O decênio que finda trouxe a humanidade forças e discursos políticos em descrédito a eventos históricos, incitando a desconstrução e relativização dos direitos humanos. O Brasil não foge a esse padrão, pois o cinquentenário do “31 de março de 1964” e ascensão de forças políticas conservadoras em âmbito federal evocam memórias apologéticas a períodos de autoritarismo e restrição de direitos na república brasileira, em detrimento de análises científicas sobre tais temáticas. Assim, pensar o regime republicano no Brasil demanda estudar suas especificidades relativas as restrições a participação popular na sua construção e desenvolvimento, ocasionando gestões autoritárias em desfavor de governos democráticos.
O que nos leva a afirmar, apesar ou sobretudo, por conta da involução histórica, que tais circunstâncias estão diretamente relacionadas ao ofício do profissional da escrita e do ensino de História. Isto porque, ao partirmos da premissa de ao historiador caber rememorar aquilo que se quer esquecer e negar, torna-se imprescindível recordar a presença do autoritarismo já na forma como foi “proclamada” a república por Marechal Deodoro da Fonseca, apoiado pelas elites civis, demonstrando desde então as longevas relações entre não militares e membros das casernas na vida política nacional. Associações construtoras do nosso perfil político com alternância de governos democrático e períodos autoritários, conforme se verifica tanto com o controle direto das fardas (na geração de 31 de março de 1964 repetindo o já ocorrido nas presidências de Deodoro e Floriano), quanto os exemplos civis da suspensão de garantias constitucionais (com Arthur Bernardes, na “Revolução de 1930” e durante a ditadura do Estado Novo).
Neste sentido a publicação da segunda edição da revista Das Amazônias feita às vésperas do aniversário de cento e trinta anos da instauração do regime republicano em nosso país é extremamente necessária e oportuna, por demonstrar que pensamos e produzimos a História – não obstante as grandes e intensas adversidades experimentadas neste ano –, além de caracterizar a discordância sobre a harmonia e passividade brasileira durante a República. É vital fazermos e dialogarmos sobre usos e sentidos da História em tempos marcados por seu descrédito.
Assim, o presente número ganha maior significado por ser lançado durante a realização conjunta da XIX Semana de História, V Semana em Favor de Igualdade Racial, VII Seminário do Programa de Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência de História e II Seminário de Residência Pedagógica vinculados ao curso de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre, para caracterizar nossa resiliência. Por isso, o intuito deste exemplar em formato de dossiê (bem como da edição seguinte) é congregar artigos e resenhas sobre a república brasileira, tendo como foco as manifestações de autoritarismo.
A imagem da capa, que mostra manifestantes com livros nas mãos, é uma fotografia de autoria de Janaina Christina Progênio, com edição gráfica de Wálisson Clister Lima Martins. Foi feita em uma das manifestações do início de 2019, em um movimento nacional de defesa dos professores e da educação enquanto instituição fundamental para o desenvolvimento da sociedade brasileira. A imagem captura um dos momentos em que mais são visíveis as antagonias entre democracias e ditaduras, assim como se relaciona grandemente com as questões que são motivadoras da proposição deste dossiê.
Abrindo a edição temos o artigo “Golpe de 1964 e comemoração: memórias e discursos que enaltecem à ditadura civil-militar, causas de ressentimentos e humilhação” escrito por Andrisson F. da Silva e Paulo A. de Azevedo tecendo análise científica sobre as dores causadas pelo laudatório de tortuoso tempo. Ao que se segue de “Ditadura, Autoritarismo e Resistências: Análises Sobre os Anos de Chumbo no Brasil 1964 – 1975” produzido por Ezir Moura Júnior.
Chamando a um contexto pouco mais distante, encontramos “O fim ‘melancólico’ da ‘república do café com leite’ (1922-1930)” de Jadson da Silva Bernardo, recordando do autoritarismo dentro da primeira república.
As discussões sobre o período de 1964 a 1985 são retomadas nos textos “(Dó)r, (Ré)sistência e (Mi)úsica: ideologia presente na música popular” de Ramon Nere de Lima e Antônio Victor F. Passos, assim como nas letras de “Eu sou mulher: a luta das mulheres na ditadura civil militar no Brasil durante a segunda metade do XX” assinado por Laura Andressa C. Madeira; Syndley L. C. de Oliveira.
Wesley R. de Moura e Nicole A. da Silva, sem perder de vista a relação autoritarismo político e ensino superior na república brasileira, escrevem “Modelo universitário herdado pela ditadura: a reforma universitária de 1968 e os movimentos estudantis”. Enquanto Cássia I. de O. Marinho; Inayra S. Medeiros; Paula V. B. da Silva; Yane da R. Magalhães abordam os efeitos da propaganda no sustentáculo da ditadura do Estado Novo em “DIP: o mecanismo de propagação da utopia varguista”.
Das Amazônias apresenta reflexões sobre o Acre feitas por Jardel França em “As raízes do autoritarismo no executivo acreano – 1921 / 1964” resenhando a obra do professor Francisco Bento da Silva, publicada pela Editora da UFAC.
Fechando a primeira etapa de nosso dossiê apresento minha colaboração em parceria com Jonathan Messias e Silva com “Provocações sobre o autoritarismo republicano contemporâneo no cinema nacional: Sol Alegria e Bacurau” que associa o filme dirigido por Tavinho Teixeira e Mariah Teixeira em 2018 durante os acirramentos decorrente da disputa presidencial, com a recente película de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, caracterizando a sétima arte enquanto veículo de contestação da ordem sócio-política instaurada no Brasil.
Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque – Organizadora do Dossiê República Brasileira e Autoritarismo.
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