandonado, mas que não morreu, em vez de se ligarem a um futuro ‘ainda todavia por nascer’ e, por isso, inexistente […]” (BAUMAN, 2017, p. 10). A negação da negação do topos de More decorre do que o século vinte ofereceu. A utopia futurista baseada no progresso descambou em epidemia global de nostalgia. O espírito retrópico almeja reconciliar segurança e liberdade. Os líderes da União Europeia, por exemplo, recorrem ao passado na busca de soluções para os seus problemas atuais.
No capítulo primeiro, De volta a Hobbes?, Bauman analisa a falência do Estado moderno, ao longo do processo civilizatório, para extirpar a agressividade da natureza humana: “Nós devemos classificar a noção de um mundo livre de violência talvez entre as mais belas […] utopias” (BAUMAN, 2017, p. 22). Caminha-se de volta ao mundo esboçado por Thomas Hobbes (1588-1676), mas um retorno muito particular. Guerra de todos contra todos, onde leviatãs ‒ fragilizados, irresponsáveis, tercerizados ‒ não possuem mais o monopólio de estabelecer a fronteira entre violência legítima e ilegítima. Mas qual o principal componente nos fertilizantes que irrigam as sementes da violência? O acúmulo esmagador e incontrolável de ódio, alerta Bauman, oriundo da humilhação, do rebaixamento, da degradação e exclusão social. A sociedade é, hoje, solo fértil para germiná-lo: frágeis laços humanos, indivíduos concorrentes e autossuficientes, desregulamentação e atomização das estruturas políticas, divórcio entre política e poder.
A falência do Estado moderno em controlar a violência é seguida pela sua incapacidade em estabelecer a separação entre nós e eles. No capítulo segundo, o autor analisa a nova onda de tribalismo proveniente do curto-circuito ao longo do processo de mudança de paradigmas, em que a concepção do desejo de independência em relação à sociedade por comunidades se encaminhava para o desejo de pertecimento à sociedade de indivíduos. O medo inspirado pelo futuro e a perda da confiança na capacidade coletiva de aliviar seus excessos ressuscitam a mentalidade tribal. O sociólogo retoma a questão alteridade versus identidade no debate antigo, mas não ultrapassado, sobre nações e nacionalismos. Da Conferência de Vestfália (1648) aos atuais apoiadores de Donald Trump, Bauman revela as ferramentas utilizadas na formação dos grupos com os quais ou em oposição aos quais as pessoas tendem a identificar-se ao longo do tempo. As recentes revoluções culturais digitais desempenham papel de destaque nesse processo histórico de “afastar-se das tribos” para “de volta às tribos”.
Em De volta à desigualdade, Bauman interroga-se sobre as razões que levaram ao fim do armistício entre capital e trabalho na guerra travada contra a pobreza no século vinte. A globalização, ao provocar o cancelamento unilateral, pelos patrões, da reciprocidade na depedência capital-trabalho, agravou a desigualdade, não só entre países, mas dentro das sociedades desenvolvidas no hemisfério norte. O aumento das privações pessoais nesse processo crescente de concentração de riqueza está acompanhado de diminuição da Política com “Pê” maiúsculo e destruição da solidariedade. Na sociedade individualizada e privatizada, corre-se o risco de instaurar- se a sensação da privação incurável: “Está fadada a continuar a ser meu destino não negociável” (BAUMAN, 2017, p. 96). Diante disso, o sociólogo discute estudos recentes sobre os benefícios da renda básica universal como solução para o grave problema de desaparecimento do próprio trabalho (emprego seria o termo mais adequado). A utopia baseada no trabalho não é mais, reconhece ele, o caminho para aliviar a desigualdade.
No passado, as pessoas sofreram muito para compreender que poderiam melhorar suas condições agindo coletivamente. No capítulo final, ele discute como esses laços solidários esfacelaram-se ante rivalidades e competições atuais. Como usuários e clientes esperançosos, desiludidos ou resignados, vimos nossa insatisfação por necessidades genuínas ser substituída pela satisfação ilusória de necessidades fantasmagóricas. O narcicismo contemporâneo, em sua autoabsorção e ilusão de grandeza, fomenta o “eu imperial”. Cegos pelo ego, flagelando-nos por nossas próprias culpas, racionalizando o egoísmo, encolhemo-nos no restrito mundo uterino. Experiências de vazio interior, solidão e inautenticidade estão nos conduzindo, fatalmente, às compras no mercado de conselheiros-terapeutas. As ilusórias zonas de conforto, câmaras de eco, sala de espelhos não são mais suficientes para aplacar “o medo do futuro no presente exasperantemente caprichoso e incerto” (BAUMAN, 2017, p.141).
