Não tenho dúvida de que a publicação desta obra coletiva é oportuna ante o debate e as tendências narrativas observadas na historiografia. É oportuna também em razão da pouca importância dada ao tema pela comunidade de historiadores. Somente nos últimos anos essa comunidade despertou para esse aspecto, e ainda assim de forma tímida, apesar de as representações estarem presentes em todos os objetos de pesquisa e nas formas estruturantes das narrativas historiográficas. Decorre também desse aspecto a dificuldade momentânea de resenhar um livro que contém autores e textos com orientações temáticas e epistemológicas distintas. Na verdade, a obra já recebeu, em seu próprio conjunto, uma resenha do professor Malerba, o qual, na conclusão (p. 269-288), com o intuito de estabelecer a conexão do conjunto de ensaios, propõe um conjunto de idéias para além dos próprios textos. E aqui é necessário fazer-se uma primeira distinção: as representações como objeto histórico para a reconstituição do passado e as representações como objeto narrativo da análise historiográfica. Essa distinção é fundamental, pois ela implica em configurações metodológicas diferentes, as quais, não obstante, podem estar intercambiadas. Talvez o subtítulo do livro “Contribuição a um debate transdisciplinar” possa sugerir um encaminhamento nessa direção.
Com o intuito de dar uma abrangência maior e mais profunda à reconstituição do passado, os historiadores incluíram na pauta de pesquisa as representações. Para dar cobertura às questões vinculadas a tal objeto, com todas as suas implicações, a história, como disciplina, precisou recorrer aos arsenais metodológicos da antropologia, da psicologia social, da sociologia, da lingüística etc. etc. A aproximação dessas disciplinas com a história teve um resultado diferente daquele objetivo. A pretensão era fortalecer a história no sentido de legitimar-se como conhecimento ante a possibilidade de cobrir com maior eficiência a reconstituição do passado. Nesse caso, o marxismo e os annalistas de primeira hora propunham para a história buscar a totalidade do social. No entanto, essa eficiência não somente não foi alcançada, como retirou da história a possibilidade de explicar e compreender as estruturas sociais dessas representações. Esse fato aponta para dois aspectos: a fragilidade na combinação da constelação de elementos interdisciplinares que dariam a plausibilidade explicativa à história e um certo voluntarismo da comunidade de historiadores em aderir às tendências narrativas, abandonando, por assim dizer, as questões estruturais da própria história como disciplina. Na história, a ânsia de buscar em outras disciplinas componentes metodológicos para completá-la, custou-lhe o preço de sua própria plausibilidade.
A unidade do mundo cultural-representativo e valorativo é problemática. Ela é problemática porque supõe um ator estável, uno, sólido e identificado com uma essência subjetiva e delimitável, racional e apto a rejeitar recorrências e contradições nas circunstâncias do seu percurso histórico e cotidiano, o qual também não ocorre. O conteúdo teórico da representação está circunscrito pelas esferas da experiência social, dotadas de coerência e identidade. Cada ator social concreto aciona múltiplas individualidades na medida em que se confronta com a sociedade pela diferenciação de áreas possíveis de experimentação e socialização. Dessa forma, o indivíduo deixa de ser o centro estável e uno, o que constituía, em outro sentido, a coerência para as suas próprias manifestações. Podemos, então, dizer que são as próprias noções de sujeito, indivíduo, ideologia, cultura e – por que não? – as representações, entre outras, que sofrem um abalo profundo. Essa crise pode ser explicada por uma postura na qual as diversas posturas narrativas das representações se expressam como forma de captar os diferentes sentidos. Certamente é desse viés interpretativo que surge o relativismo, reducionismo e o narrativismo na história, que são oportunamente questionados nos diversos textos do livro, mesmo que com enfoques diferentes. Esse fato está reconhecido, porém pouco se observa no sentido de renunciar o senso comum dessa afirmação. Os textos, com seus enfoques e graus diferentes, parece-me, querem superar tais aspectos, porém mantêm em aberto um programa mínimo sobre o qual o diálogo passa ser possível.
O outro ponto é o que entendemos aqui como o acordo negativo pelo qual os participantes renunciam mapear o sensus communis estabelecido. O pacto nesse caso não se dá apenas em termos genéricos e abstratos, mas é reeditado de modo fragmentário no cotidiano, no diálogo, nas representações, bem como na própria ciência.
O diálogo razoável só é possível – o subjetivo e o objetivo – quando os participantes nele se engajarem com a disposição de viabilizá-lo, compartilhando a renúncia e prosseguindo indefinidamente o jogo metalingüístico que, a cada momento, pode ser provocado. Isso se faria buscando a compreensão perfeita e a interpretação precisa, mesmo que isso seja inatingível. Renuncia-se em comum a continuar delimitando as condições de compreensão mútua, procura-se, indefinidamente, reduzir a taxa dos mal-entendidos possíveis. Para a ciência histórica, isso deve constituir uma busca constante.
O estabelecimento de axiomas supõe um pacto entre membros da comunidade, cujas bases, de onde decola o argumento, ficam aquém do seu poder de explicação. Portanto existe, ao menos inicialmente, a relação dos axiomas e dos argumentos que dão a base do pacto científico, sendo a ciência, nesse caso, algo aberto e em desenvolvimento.
