As relações internacionais enquanto objeto de estudo vêm desenvolvendo-se de maneira amplamente satisfatória nos últimos anos no Brasil, com o acúmulo quantitativo e o progresso qualitativo dos trabalhos divulgados nesse campo. Muito desse avanço é devido ao surgimento de cursos de pós-graduação nem todos stricto sensu que colocam as relações internacionais de modo geral e a inserção externa do Brasil de modo particular no centro das preocupações de pesquisa e de elaboração de monografias. Outro tanto pode ser visto como o resultado de iniciativas propriamente editoriais, com a tradução de bons livros publicados no exterior e a publicação, isoladamente ou em coleções especializadas, dos trabalhos produzidos por cientistas sociais e historiadores do Brasil.
Os dois primeiros livros aqui resenhados inauguram, precisamente, uma nova coleção editorial, a “relações internacionais e integração” da UFGRS, ao passo que o terceiro é veiculado por uma editora mais tradicional no campo das letras jurídicas. Os dois autores militam, um de modo pleno, o outro em tempo parcial, nas pesquisas e na docência acadêmica, combinando a interpretação sociológica com uma visão histórica das relações internacionais do Brasil. Essa visão histórica é mais centrada no caso da pesquisa de Paulo Vizentini, enfocando a política externa do regime militar no Brasil entre 1964 e 1985, e mais dispersa no caso de Paulo Almeida, indo dos séculos XV-XVI (“diplomacia dos descobrimentos”), passando pela emergência do multilateralismo contemporâneo, a partir do século XIX, até o recente surgimento (1995) da Organização Mundial de Comércio (“diplomacia do desenvolvimento”).
O primeiro livro de Paulo Almeida, como revelado na Nota aos Trabalhos no final do volume, é na verdade uma compilação de trabalhos produzidos nos últimos 8 anos, quase todos publicados em revistas acadêmicas mesmo se alguns são total ou parcialmente inéditos. Eles revelam uma preocupação com a pesquisa e sistematização do conhecimento sobre as relações exteriores do País, seja na vertente do multilateralismo econômico relação de atos e organizações econômicas internacionais apresentada ao final , seja no campo da sociologia política longo ensaio sobre o papel dos partidos nas relações exteriores de 1930 a nossos dias
, seja ainda no terreno propriamente metodológico textos sobre o estudo e a historiografia das relações internacionais do Brasil. O autor, diplomata de carreira com experiência na área econômica, explicita em sua introdução que ele não pretendeu escrever trabalhos de diplomacia brasileira, mas ensaios sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil, demonstrando talvez uma certa contenção de propósitos que costuma caracterizar o perfil discreto dos membros da Casa de Rio Branco. De fato, são poucos os textos que se pronunciam sobre a política externa operacional e efetiva do Governo brasileiro, muito embora alguns revelem um certo distanciamento crítico em relação ao que se poderia chamar de “pensamento único” do Itamaraty: Tal é o caso, por exemplo, do pequeno ensaio sobre a “ideologia” da política externa, na verdade uma crítica levemente irônica sobre alguns dos “mitos fundadores” da diplomacia oficial. Outro ensaio de dimensões relativamente reduzidas comparativamente à longa extensão dos demais toca na “economia” da política externa, de fato um esquema interpretativo suscetível de sustentar um vasto programa de pesquisa sobre as relações econômicas internacionais do Brasil (segundo estou informado, o autor já terminou uma primeira parte, “Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império”, apresentada sob a forma de dissertação no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco). Nessa mesma área, Paulo Almeida já investigou a participação do Brasil nas conferências de Bretton Woods (1944) e de Havana (1947-48), mas ainda não divulgou todos os resultados de sua pesquisa, como esclarece na nota à “diplomacia do desenvolvimento”.
O trabalho mais elaborado, em termos de pesquisa, parece ser o relativo à “política” da política externa, contendo uma extensa compilação de todos os elementos de relações internacionais inscritos nos programas partidários a partir de 1930, uma discussão sobre o posicionamento dos partidos políticos em relação à política externa oficial e, não menos importante, uma apresentação comentada sobre temas e problemas “internacionais” levantados pelos partidos e candidatos nas campanhas eleitorais presidenciais de 1989, 1994 e 1998. Os estudantes encontrarão no último capítulo uma sistematização há muito tempo faltante das obrigações internacionais contraídas no plano multilateral pelo Brasil desde o século XIX até a recente adesão ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear, durante muito tempo a bête noire da diplomacia nacionalista e defensora da “autonomia nuclear” do País. Em suma, para os que buscam uma boa introdução ao estudo e ao conhecimento prática da diplomacia brasileira, o livro “semi-acadêmico” de Paulo Almeida pode constituir um exemplo de equilíbrio entre pesquisa teórica e conhecimento prático das relações exteriores do Brasil.