Ao longo dos quatro capítulos, Bauman expõe e analisa as correntes “de volta para”: Hobbes, tribos, desigualdade, útero. Chegamos ao epílogo com nó na garganta, questionando-nos: então, não há alternativa? Aqui desponta a arte do grande pensador. Erudição (passado) e insight (presente) consturados com enlevos de esperança (futuro). A história da humanidade pode ser contada como sucessivas elevações no âmbito da integração societária. A categoria nós aumentava justapondo-se a eles. Contudo, pela primeira vez neste longo caminhar do Homo sapiens, o desafio está na integração das pessoas sem separação, que lhes servia de referência. Para a assunção da nova consciência cosmopolita, teremos de abrir mão da divisão nós versus eles. Deveremos tomar parte no planejamento e na construção de outra cultura: perceber e tratar uns aos outros como “parceiros válidos de diálogo” a fim de voltarmos a olhar adiante.
As reflexões de Retrotopia dialogariam com os estudos de outros pensadores, caros às teorizações históricas. Hannah Arendt problematiza a lacuna entre o passado e o presente com o rompimento da tradição, desenvolvimento e progresso como palavras-chave da historiografia moderna, o moderno conceito de processo. Reinhart Koselleck trabalha, por meio das categorias de experiência e expectativa, a dissolução do topos historia magistra vitae, o surgimento do moderno conceito de história, os prognósticos, a aceleração e os diferentes estratos do tempo. Jörn Rüsen analisa o surgimento da consciência histórica e a constituição de sentido sobre a experiência do tempo. François Hartog propõe o uso de regime de historicidade a fim de produzir inteligibilidade no modo pelo qual articulamos passado, presente e futuro. E é esse autor que dialogaria, de maneira mais instigante, com Bauman, por meio da hipótese de nova postura dos indivíduos com o tempo: o presentismo (HARTOG, 2017).
Zygmunt Bauman utiliza, no início e final de seu texto, a imagem do anjo da história cujas asas impelem-no para frente, sob o vento do progresso, mas com olhar para as ruínas do passado. Releitura de Walter Benjamin, nas Teses sobre o conceito de história (1940), do desenho Angelus Novus (1920) de Paul Klee. Talvez, a leveza dessa aquarela possa ser substituída por outra imagem mais adequada à visão retrópica. Em The Language of the birds (2013), Anselm Kiefer utiliza chumbo na representação de livros com asas, pois se trata do material mais adequado, segundo ele, para representar a história humana. Nessa escultura, a dificuldade do esquecimento choca, alerta e sugere nova produção de saberes perante a opressão ou obsessão do passado e o esforço para alçar voos adiante. E, sob novos olhares, questiono como os educadores no Brasil, de hoje, poderiam construir pontes para viabilizar o diálogo, proposto por Bauman, num cenário de intolerância e incapacidade de discussões racionais. Rearticular lembrança e esperança sem eleger a tirania de nenhuma categoria temporal possivelmente seja um bom começo.
Referências
BAUMAN, Z. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
______. Nationalismus ist ein Ersatz, Der Spiegel, Hamburg, n. 36, p. 122- 125, 3 sep. 2016.
______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
______. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
______. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
______. Por uma sociologia crítica: um ensaio sobre senso comum e emancipação. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
______. Sociologia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1976.
______. Socialism. The active utopia. Sidney: George Allen & Unwin, 1976.
GREER, J. M. Retrotopia. Danville: Founders House, 2016.
HARTOG, F. Crer em História. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
MITCHELL, W. Eurozone dystopia, groupthink and denial on a grand scale. Cheltenham: Edward Eldar, 2015.
REV, I. Retrotopia: critical reason turns primitive. In: SCOTT, J. W.; KEATES, D. (Ed.) Schools of thought: twenty-five years of interpretive social science. Princeton: PUP, 2001. p. 364-387.
______. Retrotopia: Critical Reason Turns Primitive. Current Sociology/ Sociology contemporaine, London, v. 46, n. 2, p. 51-80, apr. 1998.
RÜSEN, J.; FEHR, M.; RIEGER, T. (Ed). Thinking Utopia. Steps into other worlds. New York: Berghahn Books, 2007.
TEIXEIRA, M. A. de A. Utopia como método: a reconstituição imaginária da sociedade. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 261-265, jan./abr. 2016.
Hugo Hruby – Doutor em História pela PUCRS hugohruby@gmail.com
BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. Resenha de: HRUBY, Hugo. Entre o passado e o futuro: retropias, utopias e distopias. Dimensões. Vitória, n.44, p. 294-302, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]