Se o pano de fundo é o acordo que instala a racionalidade, o que significa, nesse contexto, a representação?
Por certo, ela significa algo bem diferente daquela parte recortada contra o pano de fundo da sistematização e da estruturação da linguagem, mesmo quando essas características ficam no nível metodológico. A representação, no contexto marcado pela ênfase na razão, é ponto de dispersão, é ponto de diferença. Isso porque a dialética parte-todo só pode ser mantida enquanto se trabalhar com uma determinada concepção de representações, da qual faz parte algo mais que sua própria possessividade e algo mais que sua imanência; faz parte dela sua carência, uma realidade lacunar, cuja existência reclama complementação.
Para que essa complementação seja possível, o historiador toma, normalmente, o atalho do oculto, do imaginário paradigmático. Ele busca na unificação, que impõe uma totalidade, o único meio de estabelecer conexões lógicas capazes de fazer ou complementar com coerência a representação fragmentada. A totalidade funciona como o reencontro num horizonte. A representação se esgota em sua própria possessividade – em suma, insuperável parcialidade – quando repousa sobre uma tentativa de apreensão metodológica isolada. Aqui, duas características se evidenciam:
1 a de que a própria razão se estabelece pela significação e pela sua carência; todo o esforço de totalização será inútil, pois exigirá outras e mais outras soluções, agregadas;
2 a de que o acordo torna possível a razão e o diálogo. Mas, esse não é firmado para sempre; ao contrário, deve ser negociado e celebrado nos próprios processos dialógicos, da história como disciplina.
Ambas as características (a possessividade constitutiva da razão e a reatualização freqüente da primeira característica através do reconhecimento do cotidiano e da convivência que leva adiante o exercício da razão) são exercitadas como interpretações. Ambas compõem as formações discursivas produzidas nos processos dialógicos e elas se nutrem das culturas. Essas últimas são matérias significativas, porque ali estão estabelecidos os parâmetros de sua compreensibilidade e plausibilidade. A teoria crítica da representação só concebe sentido, reconhecendo-lhe a possibilidade da parte e recusando-se a tomá-la como evocação de uma carência que remeteria a uma totalização do processo.
A oposição representação-história (parte-todo) não deve significar apenas esse ou aquele recorte discursivo específico por contraste a uma totalidade vaga e abrangente. Significa, isto sim, uma estratégia de definição, na qual se amplia o fato de que qualquer composição de partes voltará a formar uma parte, restando para a noção de totalidade o lugar absoluto de abrangência infinita, porém incompleta.
Para a ciência histórica está colocado o desafio representado pela representação e pela narratividade. Como disciplina, a história não pode ignorar essas tendências como simples ‘modismos’, mas sim levá-las como desafio. Afinal é desse desafio que surgem os questionamentos sobre os problemas de orientação e de sensibilidade para aquilo que acontece fora da “comunidade dos historiadores”. A historiografia não se realimenta apenas com a rotina da pesquisa, dos processos de trabalhos racionais, desencantamentos do passado, mas dos novos questionamentos ao passado, originados das (muitas vezes) incômodas experiências do presente, cujas respostas dependem das regras racionais de pesquisa.
Também, por outro lado, não basta à ciência histórica, perante o desafio, apenas descrever e explicar as especificidades e dissonâncias representadas pelas concepções desafiantes com uma resposta plausível. Isto significa que a ciência histórica não poderia objetivar a representação e a narratividade como objetos de conhecimento histórico, pois estas estariam questionando e colocando em xeque os próprios princípios desse conhecimento. Aqui, o problema é duplo: uma vez a ciência histórica se defronta consigo mesma e, outra vez, com as tendências que a colocam em questão. Portanto, temos também um problema epistemológico a ser enfrentado.
Esta simples constatação implica em que a ciência histórica deve examinar quais teriam sido os instrumentos que utilizou até agora para fornecer orientação temporal, os quais hoje são questionados de forma radical. Só então, e talvez, poderá ficar mais claro onde estão as carências de orientação do pensamento histórico que levam a uma tal reação às suas conquistas no processo de constituição ou que levam o próprio pensamento histórico a ser questionado como fator de orientação cultural na vida prática. Estas constatações também não são novas, pois elas são feitas de tempos em tempos. A discussão que envolve a ciência histórica hoje demonstra a importância que esta continua tendo no contexto das ciências humano-sociais. Diante da ressonância e veemência dessa discussão poderia parecer que aí se encontrassem problemas relacionados com a situação da história como disciplina. A discussão se localiza, portanto, ainda nos parâmetros da modernidade.
O livro objeto desta resenha traz em si o desafio de colocar para a comunidade as múltiplas possibilidades de enfrentar um aspecto de muito debate, o qual, não obstante, alicerça a história como disciplina. Nesse sentido, o conjunto de textos reafirma uma contribuição a um debate transdisciplinar.
Resenhista
Astor Antônio Diehl – Doutor em Teoria, Metodologia e Didática da História pela Ruhr-Universität Bochum/ Alemanha. Professor do curso de História da universidade de Passo Fundo-RS. E-mail: cph@upf.tche.br
Referências desta Resenha
CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (Orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas, SP: Papirus, 2000. Resenha de: DIEHL, Astor Antônio. Diálogos. Maringá, v.5, n.1, 215-219, 2001. Acessar publicação original [DR]
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