Basta lermos o jornal ou assistirmos ao noticiário na TV para percebermos que a temática da religião é recorrente em nosso dia a dia. Quem nunca ouviu a expressão bancada evangélica ou escutou que grupos políticos alteraram seus discursos para não desagradar a determinados segmentos religiosos? Quem, nos últimos 20 anos, não se deparou com o conceito de fundamentalismo ou de guerra santa? Não há como negarmos a influência cultural das religiões ainda hoje. Além disso, percebemos uma constante tensão entre diferentes crenças no Brasil. Basta uma busca rápida no Google para localizarmos diversas informações sobre a violência e a intolerância religiosa. O jornal Correio Brasiliense divulgou, no ano de 2019, que as religiões afro-brasileiras são alvos de 59% dos crimes de intolerância no Distrito Federal [1]. O Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015) analisou a crescente violência noticiada na imprensa. Segundo os dados, 53% dos agredidos são de religiões afro-brasileiras [2]. O que explicaria toda essa violência? Por que as religiões afro-brasileiras sãos as que sofrem mais ataques? Não são questões simples de serem respondidas, mas são possíveis de serem analisadas à luz da História das Religiões. Marcelo Massenzio, ao analisar a obra de Angelo Brelich, lembra-nos que os fenômenos que atribuímos ao plano da religião podem ser percebidos em distintas sociedades, mas o conceito religião não. Este é uma construção própria do ocidente cristão (MASSENZIO, 2005, p. 179).
Brelich enfatizou que nenhuma civilização antiga, nem mesmo grega ou romana, possuía um termo correlato à religião, pois religio, do latim, não tinha o significado moderno que atribuímos hoje, mas representava um conjunto de ações que não se referiam necessariamente às divindades, tradições ou festividades que denominaríamos como religiosas. Nesse sentido, uma definição fixa sobre religião é buscar uma precisão em conceito impreciso; sua utilização precisa ser compreendida como algo funcional da pesquisa acadêmica e não como algo autônomo e essencial (BRELICH, 1977, p. 34-35). Assim, “a pretensão de que tal conceito retenha em si a essência universal do fenômeno ‘religião’ não é cientificamente fundada, pois é correlato a uma formação religiosa particular, própria de um contexto histórico-cultural bem determinado.” (MASSENZIO, 2005, p. 179).
Massenzio define religião como: “um produto histórico, culturalmente condicionado pelo contexto e, por sua vez, capaz de condicionar o próprio contexto em que opera.” (MASSENZIO, 2005, p. 149). Antônio Benatte acrescenta que “é um sistema mais ou menos aberto de crenças e práticas que são transmitidas historicamente (tradições) e que orientam comportamentos, ações e coletividades” (BENATTE, 2014, p. 65). Assim, percebemos que estudar as religiões e religiosidades significa perceber como tais práticas se transformaram e transformam em um contexto histórico e cultural, inserindo novas lógicas na organização social.
É nesse sentido que o dossiê Religiões e religiosidades: dinâmicas institucionais e práticas devocionais (Brasil e Portugal, séculos XVIII e XIX) colabora para o aprofundamento dos debates sobre a História das Religiões e suas relações sociais e políticas. O presente dossiê é composto por 15 artigos escritos por pesquisadores das mais diversas instituições do Brasil e com variadas formações: graduados, mestres e doutores.
O conjunto dos textos aborda diferentes olhares sobre as crenças e os ritos, enfatizando a hierarquia religiosa e os conflitos com a política; a influência religiosa sobre as mulheres e a estrutura eclesiástica e sua relação com a sociedade. Contudo, todos convergem para a compreensão das religiões/religiosidades como elemento transformador das organizações sociais.
O artigo intitulado “Para que a adoração suba espontânea e livre dos homens para Deus”: Uma análise a respeito da posição maçônica frente as ações ultramontanas na Questão Religiosa, de Alexandre Coelho dos Santos, analisa os conflitos entre maçons e ultramontanos na segunda metade do século XIX. A pesquisa contesta uma interpretação binária que assenta católicos e maçons em lados opostos. Assim, o autor demonstra que ser católico, naquele momento, era algo plural, pois muitos eclesiásticos eram membros e defensores da maçonaria. Nessa compreensão, o conflito conhecido como Questão Religiosa não deve ser interpretado como uma disputa entre maçons e católicos, mas como liberais e ultramontanos.
