As pesquisas sobre religiões e religiosidades nos âmbitos das ciências sociais e das ciências humanas têm sido consideravelmente ampliadas qualitativa e quantitativamente nas últimas décadas. Avaliando o significado que as crenças incutem em atos (abordagem fenomenológica), a historiografia sobre as religiões e religiosidades tem demonstrado que as propaladas benesses progressistas da secularização e laicização não foram consolidadas como se previra e que os investimentos institucionais e subjetivos em objetos ditos “sacros” (ou mesmo sacralizados), além de se intensificarem, estão cada vez mais evidentes em nosso cotidiano. Nesse sentido, o presente dossiê temático da revista História: Debates & Tendências também se integra a esse esforço pela divulgação das profícuas pesquisas já realizadas ou em andamento que versem sobre religiosidade e cultura.
O dossiê que ora apresentamos se destaca pela diversidade de temas, abordagens e objetos que mobilizam pesquisadores dedicados à interpretação dos inúmeros fenômenos religiosos contemporâneos e suas interfaces com campos variados (político, social, cultural, etc.), evidenciando a complexidade da realidade empírica, bem como a necessidade de nos atermos também aos modos de crer, criar, ressignificar, selecionar, etc., empreendidos pelos agentes históricos no seu dia a dia em seu “fazer a história”. Nesse sentido, os artigos iniciais do dossiê trazem a lume as percepções individuais – “modos de ver e de crer” – de diferentes sujeitos históricos em suas articulações singularizadas, compósitas e idiossincráticas sobre temas ou questões religiosas.
O professor Artur César Isaia analisa as interpretações e o olhar normativo, elitista e católico que o psiquiatra Antonio Xavier de Oliveira lança sobre as temáticas do misticismo popular. Articulando o discurso médico ao religioso, Oliveira considera o misticismo como resquício de uma grave ausência da catequese católica, assim como resultado da miserabilidade, caráter subversivo, comportamento antissocial e, mesmo, incultura de grupos sociais adeptos dos discursos místicos. Por sua vez, Rodrigo Coppe Caldeira se detém na interpretação que o líder católico Jackson de Figueiredo faz sobre o pensamento e obra do filósofo e teólogo Blaise Pascal, dedicado a questionar os temas da razão e fé no contexto do chamado “racionalismo moderno” do século XVII.
Por fim, ainda analisando um autor singular, temos o artigo de Marcelo Timotheo da Costa evidenciando as formas com que Thomas Merton, monge trapista, fez uso da teologia finalista para compreender e analisar a trajetória dos cristãos e, neste bojo, a sua própria. Nessa “escalada”, a salvação à vida pregressa, secular, mundana ganha sentido e coaduna-se em uma lógica transcendente, que não só ameniza a vida de pecado anterior, mas a explica e a legitima. Evidenciando as trajetórias humanas como caminho para a salvação, Merton mostra não só aos seus inúmeros leitores, mas também a si próprio, como os caminhos tortuosos e pecaminosos rumo aos céus tornam-se fatores de consolidação da fé e elementos de amadurecimento e santificação pessoal.
Na sequência, o texto de Rogério Luiz de Souza traz uma interessante análise sobre os processos do chamado aggiornamento, ou atualização, empreendidos pelas instâncias decisórias da Igreja Católica Apostólica Romana, cujo marco foram os trabalhos do Concílio Vaticano II (1962- 1965). Nesta análise, o autor avalia o processo de participação de católicos em movimentos de esquerda e movimentos sociais, assim como destaca como a comunidade católica optou por enfatizar os ditos “avanços progressistas” do Concílio Vaticano II, em detrimento dos seus muitos recuos, balizando este evento como marco de um progressismo que não foi consensual, nem mesmo integral, nas decisões tomadas pelos líderes eclesiásticos.
O texto de Rosângela Wosiack Zulian nos apresenta um contexto de conflitos decorrentes da chegada de imigrantes poloneses à região de Ponta Grossa / PR no início do século XIX. Naquele contexto, os estranhamentos culturais evidenciam como preconceitos étnicos e religiosos foram reforçados e supervalorizados nos conflitos por espaço, reconhecimento e defesa de identidades nas colônias paranaenses.
