Retrato do Brasil em cordel é o mais recente livro do pesquisador norte-americano Mark Curran sobre a literatura de cordel brasileira. Professor aposentado de Língua Portuguesa e Estudos Brasileiros da Arizona State University, Curran é autor de vários livros e artigos sobre o cordel desde os anos 1960, em um contexto no qual vários pesquisadores estrangeiros vieram ao Brasil para estudar esta literatura, vista então como a expressão da cultura popular nordestina e brasileira.2
Mark Curran informa na “Introdução” que o livro “não é teórico em sua abordagem; ao contrário, é descritivo e, principalmente, informativo”, tendo como objetivo “contar uma estória, recontar o que o cordel (um meio folclórico-popular) diz dos brasileiros e do Brasil.” (CURRAN, 2011, p. 16). Desse modo, o autor deixa claro que o livro não se destina exclusivamente ao meio acadêmico, mas sim ao público em geral, utilizando para isso uma linguagem bastante acessível.
A obra também apresenta uma farta quantidade de imagens com as capas dos folhetos de cordel ilustrando os temas tratados, o que mostra ser de grande atrativo ao leitor. Além disso, o livro possui relatos da trajetória de pesquisa de Mark Curran com detalhes de suas viagens pelo Brasil, principalmente pelo Nordeste, apresentados como uma espécie de “apêndice” dos capítulos, o que aproxima o leitor do contexto em que foram realizadas as pesquisas de Curran.
O livro, de 365 páginas, possui dez capítulos denominados de “Álbuns”. Cada álbum trata de um determinado tema presente na literatura de cordel, que são os mais variados possíveis: desde a religião a heróis como Carlos Magno e Lampião; a seca e as migrações; as pelejas, o gracejo e o futebol; os assuntos políticos como Canudos, a Era Vargas, e a Ditadura Militar; os acontecimentos externos, como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial; os temas “modernos”, como o movimento feminista e homossexual, a AIDS e a violência.
Nesse sentido, o grande mérito da obra de Mark Curran é a utilização de uma expressiva quantidade de folhetos, o que o possibilitou a investigar uma variedade de temas que vão além daqueles tradicionais da literatura de cordel, como os romances, o cangaço e a seca, temas já bastante discutidos. Assim, apesar da obra não ser voltada para o meio acadêmico, traz várias contribuições para as pesquisas sobre o cordel. Curran trabalha com temas pouco conhecidos no cordel, como as religiões espíritas e afro-brasileiras, analisados no Álbum II – “As manifestações”. Segundo o autor, o cordel geralmente “não apresenta o espiritismo afro-brasileiro sob uma ótica favorável; o ‘catimbozeiro’ ou ‘xangozeiro’ é visto como praticante de cultos supersticiosos e voltados para o mal”, mas nas histórias “podem revelar-se vários pontos de vista.” Curran cita o poeta Rodolfo Coelho Cavalcante, “adepto do espiritismo kardecista”, mas também “um editor com visão comercial” que “acreditava nos direitos de todas as religiões”. (CURRAN, 2011, p. 72).
Outra discussão importante está no Álbum IX, “A vida está cada vez mais difícil”, no qual Mark Curran aponta transformações no cordel. O autor aponta que a partir da década de 1960 a maioria dos folhetos trata “muito mais do momento ‘atual’, dos acontecimentos, notícias e problemas do tempo presente. Passara a época dos antigos romances europeus e daqueles imitados no antigo Nordeste.” (CURRAN, 2011, p. 275). Segundo Curran, mesmo que muitos títulos ainda possam apresentar a antiga visão da luta entre o Bem e o Mal, “os poemas tratam, definitivamente, de temas ‘modernos’ e preocupações do fim do século.” (CURRAN, 2011, p. 275).
Dentre os temas modernos, há a questão do meio ambiente, bastante discutido pelos poetas. Mark Curran aborda assuntos tratados pelos poetas, como a bomba atômica e o poder nuclear, e os efeitos que elas produzem na natureza, a poluição nas grandes cidades e o desmatamento da floresta amazônica. O autor cita o folheto Não Mate a Natureza, do poeta Alberto Porfírio, de 1979, que defende uma “visão anticapitalista” ao descrever os danos causados no meio ambiente: “o clima do planeta foi transformado pela interferência do homem nos ‘pulmões do planeta’, os pesticidas e inseticidas alteraram o equilíbrio natural da natureza, e os testes atômicos envenenaram grande parte do planeta.” (CURRAN, 2011, p. 308).Dessa maneira, Curran aponta que o cordel continua tratando de temas atuais, de fácil reconhecimento pelos leitores de hoje.