Paulo Vizentini, apesar de jovem, é um “velho” conhecido dos estudiosos da diplomacia brasileira, graças, entre outros trabalhos, a sua extensa pesquisa sobre o nacionalismo e o desenvolvimentismo nas relações exteriores, entre 1951 e o final da Política Externa Independente (PEI), em 1964 (Editora Vozes, 1995). Fechando uma das lacunas mais evidentes de nossa historiografia especializada, ele dá agora continuidade a esse trabalho ao levantar sistematicamente todas as etapas da política externa durante o longo interregno militar, de 1964 a 1985. Os capítulos são lineares, cada um voltado para uma presidência, mas a interpretação permeia o processo que o autor identificou como de “mundialização” e de “multilateralização” da diplomacia brasileira. De fato, cada uma das etapas está identificada aos “rótulos” pelos quais ficaram conhecidas as diplomacias respectivas dos cinco generais-presidentes que ocuparam a chefia do Estado nesse período.
Assim, numa primeira parte, o “modelo ascendente”, são analisadas a política externa “interdependente” e de segurança nacional defendida por Castelo Branco, a “diplomacia da prosperidade” de Costa e Silva de fato um certo retorno aos padrões “desenvolvimentistas” e “nacionalistas” da era civil imediatamente anterior e a “diplomacia do interesse nacional” de Médici, quando se buscou o que o autor chama de “autonomia no alinhamento”. Na segunda parte, se assiste ao “apogeu” e ao “declínio” do modelo, o primeiro epitomizado no “pragmatismo responsável” de Geisel e o segundo na “diplomacia do universalismo” de Figueiredo. Em cada um desses cinco densos capítulos, a política externa é colocada na perspectiva das orientações políticas e econômicas internas, próprias a cada uma das presidências militares que foram bastante diversas em termos de orientações econômicas e de escolhas políticas, a despeito da uniformidade mais aparente do que real do regime militar , e são enfocadas então as diversas dimensões do relacionamento externo: no plano bilateral (sobretudo em relação aos Estados Unidos), no contexto hemisférico, no cenário internacional e no âmbito multilateral (este tanto na vertente econômica como na da segurança).
O resultado é um panorama bastante abrangente do referido processo de “multilateralização” da política externa brasileira, iniciado na era da PEI e continuado de forma consistente na era militar, não tanto por iniciativa própria como em conseqüência da extrema profissionalização da diplomacia brasileira. Com efeito, a diplomacia nunca foi tão “autônoma” dos partidos, dos grupos de interesse, da opinião pública em geral como sob o regime militar, durante o qual todos os chanceleres, com as breves exceções de Juracy Magalhães e de Magalhães Pinto, foram diplomatas de carreira. Para isso deve ter contribuído o mesmo sentido de responsabilidade “profissional” dos militares, que à exceção de Geisel, extremamente interessado em política externa permitiu larga latitude de ação ao Itamaraty.
Paulo Vizentini descreve a multilateralização como a “busca de novos espaços, regionais e institucionais, para além dos relacionamentos tradicionais (que não são interrompidos), de atuação política e econômica”, processo que caracteriza, de fato, a diplomacia brasileira desde então. Paradoxalmente, o regime mais ideologicamente alinhado aos Estados Unidos é o que conduz na prática um afastamento político, econômico e até tendencialmente tecnológico como tentado no programa de cooperação nuclear com a Alemanha em relação ao aliado da Guerra Fria. São elucidados no livro todos esses passos: a busca de novos parceiros dentre os países desenvolvidos e sobretudo o relacionamento com as potências médias do mundo em desenvolvimento. O reatamento de relações com a China, por exemplo, representou uma das “crises” políticas mais evidentes na ideologia do edifício militar, mas o restabelecimento de relações diplomáticas com Cuba patrocinadora de movimentos guerrilheiristas nessa fase teria de esperar o fim do regime militar e a volta à democracia.
