Renaissance italienne et architecture au XIXe siècle. Interprétations et restitutions | Antonio Brucculeri e Sabine Frommel

Os múltiplos pontos de vista das vinte e duas contribuições (em francês, inglês e italiano) reunidas nessa obra coletiva referem-se, especificamente, à construção do conceito de Renascimento e à sua recepção no século 19, sobretudo na arquitetura, cobrindo também pesquisas relacionadas à história da arte, história do patrimônio, historiografia artística, história do colecionismo, história da edição e da fotografia, e história literária, acompanhadas de um caderno com 185 imagens em pb. Cruzando enfoques interdisciplinares os autores buscam renovar as perspectivas de análise consagradas na rica historiografia sobre a noção de Renascença e a problematizar situações, estudos de caso, enfoques monográficos, releituras de artistas e arquitetos, em torno do interesse pelo renascimento italiano ao longo do oitocentos em vários países.

Os ensaios do livro levantam, portanto, novas questões relativas aos processos de interpretação e reinterpretação que o século 19 empreendeu em relação ao passado e às suas diferentes linguagens históricas. Não bastasse essa contribuição, merece destaque a rica e variada bibliografia nas notas ao final de cada um dos textos, atualizando o debate sobre muitos temas relativos à tradição clássica e aos seus revivals. As notas proporcionam assim, um acesso privilegiado ao que se avançou na historiografia em diferentes lugares de erudição, como as universidades italianas, os centros de pesquisa franceses, alemães, norte-americanos e as grandes écoles das artes e humanidades, às quais se ligam os autores e os organizadores.

O volume foi organizado por dois professores que trabalham na França, Sabine Frommel (1), arquiteta e historiadora de arte alemã, e Antonio Brucculeri (2), igualmente arquiteto e historiador, de origem italiana. Os ensaios prolongam as reflexões elaboradas no contexto de um seminário internacional realizado entre 2013 e 2014 na École Pratique des Hautes Études em Paris, e no Centro de Estudos Renascentistas em Bolonha. Os eixos temáticos desses encontros giravam em torno do levantamento e reconstituição dos edifícios das cidades da renascença italiana, das viagens dos artistas, eruditos e homens de letras, do estatuto do desenho para os arquitetos, e da importância atribuída à fotografia, após 1840, como novo instrumento de estudo e análise do detalhe, para entender a observação do estilo e suas formas, a apropriação de linguagens,  enfim, não apenas as da renascença italiana, mas as dos diversos contextos nacionais da Europa e além dela. Vasto programa que permitiu avanços em questões significativas para a história da arquitetura.

O Prólogo sintético de Sabine Frommel explica como o século 19 se identificou ao humanismo da Renascença, destacando o interesse do estudo da sua recepção nesse período “ávido pelo passado” e suas diversas linguagens estilísticas, a partir dos “processos de interpretações, releituras,revivificação e hibridação que o atravessam”, e caracterizam sua arte. O impulso em vários países para “construir sua própria renascença” – quem estuda o século 19 sabe que este impulso não se deu apenas nos países europeus – (3), se articula aos ritmos históricos de cada um deles, muitas vezes “associando referências heterogêneas enraizadas num espirito nacionalista e sob tradições espirituais diferentes”. Estudos de casos particulares se confrontam, como no caso da Viollet-le-Duc na França ao criticar os modelos italianos que, segundo ele, “se chocam com as tradições locais” defendendo, como se sabe, o não menos historicista neogótico em vez do neorenascimento.

Entre os temas citados na apresentação de Frommel ela destaca o papel dos recueils (coletâneas, como as de Percier e Fontaine) resultantes das viagens e estadias de estudo para levantamentos da arquitetura de cidades italianas, principalmente em Roma. Alguns textos mencionam o recueil de Grandjean de Montigny e A. Famin, L’Architecture Toscane (especialmente voltado para os pallazzi de Florença), que conhecemos muito bem. Essas coletâneas de desenhos, que foram os principais suportes responsáveis pela difusão do Renascimento, promovem uma verdadeira “internacionalização” dos modelos arquiteturais, aconselhando porém sua “assimilação aos usos locais e aos contextos culturais”, e que os jovens arquitetos deviam saber extrair dos “modelos” “os princípios essenciais quanto às proporções, ao ornamento e à sua implantação” em outros contextos, e não fazer uma cópia – mote de todos os tratados e manuais do século 19, que reiteram a maior característica deste século: sua curiosidade em relação à arte e arquitetura dos demais e a capacidade de adaptação dos “modelos” às mutações funcionais das novas tipologias e programas próprios ao seu tempo.

