JAMESON, F. Representing Capital. London/New York: Verso, 2011. Resenha de: FLECK, Amaro de Oliveira. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.1, p.90-94, jan./abr., 2012.
O novo livro de Fredric Jameson, Representing Capital: A Commentary on Volume One, tem por finalidade oferecer uma releitura do primeiro livro de O Capital de Karl Marx. A obra está dividida em sete capítulos, sendo os três primeiros uma apresentação central da argumentação marxiana – o primeiro capítulo é dedicado inteiramente à primeira seção, o segundo trata da segunda à sétima e o terceiro unicamente da oitava (a edição de O Capital em língua inglesa contém oito seções, e não sete, como as traduções em português e o original em alemão, sendo a oitava os dois capítulos finais, que, na edição em português e no original alemão, pertencem à sétima seção). Os três capítulos posteriores são análises detalhadas da questão do tempo (o quarto), do espaço (o quinto) e da dialética (o sexto), e o capítulo final é um rápido estudo sobre as conclusões políticas a serem tiradas de um livro que, segundo Jameson, não é ele mesmo político. Se O Capital não é um livro político, que será então? Ora, segundo Jameson, este não é um tratado filosófico (pois não lida primariamente com questões de verdade), e tampouco um econômico, no sentido especializado da maioria dos departamentos universitários; não tem por objetivo formular esta ou aquela concepção de capital, nem mesmo é um livro sobre trabalho; mas sim, em uma declaração que o próprio Jameson chama de escandalosa, é um livro sobre desemprego (retornarei a esta afirmação no último parágrafo da presente resenha). A questão da representação, que já aparece no próprio título da obra de Jameson, se refere ao fato de o capitalismo não ser visível como tal, de este ser uma totalidade que só é perceptível através de seus sintomas. Cada representação que se faz dele é, portanto, parcial, e somente por intermédio de uma pluralidade de perspectivas pode-se abordá-lo. Deste modo, a pesquisa não visa exaurir a totalidade, mas sim chegar a seu centro ausente utilizando distintas abordagens incompatíveis, tal como o “método” žižekiano da visão de paralaxe.
O primeiro capítulo, intitulado “o jogo das categorias”, discute a primeira seção da obra marxiana, seção esta que, segundo Jameson, é um tratado autônomo completo, tal como “o ouro do Reno” frente à tetralogia do anel wagneriana. Esta primeira seção lida com um enigma, o enigma de como coisas qualitativamente diferentes podem ser quantitativamente equiparadas, isto é, a velha questão da identidade e da diferença, porém agora remetida ao problema concreto do intercâmbio de mercadorias. E eis um dos pontos altos, a meu ver, do livro de Jameson: em vez de resolver falsamente o problema, aceitando o dogma marxista mas não marxiano de que este enigma é resolvido quando se percebe que a diferença qualitativa das mercadorias revela uma identidade do trabalho indiferenciado que subjaz nestas, Jameson segue atentamente a argumentação marxiana e nota que o próprio Marx não resolve tal enigma, mas o deixa em suspenso, de modo que “o quiasmo prevalece no estilo de Marx” (p. 23). Este problema não resolvido é transmudado na seção seguinte em um novo enigma, enigma este que ocupará as seções centrais de O Capital. De tal modo, conclui Jameson: “Toda a seção um pode então ser entendida como um ataque em bloco à ideologia do mercado, ou, se preferires, como uma crítica fundamental do conceito de troca e, na verdade, da verdadeira equação de identidade como tal” (p. 17).
“A unidade dos opostos”, capítulo seguinte do livro, começa com a transformação do enigma da equivalência do qualitativamente distinto no mistério do aumento do valor, isto é, de “como um lucro pode ser feito da troca de valores iguais?” (p. 47), sendo que este é o verdadeiro enigma a ser resolvido (o primeiro, diz Jameson, era uma falsa questão, falsamente resolvido com a aparição do dinheiro, que cristaliza a relação social que envolvia aquela questão). A esfera da circulação, na qual a troca ocorre, é insuficiente para resolver este enigma. Torna-se necessário, assim, analisar como as mercadorias são produzidas, aliás, torna-se necessário perceber a peculiaridade de uma mercadoria sui generis, a força de trabalho, que cria, na esfera da produção, mais valor do que aquele que é pago por ela na esfera da circulação. Isto é, o capitalista paga um tanto para contratar o trabalhador, mas este, durante o tempo no qual é contratado, cria mais valor do que o tanto inicial que foi pago por ele. O tom das quatro últimas seções analisadas neste capítulo (a saber, da quarta à sétima, mas que se manterá na oitava) é o que dá nome a ele. Segundo Jameson, há uma unidade dos opostos, de dois clímax antagônicos, positivo e negativo, otimista e pessimista, heroico e trágico. Assim Marx tratará a cooperação, a manufatura e a maquinaria, os aumentos da produtividade do trabalho, tanto com admiração quanto com pesar, notando que o progresso traz miséria e a riqueza privação. Jameson aponta ainda para o fato de Marx fechar a porta para regressões nostálgicas de formas mais simples e mais humanas de produção, diferentemente das críticas mais tradicionais ao capitalismo; mais tarde (no quarto capítulo), Jameson notará que, ao contrário do antimodernismo de Heidegger que propõe superar a alienação da técnica por algum modo de regressão, é justamente a alta produtividade introduzida pela maquinaria que poderia permitir um sistema econômico radicalmente diferente. Por fim, Jameson fala que os capitalistas nunca são o sujeito da história, mas suportes (Jameson cita o termo alemão, usado diversas vezes por Marx, Träger, também traduzido como “portador”) do capital, algo que, segundo ele, Marx nunca utiliza para se referir ao proletário (mas voltarei também a esta questão no parágrafo final).
