Relações militares Brasil-EUA 1939/1943 | Giovanni Latfalla
É difícil imaginar, 75 anos após a vitória aliada na Europa, a vulnerabilidade militar dos Estados Unidos às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial. Entre os anos de 1935 e 1939, por exemplo, o governo americano investiu somente 1,5 bilhão de dólares em suas forças armadas, enquanto o Reino Unido, a União Soviética e a Alemanha investiram, respectivamente, 2,5, 8 e 12 bilhões. Mesmo com o sinal de alerta disparado com a Crise dos Sudetos, em 1938, o Tio Sam demorou a iniciar seus preparativos para um novo conflito mundial iminente (LATFALLA, 2019).
Quando a administração federal do então presidente Franklin Delano Roosevelt (1882–1945) passou a considerar seriamente os Estados Unidos no cenário de uma nova guerra mundial, contudo, a história desse país, assim como das nações latino- -americanas, em especial o Brasil, não foi mais a mesma.
A partir do momento em que o presidente estadunidense começa a se preocupar com a defesa do hemisfério ocidental é que o Brasil aparece no planejamento de guerra dos EUA como um importante aliado continental (LATFALLA, 2019, p. 37).
A importância estratégica do Brasil nos planos de defesa continental elaborados pelo governo norte-americano da época é conhecida por historiadores brasileiros e estadunidenses, a exemplo de Stetson Conn e Byron Fairchid (2000), segundo os quais a relevância do Nordeste brasileiro chegou a tal ponto que os americanos redigiram planos para uma possível invasão à região caso houvesse uma aliança militar entre Brasil e Alemanha.
Esse importante aliado, porém, também tinha os próprios planos políticos, assim como suas prioridades de defesa. Logo, uma aliança militar entre Estados Unidos e Brasil não seria forjada da noite para o dia, sendo o resultado de um processo que envolveu muita negociação, gerou bastante desconfiança e promoveu muita tensão entre as autoridades civis e militares de ambos os países.
Originalmente apresentado como uma tese de doutorado em ciência política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, o livro Relações militares Brasil- -EUA: 1939/1945, de autoria do tenente-coronel Giovanni Latfalla, narra essa história. Por meio de uma documentação inédita consultada em instituições de guarda como o Arquivo Histórico do Exército (AHEx), localizado no Rio de Janeiro, e o National Archives and Records Administration (Nara II), em Maryland, nos Estados Unidos, Latfalla (2019) propõe uma nova interpretação histórica do processo de alinhamento militar brasileiro junto aos Estados Unidos.
Como constatou Vinicius Mariano de Carvalho (2019) no prefácio da obra, muito já foi escrito sobre as relações internacionais brasileiras durante as décadas de 1930 e 1940, a exemplo dos trabalhos de Frank McCann (1995) e Gerson Moura (1991). No entanto, pelo menos desde o começo da década de 2010, ocorre a ampliação e a renovação dos estudos históricos acerca das relações internacionais brasileiras, com ênfase em aspectos militares, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, como nas pesquisas de Dennison de Oliveira (2015a; 2015b). O livro de Latfalla (2019) vai ao encontro desses e de outros estudos históricos, tendo como foco a negociação de uma aliança militar brasileira com os Estados Unidos entre os anos de 1939 e 1943.
O Brasil “teria sido subserviente às demandas propostas pelos estadunidenses, sendo, pois, um mero colaborador da política externa dos EUA?”, indaga Latfalla (2019, p. 1). A resposta é a tese defendida pelo autor, segundo a qual, “se o Brasil estivesse em uma posição de alinhamento automático com as demandas estadunidenses, então o processo de negociação não teria sido marcado por tantas dificuldades e desconfianças” (2019, p. 1).
Latfalla (2019) defendeu sua tese ao longo de cinco capítulos, que analisam as diretrizes que orientaram a política externa dos Estados Unidos durante o período do entreguerras (1919-1939), a política de defesa do governo brasileiro no contexto da Era Vargas (1930-1945) e as longas, complexas e, em diversos momentos, frustrantes negociações entre os Estados Unidos e o Brasil no que concerne à defesa do hemisfério diante de uma inevitável Segunda Guerra Mundial.
Durante o entreguerras, o governo estadunidense adotou uma política de Estado de neutralidade diante dos conflitos militares internacionais, sobretudo europeus. A experiência americana na Primeira Guerra Mundial, a influência de concepções idealistas na política externa e a crença de que a projeção internacional dos Estados Unidos ocorreria por meio do poder econômico foram alguns dos fatores que orientaram essa política, que historicamente ficou conhecida como “isolacionista”. Nem os efeitos da Crise de 1929 nem os expansionismos alemão e japonês abalaram a crença compartilhada entre a elite política e a opinião pública americana no isolacionismo virtuoso. Somente a partir do fim da década de 1930 é que foi iniciada a mudança desse paradigma. A Crise dos Sudetos e a Conferência de Munique, em 1938, chamaram a atenção da administração Roosevelt para a necessidade de defender os Estados Unidos, assim como do próprio continente americano. Contudo, os anos de política isolacionista legaram aos americanos uma grande defasagem de suas forças armadas, principalmente quando comparadas com as demais potências da época. Para piorar a situação, desde o começo dos anos de 1930, a Alemanha fortalecia suas influências econômica, militar e política na América Latina (LATFALLA, 2019).
