Religião e Indústria Cultural | Ponta de Lança | 2021

Tela inicial do site Gospel Prime, 27 jul. 2021

Diversas pesquisas no âmbito das ciências humanas têm constatado que no campo religioso (BOURDIEU, 1998) brasileiro evidencia-se ampla concorrência entre seus agentes, o que os tem levado cada vez mais a criar novas estratégias e bens simbólicos de salvação plausível, aqueles que garantam às instituições religiosas forças na luta pelo monopólio da gestão desses bens, pela manutenção ou ampliação do seu capital social. Nessas disputas, os meios de comunicação têm desempenhado um papel primordial, principalmente com a mediação da cultura moderna, onde foram plasmadas as maneiras como as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas nas sociedades modernas, bem como as maneiras como as pessoas experimentaram as ações e acontecimentos que se dão em contextos dos quais estão distanciados, tanto no espaço como no tempo (THOMPSON, 1995).

Num mundo marcado pelos meios de comunicação, as tradições se tornaram mais e mais dependentes de formas simbólicas mediadas. Elas foram desalojadas de lugares particulares e reimplantadas na vida social de novas maneiras. Mas o deslocamento e a nova ancoragem das tradições não se tornam necessariamente inautênticas, nem foram condenadas à extinção. Com o avanço dos meios de comunicação, o papel das tradições orais, por exemplo, não foi eliminado, mas foi suplementado e reconstituído pela difusão dos produtos da mídia (THOMPSON, 2002).

Cientes do papel da mídia na contemporaneidade, as denominações religiosas e seus agentes, vêm tomando tais meios como locais de disputas conquista ou manutenção da hegemonia do campo religioso. Religião e mídia parecem estar cada vez mais conectadas à medida que avançamos mais do século XXI. Isso pode ser ilustrado a partir da disputa interna que setores católicos e evangélicos vêm travando na arena midiática há algumas décadas. A forte competitividade no campo religioso se verifica na acirrada disputa que envolve crenças, fiéis, moralidades e a luta das igrejas cristãs por consolidarem sua hegemonia institucional, perante a diversidade religiosa da sociedade brasileira. É através da mídia que grande parte da religião contemporânea e da espiritualidade são conhecidas, o que implica um ambiente no qual o comunicador sagrado e o produtor secular são simultaneamente dependentes e moldados pela mídia. Tanto as instituições religiosas utilizam vários formatos de mídia para apresentar a fé, como a mídia secular coopta as idéias religiosas para gerar audiências e receitas, mesmo que isso implique no risco delas perderem o controle sobre a forma como as narrativas que produzem vão ser representadas ou apropriadas (EINSTEN, 2012).

Isso significa que ao longo do século XX o papel dos meios de comunicação se ampliou em relação à religião, indo além dos registros de informações dos câmbios sofridos na religião dos indivíduos e das tímidas investidas das instituições religiosas nesses meios. Gradativamente os grupos religiosos compraram as audiências de horários nobres e adquiriram as próprias mídias como canais exclusivos das respectivas missões religiosas. Além de ser um veículo a mais nas estratégias proselitistas, a mídia se torna o palco das mudanças mais significativas religiosas, pois os mass media passarem a ser protagonistas:

.. de meros instrumentos, assumiram pauta de questões religiosas relevantes, as quais ainda se constituem como objeto de conflitos. Se as igrejas tradicionais mantiveram-se distantes da lógica comunicacional, quando não foram contrárias a ela, hoje, acenam para uma guinada mais radical nas suas posições, a começar pela busca de investimentos financeiros que viabilizem o uso profissional da mídia… (CARRANZA: 2013, p. 540).