A introdução detalhada de Antonio Brucculeri, “Renaissance italienne et architecture au XIXe siècle”, é um guia fundamental para a leitura das contribuições distribuídas nas duas partes que estruturam o livro: “Apreender a Renascença e sua arquitetura. Instrumentos e finalidade” (com dez textos), e “Releituras das linguagens da Renascença: contextos, representações, realizações” (com doze). Uma das questões especialmente destacadas por Brucculeri é a discussão dos marcos historiográficos que interpretaram o período, e como as categorias defendidas por autores “clássicos” foram colocadas sob uma perspectiva crítica ao longo dos últimos decênios. Ele cita os historiadores do passado que haviam construído um conceito de Renascença, Jules Michelet (4), Jacob Burckhardt, Walter Peter, além de Louis Hautecoeur nos anos 1950, e os que fazem a revisão historiográfica em torno dos anos 1980 – Denis Hay (1979), Hilary Fraser (1992), John Barrie Bullen (1994), Marcello Fantoni (2005), Rosanna Pavoni (1997), Kurt Milde (1981), Katherine Wheeler (2014). E entre as referências, remontando aos que estudaram o revival neorrenascença nas tipologias do ecletismo, Brucculeri considera os livros de Luciano Patteta (1975), Claude Mignot (1983), François Loyer (1999), e mais recentemente suas próprias publicações e as de Sabine Frommel.

Do estudo das escolhas metodológicas comparativas, passou-se às interrogações sobre o conceito de Renascença, analisado com precisão no primeiro texto apos a Introdução, “Renaissance: mutations d’un concept et ‘invention’ d’un style dans la première moitié du XIXe siècle en France et en Allemagne”, por Henrik Karge.  A historicização do conceito prolonga-se em muitas das contribuições que enfatizam o campo das percepções, representações e revivals da neorrenascença italiana em vários países num “largo século 19”: a periodização dos textos do livro remonta à segunda metade século 18 e vai até o inicio do 20, com leituras cruzadas entre as diversas expressões do estilo no imaginário historicista e eclético, cujas construções transformaram a fisionomia urbana da época.

Antonio Brucculeri observa que além do contexto europeu, “a transferência à escala mundial do estilo néo-renascentista, através da ornamentação de mansões privadas e edifícios públicos é evidente em projetos e realizações em muitas cidades da América do Norte e do Sul, bem como na Ásia e Austrália. Representam um campo de investigação ainda a ser explorado numa perspectiva global. A título de exemplo, recordemos os projetos para o Rio de Janeiro, de Grandjean de Montigny, ou mesmo mais tarde de Gottfried Semper” (5) na Alemanha, cujas publicações empregam o termo “Renascença” desde 1834, encarando o estilo a principio negativamente, e depois incluindo a variante néo-renascença em seus ensinamentos e projetos em Dresden.

Brucculeri faz considerações detalhadas sobre as linhas de cada texto, o âmbito teórico-contextual em que se inscrevem, suas relações com a historiografia e o aporte à questões do reemprego da Renascença, da sua reinterpretação em diversos estudos de caso – na Alemanha, na Inglaterra vitoriana, na França, nos Estados Unidos pelos ex-alunos da Beaux-Arts de Paris, e outros. Papel fundamental de um organizador de obra rigoroso, que conhece profundamente a bibliografia e os temas, entre eles, a questão da prática da viagem no século 19 como instrumento essencial para o conhecimento do patrimônio arquitetural da península (especialmente o de Roma e o de Florença), discorrendo sobre textos fundadores, restituições gráficas, coletâneas de desenhos (de Durand, Percier, Letarouilly), que marcaram a formação dos arquitetos. Esses suportes do conhecimento adquirido, produzidos ao longo dos itinerários de viagens, vão constituindo um corpus de documentação referencial comum, de representações que circulam como meio de estudo e formação.

Em outras áreas culturais, como a literatura, são também levantados  guias, resenhas de viagem, e mesmo poesia (“Gabriele d’Anunzio e l’architettura italiana del XV e XVI secolo”), exemplificando as referidas leituras cruzadas presentes nos ensaios do livro, que se estendem também à história do mercado editorial das obras e suas imagens – neste particular, em destaque, o texto de Tiziana Serena que fecha a Primeira parte do livro, “Editoria e fotografia attorno al 1890”, com a análise dos livros de Pietro Paoletti, L’Architettura e la scultura del Rinascimento in Venezia (pelo editor F. Ongania, e com as fototipias de C. Naya, compondo 3 vols., publicados entre 1893-1897).

Todos os campos artísticos e países estudados confirmam “o caráter polivalente do conceito de Renascença”, a “porosidade de suas fronteiras temporais”, e as adaptações nacionais das formas do “Italianate style” – cuja difusão internacional destaca-se nos Estados Unidos, com a associação “Money with stile. The Italian Renaissance and American Architects”, de Massimiliano Savorra – e incluindo os exemplos dentro da Itália, sobretudo a partir da unidade italiana – “Neorinascimento e ‘stile nazionale’nell’Italia unita, tra teoria e prassi”, de Fabio Mangone. Os ensaios nesta linha analisam como o país retoma a própria herança cultural que se diversifica nas diferentes regiões, tanto nos centros históricos das cidades italianas (no programa dos Bancos, por exemplo), como nos quarteirões das periferias, encarnando representações identitárias da burguesia (as villas).

O estudo das conecções entre as ideias e a retomada de arquétipos dominantes – como os palácios e as casas urbanas, se dá no caso do ensaio sobre “Le style néo-Renaissance à Paris (1850-1900). Héritage historique ou art original”, de Isabelle Parizet, mostrando que a prática arquitetural de revivals que atravessa todo o século 19, faz do ecletismo um dos temas dominantes do livro e permite observar até que ponto os arquitetos do mundo inteiro elaboraram uma nova linguagem a partir das referências renascentistas.