Foram nessas circunstâncias que o Brasil passou a fazer parte das preocupações das autoridades civis e militares estadunidenses responsáveis pelo planejamento da defesa continental. Na óptica dos Estados Unidos, a geografia brasileira, em especial o saliente nordestino, era de importância estratégica, pois, no caso de uma guerra contra a Alemanha, a região poderia servir de ponta de lança para uma invasão ao continente. Negociar uma aliança militar com o governo brasileiro era prioridade (LATFALLA, 2019).
A necessidade de uma cooperação militar entre o Brasil e Estados Unidos também era reconhecida pelas autoridades civis e militares brasileiras. A obsolescência das forças armadas do país durante a década de 1930 e a urgência de reequipá-las era um fato reconhecido pelo generalato brasileiro e serviram de moeda de troca para Getúlio Vargas obter o apoio militar que permitiu a instalação do regime estado- -novista, em novembro de 1937. Contudo, para Latfalla (2019), esses fatos não significaram que o governo brasileiro aceitaria automaticamente uma aliança militar com os Estados Unidos. É a partir desse ponto que o estudo produzido pelo autor se torna inovador, mediante revisão de antigas certezas da historiografia especializada, a exemplo do já mencionado Gerson Moura (1991), e da revelação de novos detalhes sobre o processo de negociação de tal aliança.
Para Latfalla (2019), os governos brasileiro e estadunidense tinham visões distintas sobre a forma com a qual o Brasil estaria inserido no plano de defesa continental a ser seguido no caso de uma nova guerra mundial. Pelo viés dos Estados Unidos, a região Nordeste deveria ter prioridade, e, diante da carência de recursos humanos e materiais do Exército brasileiro, tropas americanas deveriam ser empregadas em sua salvaguarda. Por outro lado, as autoridades militares e políticas brasileiras viam na Argentina a principal ameaça contra a segurança do país, sendo o Sul a região que deveria ser protegida, além de rechaçarem a possibilidade de forças terrestres estrangeiras serem empregadas na defesa país. Ademais, defendiam o emprego exclusivo de tropas nacionais, que deveriam ser equipadas com material bélico de origem americana.
A ênfase em defender o Sul era, na época, algo plausível, já que Argentina, Brasil e Chile disputavam a hegemonia militar na América do Sul. Ela também ajuda a entender a concentração de guarnições do Exército brasileiro na região, conforme constatou Dennison de Oliveira (2015b), além de ser uma alternativa às interpretações que associam a expansão da força terrestre no Sul do Brasil ao imaginário do “perigo alemão” (GUEDES; NETO; OLSKA, 2008).
Essas visões diferentes foram o pomo da discórdia entre os militares brasileiros e estadunidenses responsáveis pelas negociações em torno de uma aliança militar entre o os dois países, cujos primeiros anos, segundo a narrativa de Latfalla (2019), foram infrutíferos e permeados por frustrações e sérios desentendimentos entre ambas as partes. As razões apontadas pelo autor para essa situação foram a incapacidade dos Estados Unidos de fornecer o material bélico solicitado pelas autoridades militares brasileiras, a permanência de uma visão imprecisa e mesmo preconceituosa do Brasil, em especial do Exército, pelos americanos e os choques entre o adido militar dos Estados Unidos e o general Góes Monteiro.
Pedro Aurélio de Góes Monteiro (1889-1956) e Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) foram, durante o Estado Novo (1937-1945), os principais líderes do Exército brasileiro e tinham forte inserção no governo Vargas. Ambos foram duros nas negociações com os Estados Unidos, fato que ajuda a explicar o rótulo de “germanófilos” colocado neles pela imprensa americana e a maneira grosseira com que Góes Monteiro foi descrito nos informes americanos estudados por Latfalla (2019), nos quais foi considerado simpatizante da Alemanha – um eufemismo para nazista. Nesses mesmos documentos, chegou-se ao ponto de apelar para um suposto alcoolismo do general como argumento para desqualificá-lo.
Os problemas foram tão graves que Latfalla (2019, p. 96), durante suas pesquisas no Nara II, encontrou documentos militares brasileiros da época, talvez enviados indevidamente aos Estados Unidos. Tais documentos estavam classificados como reservados pelo Estado-Maior do Exército brasileiro, portanto não deveriam ser do conhecimento público geral. Esse provável caso de espionagem militar, cuja documentação só foi liberada ao público recentemente, e outros episódios relacionados a essa difícil negociação fazem com o que o livro em questão supere a tese de Moura (1991), segundo a qual as tratativas entre o Brasil e os Estados Unidos ocorreram sem grandes problemas. O auge das desavenças entre as autoridades militares desses países foi atingido em 1941, quando ocorreu um impasse, provocado pela péssima atuação do representante dos Estados Unidos, o coronel Miller, cujo desempenho foi considerado desastroso (LATFALLA, 2019).