Desse modo, para além de função de divulgação, as religiões incorporam à produção dos bens e serviços religiosos ofertados aos diversos capitais inerentes ao campo da indústria cultural. Adorno e Horkheimer nos fragmentos filosóficos denominados de Dialética do Esclarecimento usaram-no enquanto instrumento pelo qual a sociedade em sua totalidade é construída, por meio da proteção do capital ((ADORNO; HOKHEIMER, 1985. Referirem à mercantilização das formas culturais ocasionadas pelo surgimento das indústrias de entretenimento na Europa e nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX, tais como os filmes, o rádio, a televisão, a música popular, as revistas e os jornais. O surgimento das indústrias de entretenimento como empresas capitalistas resultaram na padronização e na racionalização das formas culturais, e esse processo, por sua vez, atrofiou a capacidade do indivíduo de pensar e agir de uma maneira crítica e autônoma (THOMPSON, 2011). Para Adorno e Horkheimer,

Os consumidores são os trabalhadores e os empregados, os lavradores e os pequenos burgueses. A produção capitalista os mantém tão bem presos em corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que lhes é oferecido (…) seu controle sobre os consumidores é mediado pela diversão, e não é por um mero decreto que esta acaba por se destruir, mas pela hostilidade inerente ao princípio da diversão por tudo aquilo que seja mais do que ela própria (ADORNO; HORKHEIMER, 1947. p. 63-64).

Nessa perspectiva, podemos afimar que os trabalhos religiosos (BOURIDEU, Op. Cit) se adéquam às lógicas desse campo, o que implica na constituição de novas maneiras de compartilhamentos entre a mensagem religiosa e essa indústria, sobretudo no âmbito do campo artístico-midiático. Os programas de televisão, de rádio, os shows registrados e compartilhados, todos podem ser vistos novamente através das plataformas digitais e virtuais. As canções registradas em CDs e DVDs podem ser acessadas através dos serviços de streamings. São maneiras novas, pedagogicamente, de multiplicar uma mensagem. Novos agentes religiosos são fundamentais, consolidando suas carreiras e se profissionalizando não apenas no campo religioso, mas também no campo artísticomidiático. Esses são capazes de atuarem em novos ambientes, superaram a lógica histórica horizontal do interior dos seus respectivos campos religiosos ao realizaram simbolicamente uma travessia entre o altar e os palcos, entre o templo e o ciberespaço. Os agentes religiosos atuam, sobretudo, numa sociedade em rede (CASTELS, 2009), onde tudo está conectado e isso gera uma multiplicidade de opções na concretização da vontade humana e o exercício do poder está diretamente ligado às capacidades de capitalização do uso das informações, faz mais que necessário que as religiões entendam e se adentrem na internet, pois, algumas podem estar perdendo espaços para outras mais conectadas e mais sabedoras dos fenômenos desta cibercultura (LÉVI, 2000).

Nessa perspectiva, o Dossiê Religião e Indústria Cultural tem como ambição motivação contribuir para o debate referente às adesões e tensões envolvendo a produção de bens e serviços religiosos a partir dos pontos de intercessões entre os campos religiosos e artístico-midiáticos, sobretudo a partir das lógicas inerentes à indústria cultural. Estão aqui reunidos pesquisadores de diversas instituições brasileiras, distribuídos em 6 (seis) com artigos que irão tratar a partir de ensaios e investigações empíricas as questões supracitadas.

Silvério Leal Pessoa e Zuleica Dantas Pereira Campos no artigo O Ilu quando bate não tem coração que não vibre: o som que se desloca do terreiro para espaços profanos busca demonstrar a presença da religião afro-brasileira em espaços não-consagrados através do deslocamento que o ilu realza entre o terreiro até os palcos. A finalidade da pesquisa é também demonstrar uma conexão híbrida que o instrumento realiza entre os toques sagrados aos orixás e as canções da cultura contemporânea.

O mensageiro da paz e luz nas trevas: as inovações da industria cultural nas igrejas Assembleias de Deus e a tradição na Igreja Batista sueca no Brasil é escrito por Marina Aparecida Oliveira dos Santos Correa e Samuel Pereira Valério. A pesquisa tem como objetivo averiguar os bens simbólicos ofertados segundo a lógica da indústria midiática, sobretudo, a partir do trabalho religioso realizado pelas Assembleias de Deus. Assim pensar, que essas aderiram à lógica da indústria midiática como forma de manutenção de seus empreendimentos religiosos no disputado mercado de bens simbólicos de salvação, enquanto as Igrejas Batistas continuam mais retraídas, sem visibilidade midiática.