Imaginários em disputa também se fazem presentes de Eduardo José Reinato, que analisa a importância simbólica dos ex-votos dispostos pelos devotos agradecidos por pretensas graças alcançadas no Santuário da Trindade (Goiás) e os problemas que tal prática – dita “popular” – irá enfrentar diante das tentativas de controle e ordenação que o catolicismo institucional tenta impor aos fiéis. A relevância de práticas e crenças populares também é analisada por Tânia Welter, em artigo acerca das ressignificações dos fiéis sobre a figura do monge João Maria. Sua “presença”, física ou espiritual, denota a importância que este “símbolo” foi consolidando ao longo das décadas e, ao mesmo tempo, conforme evidencia a autora, como a reinterpretação de sua vida e obra se deu em função das necessidades cotidianas dos crentes.
Necessidades, aspirações e identidades estão entre os eixos temáticos do artigo de Marcelo Ayres Camurça, que pesquisou a produção de subjetividades entre os membros do Projeto Universidade Renovada (PUR) da Universidade Federal de Juiz de Fora. A articulação de duas esferas em tese contraditórias – ciência / razão e religião / fé – exposta no artigo evidencia, pela análise de rituais do Grupo de Oração Universitário (GOU), como essas instâncias podem ser articuladas de múltiplas formas pelos indivíduos em função de uma lógica própria, idiossincrática e significativa. Da mesma forma, a análise contempla o tema do reforço ao tradicionalismo e à hierarquia católica empreendidos pelos membros da Renovação Carismática Católica (RCC), responsável pelo grupo analisado.
A Era de Aquário e a Nova Era são temas analisados por João Lupi. Em seu instigante artigo vemos uma discussão aprofundada sobre o tema da Nova Era, seus vetores e sua história. Consolidada no cotidiano ocidental a partir do musical Hair (1967) e da composição Aquarius, a chamada Nova Era é esmiuçada em suas peculiaridades e, mesmo, ambiguidades. Já o artigo de André Dioney da Fonseca evidencia alguns embates e debates acerca da utilização da radiodifusão como veículo de comunicação e proselitismo pelos líderes da Assembleia de Deus. Inspirado pelas considerações de Michel Lagrée sobre modernidade e religião, o autor evidencia a historicidade da relação da Igreja Assembleia de Deus com este veículo moderno de comunicação pela análise das convenções assembleianas.
Os artigos livres que integram a revista versam sobre arte e cidade, questões interétnicas e educação em Rio Grande – RS. Cláudia Mariza Mattos Brandão articula as discussões sobre arte e cidades analisando obras que discutem concepções sobre a urbe em suas telas. A problematização da cidade com base em olhares de artistas evidencia a proficuidade de uma compreensão da temática por meio de representações pictóricas. Já o artigo de Vanderlise Machado Barão se detém sobre os processos de contato entre indígenas e europeus e a historicidade dos movimentos de resistência indígena, nem sempre considerados pela historiografia. Ao enfatizar os processos de resistência, a autora contribui para um questionamento crítico sobre o papel do indígena na configuração cultural rio-grandense, bem como reavalia os processos de ressignificação cultural pelos quais grupos guarani optaram nestes séculos de colonização do sul do país.
Por fim, o artigo de Gerson Wasen Fraga e Ester Ribeiro avalia, por meio de um estudo de caso, as complexas relações de poder na então pequena comunidade do Bosque Silveira em Rio Grande – RS em fins da década de 1930. Analisando as acusações e o processo avaliativo movido contra uma professora da Escola do Bosque, os autores perfazem parte das relações cotidianas daquela localidade, evidenciando que a temática da transferência da professora Inah da Silva Soares, que deu origem ao processo analisado, foi apenas um elemento de uma rede intrincada de relações pessoais e de poder no interior rio-grandino.
Gizele Zanotto – Professora Doutora
ZANOTTO, Gizele. Editorial. História – Debates e Tendências, Passo Fundo- RS, v. 9, n. 2, jul / dez, 2009. Acessar publicação original
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