O impasse nas negociações só começou a ser superado a partir de 1942, nos contextos da entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial e do rompimento das relações diplomáticas entre o Brasil e as potências do Eixo. Com muita dificuldade, as autoridades militares estadunidenses aceitaram um plano de defesa conjunta da região Nordeste e o envio de material bélico para as forças armadas brasileiras. Contudo, Latfalla (2019) adverte que, como vinha ocorrendo desde 1939, o governo americano não honrou suas promessas, e muito do armamento prometido não chegou ao país. Mesmo com seu aliado sul-americano em guerra contra a Alemanha, os chefes militares dos Estados Unidos continuaram a não confiar nas autoridades brasileiras, algo alimentado pelas péssimas informações que obtinham de seus agentes no Brasil.
Somente em 1943, por meio da Comissão Militar Mista Brasil-Estados Unidos, com sede no então Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro, é que houve o aumento no fluxo de material bélico e de tropas direcionados ao Brasil. Em nível diplomático, cogitava-se um maior envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial, fato que contribuiu para a ideia de criar um corpo expedicionário brasileiro a fim de combater ao lado dos aliados no ultramar. “A criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e o seu envio para colaborar no esforço de guerra Aliado foi uma reivindicação do Brasil junto aos EUA, não o contrário”, afirma Latfalla (2019, p. 256), reforçando os estudos mais recentes sobre as origens da FEB, com destaque para os trabalhos de Francisco Ferraz (2005), Vagner Camilo Alves (2006), Dennison de Oliveira (2015a) e Cesar Campiani (2019), para os quais o envio de tropas brasileiras para combater na Europa foi uma estratégia do governo da época visando garantir sua hegemonia regional, reaparelhar suas forças armadas e garantir maior visibilidade política do país no cenário mundial do pós-guerra.
Do ponto de vista sul-americano e do reaparelhamento da força terrestre brasileira, a FEB foi bem-sucedida. Contudo, a controversa decisão do seu comando militar em não empregá-la como tropa de ocupação na Áustria durante o pós-guerra prejudicou a inserção política do Brasil no cenário internacional como um player importante, sobretudo na aceitação desse país como membro permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Porém, isso é um assunto que carece de melhor aprofundamento em novas pesquisas históricas (LATFALLA, 2019). No Brasil contemporâneo, pratica-se uma política de governo de alinhamento ideológico e político automático com os Estados Unidos, em especial durante a gestão do presidente Donald Trump (2017-2021), estimulada por um conservadorismo que, segundo a ex-secretária de Estado da gestão Bill Clinton (1993-2001), Madeleine Albright (2018), tem fortes contornos antidemocráticos e mesmo fascistas. Assim, um meio de compreendemos este presente pode ser pela historicidade das relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, sendo o livro de Giovanni Latfalla (2019) uma preciosa contribuição.
Referências
ALBRIGHT, Madeleine. Fascismo: um alerta. São Paulo: Crítica, 2018.
ALVES, Vagner Camilo. Armas e política: o Exército e a constituição da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Encontro Anual da Anpocs, 30, 2006, Caxambu. Anais […]. Caxambu: [s.n.], 2006. p. 1-21.
CAMPIANI, Cesar. 120 objetos que contam a história do Brasil na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Livros de Guerra, 2019.
CARVALHO, Vinicius Mariano de. Prefácio. In.: LATFALLA, Giovanni. Relações militares Brasil-EUA 1939/1943. Rio de Janeiro: Gramma, 2019.
CONN, Stetson; FAIRCHILD, Byron. A estrutura de defesa do Hemisfério Ocidental. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2000. v. 363. (Coleção General Benício)
FERRAZ, Francisco César Alves. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2005 (Descobrindo o Brasil).
GUEDES, Sandra P. L. de Camargo; NETO, Wilson de Oliveira; OLSKA, Marília Gervasi. O Exército e a cidade: Joinville e seu batalhão. Joinville: Editora Univille, 2008.
LATFALLA, Giovanni. Relações militares Brasil-EUA 1939/1943. Rio de Janeiro: Gramma, 2019.
MCCANN, Frank D. A aliança Brasil-Estados Unidos, 1937-1945. Rio de Janeiro: Bibliex, 1995.
MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: FGV, 1991.
OLIVEIRA, Dennison de. Aliança Brasil-EUA: nova história do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Curitiba: Juruá Editora, 2015a.
OLIVEIRA, Dennison de. Extermine o inimigo: blindados brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Curitiba: Juruá Editora, 2015b.
Resenhista
Wilson de Oliveira Neto – Universidade da Região de Joinville. Ciências Humanas e Biológicas. Curso de História, Joinville, SC. https://orcid.org/0000-0002-6439-661X E-mail: wilson.o@univille.br
Referências desta Resenha
LATFALLA, Giovanni. Relações militares Brasil-EUA 1939/1943. Rio de Janeiro: Gramma, 2019. Resenha de: NETO, Wilson de Oliveira. Uma negociação difícil. Esboços. Florianópolis, v. 28, n. 48, p. 584-590, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]