A indústria cultural e o campo religioso brasileiro contemporâneo: a oferta de bens simbólicos e as estratégias para conquista e fidelização de fiéis / clientes de José Ferreira Júnior e Janaina Freire Santos trata da da atuação da indústria cultural no campo religioso brasileiro, especificamente demonstrando a apropriação das mídias eletrônicas pelas instituições religiosas que a justificam sob o discurso do cumprimento de sua missão de anunciar as “boas novas”.

Drance Elias da Silva e Adriana Guilherme Dias da Silva Figueirêdo no artigo Templo, espetáculo e consumo: formas reducionistas de pertencimento religioso pretende refletir sobre a natureza da relação entre religião, sociedade e economia, a fim de identificar no discurso religioso um ethos de expressão induzida: o consumismo associado à prosperidade como condição de pertença religiosa.

O estudo Posicionamentos do cristianismo brasileiro nos espaços virtuais de autoria de Naccer Cayc Ribeiro Donato e Rogério Tiago Miguel busca compreender de que forma o ambiente digital apresenta a(s) teologia(a) cristãs e se houve uma “diluição” ou uma preservação do modelo teológico. O texto demonstra como o Cristianismo no Brasil se apresenta um tanto quanto sincrético e aberto. Se por um lado ele é aberto à diálogos com o diferente se lançando à um modelo pluralista, por outro lado ele se apresenta conservador com tendências de isolamento em relação aos avanços sociais e culturais e tornou-se alheio a cultura do seu tempo.

Por fim, Adam Henrique Freire Sousa, Andrea Vettorassi e Péricles Andrade no artigo A doxa conservadora no Brasil: mídia evangélica e eleições presidenciais em 2018 analisam textos produzidos pelos websites jornalísticos religiosos Gospel Mais e Gospel Prime, que constroem notícias políticas com um viés cristão conservador durante as eleições brasileiras de 2018. O estudo procurou compreender os processos textuais necessários para produção da notícia política sobre naquelas eleições sob o viés dessa “cosmovisão cristã”.

Enfim, a partir deste Dossiê acreditamos que podemos ampliar o debate e a compreensão da emblemática adesão pelas institutições religiosas das lógicas da indústria cultural nas produções de seus bens simbólicos de salvação. Não esquecendo que essas adesões são efetivadas nos diversos campos artísticos e midiáticos através de agentes que corroboram tais adesões, são os artistas da fé. O conjunto de textos aqui selecionados responde, não definitivamente, questões quanto às adesões e tensões entre os campos religioso e artístico-midiático. Essa adesão não é ponto pacífico internamente para os agentes religiosos nos seus respectivos campos. Por outro lado, a entrada desses no campo artístico-midiático também é agonística. Em ambas as situações, requer dos agentes ajustes às suas práticas, o que implica mais conflitos e disputas internas e externas. É com certeza uma leitura contemporânea e que revela a continuidade e reconfiguração não só das adesões, mas dos diversos formatos artísticos que se recriam, dependendo da mídia que esteja sendo a novidade do momento.

Convidamos vocês a participarem deste debate!

Referências

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1947.

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Paz e Terra, 2009.

EINSTEN, Mara. Religião, Mídia e Marketing. In: MOREIRA, Alberto da Silva; LEMOS, Carolina Teles; QUADROS, Eduardo de Gusmão (organizadores). Religião na Mídia e Mídia na Religião. Goiânia: Gráfica e Editora América, 2012.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2 ed. São Paulo: Ed. 32, 2000.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 1995.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.


Organizadores

Péricles Andrade – Doutor em Sociologia pela UFPE. Docente do Programas de Pós-Graduação em Sociologia, História e Ciências da Religião e do Departamento de Ciências Sociais da UFS. E-mail: periclesdcs@academico.ufs.br

Silvério Leal Pessoa – Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco. Professor da Escola de Educação Humanidades de UNICAP. E-mail: silverio.pessoa@unicap.br


Referências desta apresentação

ANDRADE, Péricles; PESSOA, Silvério Leal. Religião e Indústria Cultural. Ponta de Lança – Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Cristóvão, v.15, n.28, p.10-15, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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