Justamente, Bruculleri reafirma a dimensão internacional do livro já que o ‘modelo italiano’ é um fenômeno transnacional por definição, dai a opção por um quadro comparado amplo das situações de “transferências culturais e migrações de formas […] no tempo e no espaço”, pois os temas de estudo se situam não só em vários locais na Europa como também fora dela, sob enfoques metodológicos ligados às tradições historiográficas e artísticas dos países de onde procedem os vinte e dois autores de oito nacionalidades.

Levando-se em conta a “irradiação além dos seus limites e a difusão da sua luz através do mundo” do que Fernand Braudel chamou de “modelo italiano” (6), teremos certamente muito a aprender com a leitura e a consulta deste livro, para analisarmos o impacto de inúmeras construções com linguagens neorrenascença nas cidades brasileiras à espera de estudos aprofundados, envolvendo a presença dos projetistas e operários da imigração italiana e as histórias de assimilação dos seus saberes técnicos e modelos de referência.

Notas

1Sabine Frommel (1958) é autora de numerosas publicações sobre as relações entre a França e a Itália, a estadia de artistas italianos na corte francesa (do século 16 ao final do século 18: Leonardo da Vinci, Serlio, Vignola, Primaticcio, Bernini), e as viagens de estudo de artistas franceses na península italiana (Delorme, Lescot, Bullant, Percier e Fontaine), além de ser autora de monografias sobre arquitetos renascentistas (entre eles, Giuliano da Sangallo). Desenvolveu estudos comparativos das artes entre países europeus, a dinâmica das migrações e a historiografia e a recepção da linguagem renascentista no século 19. É também curadora, sendo que na exposição dos desenhos arquitetônicos de Sangallo na Galeria Uffizi em Florença em 2016, usou tecnologias recentes de digitalização de imagens e restituição em 3D. Ela é professora na École Pratique des Hautes Études (Paris-Sorbonne).

2Antonio Brucculeri (1968) é professor na École Nationale Supérieure d’Architecture Paris-Val de Seine, arquiteto pelo IUAV de Veneza e doutor pela Université de Paris VIII/IUAV; especialista das relações entre a historiografia artística e os debates sobre arquitetura e patrimônio na França entre o final do século 19 e primeira metade do 20, publicou uma tese sobre o historiador da arte Louis Hautecoeur, em 2007, e foi curador de exposição a respeito da obra desse historiador e a tradição clássica em 2008, no INHA. Seu livro mais recente, organizado com Cristina Cuneo, é bilíngue: A travers l’Italie. Edificesvilles, paysages dans les voyages des architectes français 1750-1850, Milano, Silvana Editoriale, 2020, e confirma seu interesse pelos dois países e as viagens na formação dos arquitetos e as experiências de circulação de modelos entre eles. Trabalha ainda sobre a emergência da historiografia da Renascença italiana no campo da arquitetura, sendo membro da equipe de pesquisas HISTARA (EPHE) junto com Sabine Frommel. Eles assinam também o volume L’idée du style dans l’historiographie artistique. Variantes nationales et transmissions (Roma, 2013).

3Remeto aos primeiros capítulos da Terceira parte do meu livro A Casaca do Arlequim. Belo Horizonte, uma capital eclética do século XIX. São Paulo/BH, Edusp/Editora da UFMG, 2020, onde discuto uma série de textos que circularam no Rio de Janeiro que permitem, entre outras questões, reconstruir a gênese do pensamento brasileiro sobre a neorrenascença, o ecletismo e a busca de um “estilo nacional” no pais.

4Não podemos esquecer aqui uma leitura fundamental sobre o conceito de Renascença para o historiador do século 19: o livro de Lucien Febvre, Michelet et la Renaissance. Paris, Flammarion, 1992.

5Observações de A. Brucculeri na Introdução ao livro, Renaissance italienne et architecture au XIX siècle. Interprétations et restitutions, nota 44, p. 31.

6Fernand Braudel, Le Modèle italien. Paris, Flammarion, 1994, p. 7.


Resenhista

Heliana Angotti-Salgueiro – Doutora em História da Arte pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Pesquisadora em São Paulo, é autora de artigos e livros nas áreas de história urbana, história cultural da arquitetura e do urbanismo, geografia humana e história da fotografia moderna. Atualmente desenvolve pesquisas sobre intermídias urbanas e escreve a biografia intelectual do engenheiro-arquiteto paulista Luiz de Anhaia Mello.


Referências desta Resenha

BRUCCULERI, Antonio; FROMMEL, Sabine (Orgs.). Renaissance italienne et architecture au XIXe siècle. Interprétations et restitutions. Roma: Campisano, 2016. Resenha de: ANGOTTI-SALGUEIRO, Heliana. Novas interpretações sobre a Renascença italiana na arquitetura do século 19. Historiografia e difusão de representações. Resenha Online. São Paulo, n. 233, maio 2021. Acessar publicação original [DR]

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