Severino Elias Ngoenha é doutor em filosofia pela Universidade Gregoriana em Roma e professor nas universidades Pedagógica de Moçambique e de Lausanne, Suíça. As suas reflexões têm girado em torno de questões ligadas à política e à sociedade Moçambicana e à Filosofia Africana, mas em “Resistir a Abadon” Ngoenha sai dessa esfera de estudo que caracteriza as obras “Das Independências às Liberdades” e “O Retorno do Bom Selvagem” e a projecta no âmbito alargado da filosofia e das relações internacionais tendo como premissas o pensamento do sociólogo alemão Ulrich Beck.
Abadon é descrito no livro como o anjo apocalíptico que está sentado no trono celestial e que capitania a armada de cavalos terrificantes e aparelhados para a guerra. É personificado, adquirindo as características de um sujeito e pode-se falar dele tal como se fala do mercado em economia. O autor descreve Abadon como uma atmosfera disposicional para fazer a guerra e esta é considerada a marca das sociedades actuais, tendo reconhecido o seu papel na criação das sociedades e até mesmo na invenção do Estado moderno.
Beck considera como sociedade de risco o mundo pós-moderno onde, por um lado, conseguimos atingir níveis de prosperidade inauditos capazes de satisfazer todos os habitantes do planeta, mas por outro lado, criamos riscos incalculáveis que põem em perigo a própria espécie humana. As ameaças são vistas numa primeira fase como sendo essencialmente ecológicas: “o buraco de ozono, o aquecimento do planeta, o progresso da desertificação, o desaparecimento de espécies, a demografia galopante em algumas zonas, etc.” (Ngoenha, 2017, p. 17).
Seguindo as teses de Beck, Ngoenha considera que o processo global que sofremos compreende a massificação dos riscos e não a das riquezas. A partir dessa premissa, o autor elabora a sua tese: primeiro, que o maior risco global é a violência nas suas múltiplas facetas que vai da fome que padecem milhares de seres humanos, opressão económica, desemprego, às desigualdades, aos assaltos, lutas de gangs, máfias nacionais e transnacionais, terrorismo de grupos fanáticos e de Estados, mesmo democráticos. Segundo, que a maior das violências é a guerra.
Segundo o autor, as guerras estão de tal modo imbricadas às nossas sociedades que algumas figuras como De Gaulle acreditavam que não eram as nações que faziam as guerras, mas sim o inverso, que as guerras faziam as nações. Com isso queria dizer que ela, ao longo da história, serviu de motor para unir povos e criar um sentimento de unidade nacional sobretudo quando a ameaça percebida vinha de fora, quer se tratando de um inimigo real ou suposto. Reconhece igualmente o papel da guerra na configuração da modernidade como as infraestruturas do desenvolvimento das sociedades, desde ruas e pontes romanas à internet e aos drones, que são de origem militar. Ngoenha critica a globalização que, apesar de ser um fenómeno com forte pendor económico, tem como contraparte a indústria bélica que ocupa um lugar preponderante no comércio internacional.
Ngoenha desfaz a ilusão das guerras isoladas e considera que ela é “o verdadeiro fenómeno global, num duplo sentido: ela está em todos os lugares e, quando aparece localmente, é ainda universal” (Ngoenha, 2017, p. 24). Segundo o autor, três erros têm levado ao equívoco de retirar a guerra do seu contexto global: o “juridicismo”, o “psicologismo” e o “economicismo”. Para ele, “estas falácias derivam de uma ilusão pragmatista que isola os problemas e os trata um a um, à medida que se apresentam; o que não tem em conta que, no mundo actual, todo problema particular é geral, e todo problema local é mundial” (ibidem, p.45).
O autor faz uma denúncia do aproveitamento que se faz da religião, da filosofia e da biologia para segregar os povos em raças, em lados opostos como o do bem e o mal, fazendo-se frequentemente um apelo à emoção e não à razão. O terrorismo e a guerra anti-terror, ou o que chama de terrorismo de Estado, são os melhores exemplos.
Primeiro apostrofam-se e estigmatizam-se os adversários de terroristas, sem a prévia interrogação quanto as suas razões (…) logo a seguir, decreta-se que com os doravante terroristas não se fala. Então a única linguagem contra o terror dos terroristas é o terror dos antiterroristas, que provoca a reacção terrorista das vítimas (ibidem, p. 48).
É com base nesses pressupostos, segundo Ngoenha, que se justificaram as guerras dos drones, primeiro com Bush filho, e logo a seguir com Obama.
Ngoenha afirma que parte do sucesso da política da guerra tem a ver com pedagogia da guerra onde a primeira vítima de todas é a verdade (Ngoenha, 2017, p. 49). O diálogo é prejudicado pela presunção de ambas partes de que estão do lado do bem, da razão, ao passo que os outros estão do lado do mal. Essa estigmatização, desumanização e demonização do adversário transforma-se em discurso legitimador do desaparecimento físico do outro sem despertar alguma emoção ou sentimento. Para isso, têm contribuído e mídia e a indústria cinematográfica de Hollywood que ampliam a figura do inimigo e a ameaça à liberdade, primeiro com o inimigo soviético e depois com o jihadista.