João Lucas Moura e Souza é o autor do artigo Colaboração entre ultramontanos e progressistas: Santa Casa de Misericórdia, irmandades e festas religiosas em Campinas na década de 1870. Sua pesquisa investigou a relação existente entre eclesiásticos ultramontanos e políticos progressistas em Campinas nas últimas décadas do século XIX. Os pontos de convergência entre esses grupos, que historicamente foram tratados como antagônicos, exemplifica como o ultramontanismo não é um conceito fixo e homogêneo. Já no artigo O recrutamento do clero secular no século XVIII sob uma análise em escalas variadas: Constituições, padroado, câmara e família, Rafaela Zanotto Casagrande demonstra, por meio de uma análise prosopográfica, que ingressar no sacerdócio, no século XVIII, não era apenas uma opção pessoal, mas dependia da legislação eclesiástica, do padroado, da negociação das câmaras e das estratégias elaboradas pelos indivíduos e suas famílias.
Diego Santos Barbosa, em Entre a identidade e a devoção: Os conflitos entre o Cabido da Sé e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos na cidade do Rio de Janeiro no século XVIII, demonstra como as duas irmandades construíram um discurso de identidade em um momento de crise, principalmente a partir do confronto com o Cabido da Sé na luta pela autonomia de suas práticas dentro de suas igrejas. Daniel da Silva Firino e Carlos André Macêdo Cavalcanti também analisaram os conflitos religiosos, mas entre católicos e adventistas, na Paraíba, durante o ano de 1940. A pesquisa partiu da violência sofrida pelo pastor adventista Moyses Nigri na região de Baixa Verde. O trabalho contribui para refletirmos acerca da violência e da intolerância religiosa ainda existentes no Brasil.
No artigo Laços sobre os santos óleos nos altares das senzalas: Os vínculos de compadrio de forros e escravos no Arraial do Tejuco e Vila do Príncipe (1720-1740), de autoria de Thassio Ferraz Tavares Roque, percebemos como os apadrinhamentos de negros e forros poderiam ser utilizados para burlar as leis eclesiásticas, deixando evidentes possíveis relações de concubinato no século XVIII. Já Andressa Antunes de Freitas em: Associações leigas e expressões devotas: africanos e afrodescendentes no projeto cristão da América Portuguesa, século XVIII, investiga como as associações leigas entre africanos e afro-brasileiros serviram para inserir os negros no projeto cristão lusitano, permitindo a identificação dos negros com a fé cristã e impossibilitando que outras crenças interferissem no escravismo.
Em A Atuação espiritual dos bispos D. Fr. Antônio do Desterro Malheiros e D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco no Convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda do Rio de Janeiro (1750-1806), a pesquisadora Amanda Dias de Oliveira Costa investigou a interferência administrativa de dois bispos sobre o Convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda e as estratégias das religiosas para alcançarem autonomia e exercerem suas atividades em momentos de crises financeiras.
Já Isadora de Mélo Escarrone Costa, no artigo Entre Brasil e Portugal: Gênero e religião na representação do feminino em meados do Oitocentos, analisou a representação feminina nos periódicos brasileiros e portugueses no século XIX. A pesquisa permite perceber como essa temática se relacionava com a moral católica compartilhada nessas duas nações. Nesse mesmo percurso de análise, Nívea Maria Leite Mendonça, em Virtuosidade e devotamento: a participação feminina na Ordem Carmelita, demonstrou que as Ordens Terceiras do Carmo funcionaram como espaço estratégico para que as mulheres alcançassem poder atuando em cargos administrativos dentro da instituição, funcionando como espaço de autonomia feminina na Capitania de Minas Gerais no século XVIII.