“História como coda” (“coda” denota a seção conclusiva de uma composição, o seu arremate), o terceiro capítulo do livro de Jameson, que termina a seção expositiva do primeiro livro de O Capital, é um estudo focado na oitava seção da referida obra marxiana, parte esta que, segundo Jameson, pode também ser lida como um tratado autônomo, e mantendo a analogia musical, que vê na primeira seção uma “abertura” independente, este é a “coda”, o arremate, um capítulo propriamente histórico, ou, como o próprio Jameson afirma, “aquilo que geralmente tem sido estigmatizado como ‘filosofia da história’ – isto é, uma narrativa dos vários modos de produção, uma história das histórias” (p. 74). Neste capítulo, Jameson expõe a genealogia marxiana do capital, apontando para os processos de acumulações primitivas (conseguidas, em grande parte, com a caça de escravos no continente europeu e com o trabalho escravo nos trabalhos de mineração feitos no continente americano) que criaram a possibilidade de um mesmo capitalista empregar simultaneamente um grande número de assalariados, sendo que é a venda da força de trabalho por parte do trabalhador para o proprietário dos meios de produção que marca o começo do capitalismo, nos séculos XVI e XVII. Jameson observa também que “estruturas não capitalistas coexistem com estruturas capitalistas” (p. 84), de tal modo que a passagem do modo de produção feudal para o capitalista não é súbita, mas um longo processo transicional. Seguindo a proposta do livro, que é mostrar que há dois clímax antagônicos que se interpõem ao longo da obra, Jameson irá apontar para o fato de haver duas suposições acerca do final do capitalismo, uma heroica, a outra cômica. O final heroico está no término do capítulo sobre “a assim chamada acumulação primitiva”, e consiste na “expropriação dos expropriadores”, na transformação da propriedade privada capitalista em propriedade social; já o final cômico está no exemplo do infeliz Sr. Peel (no começo do capítulo final de O Capital, sobre “a teoria moderna da colonização”), um capitalista que migra para a Austrália com 3 mil trabalhadores para montar uma indústria, mas que vê seus trabalhadores se dissiparem tão logo chegam ao novo mundo, mundo este no qual encontram terra fértil barata em vez das relações inglesas de produção.
O quarto e o quinto capítulo de Representing Capital, denominados, respectivamente, “Capital em seu tempo” e “Capital em seu espaço”, tratam, como o título aponta, das questões da temporalidade e da espacialidade do sistema capitalista. A partir da observação de Althusser de que cada modo de produção específico produz e oculta a temporalidade apropriada a ele, Jameson aponta para o fato de haver uma dualidade no tempo capitalista na qual o capital tanto produz mercadorias quanto reproduz a si mesmo concomitantemente, de modo que o capital “oblitera os vestígios de sua própria pré-história” (p. 105), transformando-se a si mesmo em algo aparentemente “natural”. Se o tempo, segundo Jameson, corresponde à dimensão da quantidade, já que é ele que mede o valor de cada mercadoria, o espaço corresponde, portanto, à dimensão da qualidade. Com esta afirmação, Jameson visitará os capítulos mais “empírico-descritivos” da obra marxiana, revelando a precariedade das condições de trabalho nas apertadas fábricas capitalistas, assim como o modo farsesco pelo qual os capitalistas seguiam a legislação que regulava suas atividades, criando escolas, por exemplo, nas quais o próprio professor assinava em “x” por ser analfabeto.
O sexto capítulo, “Capital e a dialética” – a meu ver o outro ponto alto do livro de Jameson – é uma forte defesa da dialética contra seus detratores, em especial contra aqueles que querem ler Marx analiticamente (a escola do “marxismo analítico” de Cohen, Roemer e Elster), estruturalmente (tal como Althusser), ou a partir do historicismo (exemplificado com Karl Korsch). Jameson insiste sobre a dimensão antagônica do capitalismo, apresentada por Marx de modo positivo e negativo simultaneamente, de modo que sofrimento humano e alta produtividade tecnológica, vidas desperdiçadas e progresso científico, possam ser entendidos como fenômenos oriundos de um mesmo processo, processo este que só quando apresentado dialeticamente consegue explicar o antagonismo como tal (Jameson chega mesmo a nomear o antagonismo como “lei geral absoluta”, a unidade da produção capitalista com o desemprego). A negatividade e a contradição tem um papel central em O Capital, e privá-lo destas categorias, algo necessário nas leituras não dialéticas, conduz a “conclusões socialdemocratas de um tipo familiar, a saber, bem-estar, criação de novos tipos de ocupações, e outros remédios keynesianos” (p. 129).