Mesmo com o aviso do autor de que o livro não é teórico e acadêmico, podemos identificar o modo como Mark Curran compreende o cordel. Para Curran, o cordel é um objeto “folclórico-popular”, sendo da “cosmovisão do homem comum”. O valor desta literatura para o autor, “não reside apenas na qualidade humilde da poesia em si, mas no dizer de um povo e de uma nação.” (CURRAN, 2011, p. 14).
Curran também acrescenta que o cordel é o “produto dos brasileiros pobres e desprivilegiados, é a história ‘não oficial’ de grande parte do Brasil, isto é, o retrato não-oficial.” (CURRAN, 2011, p. 18).
O modo como Curran compreende a literatura de cordel guarda várias semelhançascomas pesquisas do folclorista Câmara Cascudo. De fato, a concepção do cordel como objeto do folclore e a sua ligação com a questão da identidade nacional já vinha sendo discutida por Luís da Câmara Cascudo desde a década de 1930. Cascudo entende o cordel como Literatura Popular, a qual “é reflexo poderoso da mentalidade coletiva em cujo meio nasce e vive”, retrato do seu “temperamento, predileções, antipatias, fixando o processo de compreensão, do raciocínio e do julgamento que se tornará uma atitude mental inabalável.” (CASCUDO, 1979, pp. 12-13).
Devemos levar em conta que embora Mark Curran permaneça fiel às sua ideias, fruto da época de suas pesquisas que remonta aos anos 1960, alguns autores nos últimos anos já vem questionando a ideia de que o cordel faz parte do folclore e da cultura popular. Um dos mais críticos a esse respeito é Aderaldo Luciano, que afirma que a associação do cordel à cultura popular e ao folclore reside “na forma preconceituosa e excludente com que as elites intelectuais sempre trataram as produções que não saíssem de suas lides ou que não seguissem os seus ditames.” (LUCIANO, 2012, p. 17). Para Luciano, o cordel deve ser estudado como uma literatura brasileira, não como uma literatura ‘popular’ e ‘folclórica’, termos que acabam por diminuir o cordel em relação à chamada “literatura erudita”.3
Entretanto, tal opção teórico-metodológica não diminui a importância dolivro, que sintetiza mais de quarenta anos de pesquisa de Mark Curran sobre o cordel brasileiro, o que não pode ser desprezado. O livro pode ser tomado como uma fonte para os que desejam conhecer o universo da literatura de cordel, o que é facilitado pela linguagem bastante acessível, e para os que já estudam esta literatura, já que Curran aponta uma diversidade de temas que podem ser explorados pelos pesquisadores. Desse modo, o pesquisador norteamericano não deixa de ser uma referência obrigatória nos estudos sobre o cordel.
Notas
2. Dentre esses pesquisadores “brasilianistas” podemos citar Raymond Cantel, Joseph Luyten, Candace Slater, Martine Kunz.
3. Sobre a exclusão do cordel do cânone literário brasileiro, ver ainda LUCENA, Bruna Paiva de. Espaços em disputa: o cordel e o campo literário brasileiro. Dissertação (Mestrado em Literatura e Práticas Sociais) – Universidade de Brasília – UNB, Brasília, 2010.Sobre a mesma questão, já no caso específico do cânone literário do Pará, ver MENEZES NETO, Geraldo Magella de. A exclusão do cordel do cânone literário paraense: uma discussão sobre literatura de cordel, cultura popular e folclore. Revista Estudos Amazônicos. vol. VII, n. 1 (2012), pp. 198- 236.
Referências
CASCUDO, Luís da Câmara. Cinco livros do povo. 2 ed. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 1979.
LUCIANO, Aderaldo. Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro. Rio de Janeiro: Edições Adaga; São Paulo: Editora Luzeiro, 2012.
Geraldo Magella de Menezes Neto – Mestre em História Social da Amazônia pela UFPA. Professor da Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC), distrito Mosqueiro. E-mail: geraldoneto53@hotmail.com
CURRAN, Mark. Retrato do Brasil em cordel. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2011. Resenha de: MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.2, n.4, p. 230-233, jan./jun. 2013. Acessar publicação original [DR]
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