À pedagogia da guerra segue-se a pedagogia da vingança que serviu para legitimar diante das massas as guerras do Iraque e do Afeganistão, mas também as guerras que têm sido levadas a cabo em todo o Oriente Médio, sobretudo naqueles Estados que Georg Bush havia denominado como “eixo do mal”. A título de exemplo, o autor recorda o atentado do Bataclan, em que o governo francês organizou um funeral de massas no local onde foi enterrado Napoleão Bonaparte, invocando os nomes das vítimas, condenando vil acto, mas ao mesmo tempo que preparava a opinião pública sobre a vingança que se seguiria.
Ao criar as “novas verdades” a razão e as razões perdem o seu espaço e legitimam-se o ódio, a vingança, o desaparecimento do outro, com os meios de comunicação social com as suas simplificações e o culto do tempo real, a não se limitarem a fazer um inventário dos horrores, mas a porem-nos também a vivê-los em directo, numa espécie de pedagogia da retaliação – pedagogia da vingança, didacticamente preparada para não suscitar emoções diante da morte de muitos inocentes que a lei de talião vai provocar. Assiste-se àquilo que a filósofa judia-alemã Hannah Arendt, frequentemente citada na obra, chamou de banalização do mal.
A isso, Ngoenha regressa as teses do sociólogo alemão Ulrich Beck que denunciava o risco como uma das características fundamentais das sociedades ocidentais: “a sociedade ocidental não se limita a produzir riscos, fabrica também a argumentação sobre eles. Isto quer dizer que a própria ciência não é neutra” (Ngoenha, 2017, p. 60). Nesta ordem de ideia, o racismo e a xenofobia não são somente promovidos pelas extremas-direitas que têm ganhado força em diferentes cantos da Europa, mas são-no igualmente promovidos e apoiados pelos governos de direita e de esquerda.
O autor questiona-se igualmente sobre a moralidade das alianças feitas entre o Ocidente e as monarquias do golfo – entre elas a Arábia Saudita e os Emirados – que em sua opinião são os principais patrocinadores do terrorismo internacional. A questão que o autor levanta é sobre como se fazem estes aliados e qual pode ser a base ética de uma aliança feita com regimes criminosos (ibidem, p. 33).
Não menos importantes são as críticas feitas contra os autores/filósofos como Samuel Huntington e Michael Walzer, defensores das chamadas “guerras justas” e civilizacionais, de lutas do bem contra o mal recordando ao período das cruzadas. Uma crítica que encontra também eco nos argumentos de Amartya Sen em “Identidade e violência” que nega as teses de Samuel Huntington sobre o “choque de civilizações”, advogando que a maior parte das guerras no século XXI ocorrem no seio das chamadas civilizações, as também chamadas de guerras civis.
Como resistir a Abadon? Será a guerra uma fatalidade, um destino impossível de se esquivar sobretudo para os países do chamado terceiro mundo? Ngoenha responde que não e que no meio desse caos todo pode ainda haver alguma esperança. Considerando a história recente de Moçambique e dos moçambicanos cuja pergunta é directamente dirigida, o autor apresenta a guerra como a sua marca principal: desde a resistência colonial, ao conflito ideológico e reivindicações políticas que opõem a RENAMO e a FRELIMO.
Ngoenha coloca como principal desafio para os moçambicanos a resistência contra Abadon e isso significa para ele a unidade, a reconciliação e a retoma da confiança mútua (ibidem, p. 125), princípios estes que nortearam os congressos pan-africanos que ele nunca perde de vista. Aqui, o autor, apesar de crítico às teses de Maquiavel, segue, no entanto, um dos princípios que séculos antes havia sido defendido pelo florentino: a unidade, pois entende que “um povo reconciliado é menos permeável às solicitações e seduções dos fazedores de conflitos” (Ngoenha, 2017, p. 132).
Nesse contexto atribui-se uma tarefa fundamental à filosofia: quando as partes não têm uma base comum a partir da qual a conversa se possa engodar, ela (a filosofia) deve encontrar a mesa a partir da qual as partes se podem encontrar e dialogar.
Referência
NGOENHA, Severino E. Resistir a Abadon. Maputo: Paulinas, 2017.
Resenhista
Asbel D. Quitunga – Doutorando em Filosofia Pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. E-mail: a47217@campus.fcsh.unl.pt Orcid: 0000-0003-2937-5634
Referências desta Resenha
NGOENHA, Severino E. Resistir a Abadon. Maputo: Paulinas, 2017. Resenha de: QUITUNGA, Asbel D. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.10, n.20, p.591-595, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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