“Conclusões políticas”, capítulo final da obra, volta a defender a ideia de que O Capital não é um livro político, seja no sentido de visar a uma prática, estratégia ou tática política, tal como os livros de Lênin, Maquiavel, ou mesmo do Marx do Manifesto comunista; seja no sentido de uma teoria política, algo que, para Jameson, é idêntico à teoria constitucional, desde sua origem em Aristóteles e Políbio. Mas não ser um livro político, para Jameson, é antes uma vantagem do que uma desvantagem. Segundo o referido autor, a centralidade da leitura do primeiro livro de O Capital deve ser o conceito de desemprego, já que Marx “mostra que o desemprego é estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a verdadeira natureza do capital” (p. 149). Marx assim mantém em aberto duas possíveis experiências políticas resultantes da leitura de sua obra, como já notara Korsch (algo que, mais uma vez, remete ao antagonismo que o perpassa): por um lado, um voluntarismo oriundo da piedade pelas vítimas do sistema capitalista e da indignação frente a tal sistema; por outro lado, um fatalismo, associado a um cinismo passivo de desesperança e impotência frente este mesmo sistema todo-poderoso. Jameson, contudo, altera esta dualidade em outra, a saber, a tensão estrutural notada por Althusser entre as categorias de dominação e de exploração. O autor defende que se deve dar ênfase à categoria de exploração, que resulta em uma crítica ético-moral, frente à categoria de dominação, centralmente política, de tal modo que a balança tenda mais para o socialismo, resultante da crítica radical da exploração econômica do que simplesmente à democracia, resultante da crítica radical à dominação política.
Se, por um lado, a meu ver, o livro de Jameson tem a virtude de reapresentar o conteúdo do primeiro livro de O Capital de um modo claro e sucinto, com ótimas observações quanto ao método e à exposição da obra marxiana, além de instigantes e ousados comentários que convidam a revisitar uma obra que muito ainda tem a dizer; por outro lado, parece-me inegável que o autor comete alguns deslizes e que algumas de suas interpretações são, no mínimo, improváveis. Quando Jameson diz, por exemplo, que Marx só se refere ao capitalista como “suporte” do capital, e nunca atribui ao proletário a mesma função, ele deixa de perceber que Marx usa o adjetivo “agente” e “sujeito do processo” (ou ainda “sujeito automático”) para a própria categoria do capital, ignorando assim a passagem do capítulo “A reprodução simples” na qual Marx diz: “Do ponto de vista social, a classe trabalhadora é, portanto, mesmo fora do processo direto de trabalho, um acessório do capital, do mesmo modo que o instrumento morto de trabalho”(Marx, 1985, p.158, ênfase minha). Também, ao afirmar que O Capital é um livro sobre desemprego, Jameson reduz todo o antagonismo estrutural do capitalismo, que ele tão bem descreve, a uma única dimensão, obliterando assim as demais, como se o capitalismo superasse sua própria contradição fundante no momento que assegurasse o pleno emprego, algo que a social-democracia, que Jameson tanto critica, algumas vezes efetivamente conseguiu. O Capital é um livro sobre um processo estruturante das sociedades modernas ocidentais (a saber, o próprio processo capitalista) e que possui implicações políticas, filosóficas e econômicas, que são desdobradas ao longo do primeiro livro desta obra. Nada se ganha centrando sua leitura na questão do desemprego, um tópico sem dúvida importante, mas não por isso prioritário. Por fim, Jameson não consegue deixar claro no que concorda e no que discorda frente ao marxismo mais tradicional, algo problemático para um livro que se apresenta como uma releitura; não dialoga com as leituras mais recentes (e quiçá mais interessantes) da obra madura marxiana (como Moishe Postone, Christopher Arthur, Tony Smith, dentre tantos outros), dando um tom antiquado ao texto (o comentário de referência, ao qual ele se aproxima e distancia ainda é Althusser); e deixa diversas questões em aberto (Qual a dominação específica do capitalismo? Qual a importância da questão das classes? Por que a categoria de dominação é política e sua crítica conduz à democracia e não ao socialismo, ou, melhor ainda, a um socialismo democrático?). Enfim, com altos e baixos, o livro de Jameson deve servir, ao menos, para atiçar os debates entre aqueles que renovam a crítica ao capitalismo.
Referências
MARX, K. 1985. O Capital: Livro I, Volume II. São Paulo, Nova Cultural, 158 p.
Amaro de Oliveira Fleck – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: amarofleck@hotmail.com
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