Vizentini retraça em detalhes as dificuldades do relacionamento com os países árabes exportadores de petróleo, assim como as diferentes fases da rivalidade com a Argentina, aliás superada em grande medida ainda na fase militar. Ele constata o sucesso e as desventuras do modelo de desenvolvimento econômico, a expansão das exportações e a crise externa na fase final do regime, no quadro das grandes mudanças do cenário mundial a partir dos anos 80, o que levou à redefinição do próprio conceito de “interesse nacional”. Suas fontes não foram exclusivamente as diplomáticas cuja parte confidencial não se encontrava de resto disponível quando da pesquisa mas também os órgãos da imprensa escrita, o que permitiu explorar aspectos normalmente não revelados no discurso oficial. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma obra de referência para uma visão fatual e dotada de interpretação própria sobre um período relevante da história republicana, merecendo figurar em toda e qualquer bibliografia que doravante se arrolar não apenas sobre a política externa brasileiro mas também sobre o regime militar-modernizador de 1964 a 1985.
O último livro, também do diplomata Paulo Almeida, possui objetivos mais enfocados do ponto de vista temático e um escopo mais declaradamente “vulgarizador”, qual seja, o de apresentar a um público geralmente universitário, e supostamente leigo na matéria, as origens, o funcionamento e os desafios atuais do processo de integração sub-regional do Mercosul. De fato, os primeiros capítulos são basicamente descritivos, baseando-se em grande medida em sua obra anterior sobre o mesmo assunto (O Mercosul no contexto regional e internacional, 1993), mas a parte sobre o “futuro” do Mercosul está longe de ser uma simples sistematização dos conhecimentos disponíveis sobre o assunto. Trata-se de uma discussão em profundidade sobre os dilemas e opções com que se defrontam atualmente os países-membros, confrontados à necessidade de aprofundar a coesão econômica interna de fato cumprir o que estipula o Artigo 1º do Tratado de Assunção, isto é, constituir de fato um mercado comum e de afastar o perigo de sua diluição numa vasta zona de livre-comércio hemisférica, como promete o projeto da ALCA, liderado pelos Estados Unidos.
Paulo Almeida conhece o funcionamento efetivo do Mercosul e, por isso, evita alguns dos problemas e “ilusões” que permeiam muitas teses universitárias e artigos acadêmicos sobre o assunto, entre eles o do aprofundamento da institucionalidade ou, o que vem a resultar no mesmo, o “salto para a supranacionalidade” e o da visão “antiimperialista” ou “antiglobalização” incorporado numa certa concepção ingênua, em geral de “esquerda”, sobre esse processo. Completam o livro, de concepção bastante didática, uma excelente cronologia sobre o desenvolvimento da integração regional, desde a primeira conferência americana de 1889 até o final das negociações da ALCA (em 2005), assim como a documentação básica de referência para o enquadramento jurídico-diplomático desse processo (Tratado de Assunção e Protocolos de Ouro Preto e de Brasília). Seu livro também merece figurar na bibliografia de referência sobre o processo de integração sub-regional, ainda que se possa fazer a mesma restrição anterior em relação à postura talvez excessivamente discreta derivada sem dúvida de sua condição profissional em relação a certas questões sensíveis desse processo.
Os três livros se completam e correspondem, aliás, aos objetivos temáticos da nova coleção da UFRGS: o estudo sério e academicamente embasado sobre as relações internacionais e os processos de integração. A coleção deverá abrigar, proximamente, um livro do acadêmico inglês Fred Halliday, Repensando as relações internacionais. Dessa forma, as abordagens propriamente brasileiras nas contribuições de acadêmicos e diplomatas do País podem ser complementadas por trabalhos dotados de perspectiva verdadeiramente mundial. Trata-se, provavelmente, de um exemplo de globalização editorial.
Resenhista
Pedro Rodrigues
Referências desta Resenha
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização. Porto Alegre: Editora UFRGS, 1998; Coleção Relações Internacionais e Integração, 1. VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre: Editora FRGS, 1998; Coleção Relações Internacionais e Integração, 2. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Mercosul: fundamentos e perspectivas. São Paulo: LTr, 1998. Resenha de: RODRIGUES, Pedro. Política externa e integração como objeto de estudo acadêmico e de reflexões diplomáticas. Revista Brasileira de Política Internacional, v.41, n.2, 1998. Acessar publicação original [DR]
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