Em O Absolutismo e a ordem social: perseguição aos cristãos-novos portugueses na Idade Moderna, Gislaine Gonçalves Dias Pinto pesquisou como a Igreja Católica e a monarquia portuguesa se aliaram e moldaram a sociedade moderna ao estabelecer hierarquias sociais. Nesse processo, o Tribunal do Santo Oficio perseguiu e tentou controlar grupos religiosos que estavam na contramão das suas normativas, especialmente os judeus. Ainda na análise do Tribunal do Santo Ofício, o artigo A bigamia em apropriações da normatividade: o caso da América portuguesa em fins do século XVIII, escrito por Mayara Amanda Januario, investigou esse tribunal a partir dos casos de bigamia. A pesquisa revela que a permanência desse tipo de processo no tribunal demonstra que essa instituição religiosa continuava a desempenhar um papel relevante na organização da sociedade setecentista.
Em uma análise sobre a religiosidade no século XVII, Laís Morgado Marcoje apresentou a importância do vilancico como fonte histórica nos estudos das festas e dos rituais católicos na Espanha. Intitulado O vilancico de Natal no mundo ibérico (1640), a autora enfatiza que essas composições, repletas de elementos sacros, estavam presentes no calendário festivo religioso, tornando-se relevantes no estudo das práticas religiosas daquele período.
Sobre a relação política-religiosa entre Portugal e a África, encontramos nessa edição dois instigantes artigos. O primeiro Política e religião no reino do Congo (séculos XV – XVI): dom Afonso I o rei “convertido”, do autor José Mateus Francisco, demonstra como o contato político e religioso entre Portugal e o Congo, culminou com a conversão do rei congolês ao cristianismo e possibilitou um catolicismo sem abandonar as outras crenças existentes. Essa flexibilização religiosa permitiu a construção de um modelo de monarquia alicerçado no direito divino dos reis aos moldes europeus e fortaleceu uma elite real em detrimento de poderes locais.
Já em Embaixadas diplomáticas, embaixada apostólica: imbricações entre religião, comércio atlântico e poder político na diplomacia luso-daomeana (1795-1810), Raphael dos Santos Gonçalves, ao investigar como os discursos religiosos apareciam na diplomacia entre o Reino de Portugal e o Daomé, percebeu que nessa relação diplomática a conversão de daomeanos ao cristianismo não significou abandono de práticas e rituais tradicionais, mas uma estratégia de alcançar sucesso em seus interesses comercias.
Nesta edição da revista Temporalidades, o leitor encontrará estudos que demonstram como as religiões e religiosidades ditaram comportamentos, alteraram lógicas sociais, construíram tradições, definiram estratégias comerciais e influenciaram legislações. Assim, moldaram a política, as relações de gênero e outras formas de poder ao longo da história. Os artigos reunidos possibilitam refletir sobre os conflitos e relações que envolveram as diversas crenças e que, ainda hoje, influenciam, atraem, cativam e orientam comportamentos sociais.
Boa leitura!
Notas
1. Conferir: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/11/11/interna_cidadesdf,805394/religioes-dematriz-africana-alvos-de-59-dos-crimes-de-intolerancia.shtml Acesso em: 14/06/2021.
2. BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Cidadania. Diretoria de Promoção e Educação em Direitos Humanos. Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): resultados preliminares, 2018. Disponível: https://bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/handle/192/1145 Acesso em: 14/06/2021.
Referências
BENATTE, Antonio Paulo. A História Cultural das Religiões: Contribuições a um debate historiográfico. In: ALMEIDA, Néri de B. & SILVA, Eliane Moura da (orgs.). Missão e Pregação. A comunicação religiosa entre a História da Igreja e a História das Religiões. São Paulo: Editora FapUnifesp, 2014, p. 59-79.
BRELICH, Angelo. Prolegómenos a una historia de las religiones. In: PUECH, Henri-Charles (comp.). Historia de las Religiones – Volume 1: Las Religiones Antiguas 1, Siglo XXI, Madrid, 1977, p. 30- 97.
MASSENZIO, Marcello. A História das Religiões na Cultura Moderna. São Paulo: Hedra, 2005.
Gustavo de Souza Oliveira – Doutor em História Professor do Instituto de História da UFU. E-mail: gustavo.oliveira3@ufu.br
OLIVEIRA, Gustavo de Souza. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.13, n.1, p.20-25, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
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