Religiões e religiosidades no nordeste brasileiro: permanências e rupturas / Ponta de Lança/2019
A composição dos textos aqui constituídos parte dos pressupostos que as religiões e religiosidades são definidas pela transmissão e perpetuação da memória de um acontecimento fundador original através de uma “linhagem religiosa” ou “linha de crença”. Isso implica mobilizações de memórias coletivas nas quais o passado fica sendo simbolicamente como um todo imutável e situado “fora do tempo” no qual fazer memória desse passado dá sentido ao presente e ao futuro. Ao contrário da suposta continuidade da tradição religiosa, as instituições religiosas e seus respectivos agentes mascaram suas mudanças e rupturas (HERVIU-LÉGER,2005). As possíveis respostas destas questões poderão ser observadas a partir das temáticas abordadas em 4 (quatro) artigos e uma resenha. O primeiro texto intitulase Comunista, Não. Graças A Deus, de autoria dos historiadores Claudefranklin Monteiro Santos e Rosana Oliveira Silva. O artigo trata do contexto das acusações feitas a Dom José Brandão de Castro (1919-1999) de práticas comunistas e “subversão” durante os anos de seu episcopado, à frente da Diocese de Propriá (1960-1987), à luz da repercussão midiática do caso, principalmente nos jornais impressos locais. Afora a necessidade de entender de que maneira as relações entre Igreja e Estado foram conduzidas durante a vigência da ditadura civil-militar em Sergipe, tendo com aporte, também, documentação levantada pela Comissão Estadual da Verdade.
A Expressão da Religiosidade Popular Nordestina da Devoção a São Gonçalo no Piauí de autoria do historiador Márcio Douglas de Carvalho e Silva aborda a Dança de São Gonçalo, muito frequente na zona rural do município de Campo Maior-PI, apresentada como um ritual de pagamento de promessas realizado na forma de dança e cantoria. O trabalho se propõe analisar como se dá a relação entre os devotos, o santo e a comunidade estabelecida a partir da realização do ritual de pagamento das promessas feitas a São Gonçalo, em que há envolvimento de diversos entes familiares e sociais. A orientação metodológica inclui coleta dos dados, a observação dos rituais, entrevistas com os devotos, captura e uso de fotografias.
Sergiana Vieira dos Santos, no artigo O Sertão, a Vida e as figuras de uma Certa Religiosidade Popular em Delmiro Gouveia–AL, analisa o modus vivendi de mulheres e homens do sertão de Alagoas. Uma discussão que envolve um pouco da história de formação dos sertões sob o ponto de vista antropológico, histórico e jornalístico de figuras consideradas de referência quanto às questões que envolvem a formação daquele estado. A pesquisa dialoga com rezadeiras e um rezador, que contribuem, de forma veemente, para reforçar uma religiosidade de expressão popular através de suas práticas tradicionais de cura e que revelam uma resistência diante de mudanças cotidianas nas formas de pensar e agir no sertão alagoano.
O artigo Moças, Casadas e Viúvas: a Elite Católica Feminina na Aracaju Oitocentista, de autoria de Bruna Ribeiro dos Santos e Ivo Rangel Fontes Lima, traz à tona vestígios da resistência feminina católica em Aracaju, Sergipe, no século XIX frente ao patriarcado dominante, a partir da participação das mulheres na Irmandade de Nossa Senhora da Pureza, enquanto associação leiga de domínio e resistência daquelas mulheres. Os autores demonstram como essa Irmandade carrega consigo um pioneirismo de enfrentamento às questões de lutas sociais e representações protagonizando um avanço de tomada de lugar nos meios predominantemente masculino.
Ives Leocelso Silva Costa resenha a obra Bispos Guerreiros: violência e fé antes das cruzadas (Petrópolis: Vozes, 2018) de Leandro Duarte Rust, historiador medievalista e Professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). O resenhista destaca que a obra em questão se constitui num estudo do que não se quer ver, da constância e coerência, num contexto histórico específico, de um fenômeno tido como excepcional. É história das religiões, uma vez que o sagrado ocupa grande parte de sua atenção. Além disso, destaca que os temas do livro, o elo entre sacralidade e violência, religião e poder, são caros à contemporaneidade. Fiel à história-problema, Rust volta-se para o passado medieval para dialogar com os anseios do presente, especialmente no contexto do pós-11 de setembro e do crescimento dos fundamentalismos no Ocidente e no Oriente.
Este Dossiê busca demonstrar como o campo religioso no Nordeste Brasileiro tem sido marcado constantemente por tensões entre agentes e instituições defensoras de práticas religiosas tradicionais e aquelas abertas às transformações seculares. Aqui estão reunidos parte da produção acadêmica de pesquisadores que tenham se dedicado ao estudo das práticas religiosas nessa região em suas diferentes formas de expressão e tendências no espaço e na esfera pública, sobretudo quanto às diferentes formas de permanências e rupturas que tem marcado suas configurações religiosas. Nessa perspectiva, acreditamos que estes textos demonstrem como as religiões e religiosidades não surgem por geração espontânea, não são criadas como um ato demiúrgico, Ex nihilo nihil fit (nada surge do nada), o que faz com que as teodiceias sejam sempre sociodiceias. Elas estão intimamente ligadas as respectivas sociedades, inseparáveis das teias simbólicas materiais da história, dos modos de produção da vida e da cultura (BOURDIEU, 1998).
Referências
HERVIU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Lisboa: Gradiva, 2005.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. 5. ed., São Paulo: Perspectiva, 1998.
Péricles Andrade – Doutor em Sociologia pela UFPE. Professor do DCS e dos Mestrados em Ciências da Religião (PPGCR) e História (PROHIS)/UFS. E-mail: periclesmorais@hotmail.com
Silvério Pessoa – Doutor em Ciência da Religião pela UNICAP. Professor do CTCH, Departamento de Pedagogia da UNICAP. E-mail: silveriop@icloud.com
ANDRADE, Péricles; PESSOA, Silvério. [Religiões e religiosidades no nordeste brasileiro: permanências e rupturas]. Ponta de Lança, São Cristóvão, v.13, n. 24, 2019. Acessar publicação original [DR]