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Relações internacionais: dois séculos de história | Entre a preponderância européia e a emergência americano-soviética | Entre a ordem bipolar e o policentrismo (1947 a nossos dias)| José Flávio Sobra Saraiva || Relações internacionais e temas sociais: a década das conferências | José Augusto Lindgren Alves || Relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas | Amado Luiz Cervo || Relações internacionais: cultura e poder | Estevão Chaves de Rezende Martins || Cooperação/ integração e processo negociador: a construção do Mercosul | Alcides Costa Vaz

Foram lançados em 2002 mais dois títulos da coleção “Relações Internacionais”, que se juntam aos quatro levados a público no segundo semestre de 2001. A coleção é publicada pelo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e organizada por José Flávio Sombra Saraiva, diretor-geral do Instituto, com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e o patrocínio da Petrobras. O IBRI cumpre, assim, uma das importantes missões a que se propôs, que é a de difundir os estudos desenvolvidos no Brasil sobre as relações internacionais e sobre a inserção do país no cenário internacional. A coleção, distinta de outras que recentemente incorporaram-se ao mercado editorial do país, volta-se, com efeito, à exposição do atual pensamento brasileiro em relações internacionais.

Os dois volumes de “Relações internacionais: dois séculos de história”, organizados por José Flávio Sombra Saraiva, são, não por acaso, os dois primeiros títulos da coleção “Relações internacionais”. Trata-se de uma versão ampliada e revista de “Relações internacionais: da construção do mundo liberal à globalização (1815 a nossos dias)”, lançado em 1997, rapidamente esgotado. O primeiro volume intitula-se Entre a preponderância européia e a emergência americano-soviética (1815-1947) e o segundo Entre a ordem bipolar e o policentrismo (de 1947 a nossos dias). O leitor encontra nos dois caprichados volumes uma excelente síntese de quase dois séculos da história das relações internacionais, escrita de maneira acessível e instigante por quatro especialistas: além do organizador, José Flávio Sombra Saraiva, Amado Luiz Cervo, Wolfgang Döpcke e Paulo Roberto de Almeida. Os autores utilizaram bibliografia atualizada e da mais alta qualidade, trazida ao final de cada capítulo, o que permite ao leitor prosseguir facilmente no aprofundamento de temas que são de seu maior interesse.

O primeiro volume compõe-se de 5 capítulos nos quais se analisam as várias vertentes da teoria das relações internacionais, a construção da sociedade internacional européia (Watson) a partir do final das guerras napoleônicas e do Congresso de Viena, a nova corrida colonial, as diversas correntes interpretativas sobre as relações internacionais de 1870 a 1918, o entreguerras, 1919-1939, a Segunda Guerra Mundial, a regulamentação da paz e a emergência da ordem bipolar.

O segundo volume, “enfrenta o desafio de interpretação das décadas mais recentes”, nas palavras de Sombra Saraiva no prefácio ao livro. Contém 4 capítulos dedicados ao complexo período que se estende de 1947 aos nossos dias. Ou seja, analisa os desdobramentos do período “quente” da Guerra Fria (1947-1955) e sua evolução para o que se tornou conhecido como coexistência pacífica (1955-1968), as razões da derrocada do socialismo, as grandes transformações da economia mundial, o significado da globalização, o sentido das novidades por ela engendradas, ao mesmo tempo em que traça um panorama do pós-Guerra Fria, das dificuldades para a construção de uma nova ordem global, a erosão das soberanias e o papel do Estado-nação no mundo globalizado.

O terceiro título da coleção “Relações Internacionais” foi escrito pelo embaixador José Augusto Lindgren Alves, autor de vários estudos sobre os direitos humanos. Diplomata de carreira, alia, portanto, à sua trajetória intelectual, a experiência de haver participado de várias das conferências que são objeto de seu livro “Relações internacionais e temas sociais: a década das conferências”. Introduz seu trabalho com considerações sobre o sentido da década de 1990, em que depois da “crise do multilateralismo” dos anos 1980, importantes conferências internacionais se realizarão, caracterizando o período do imediato pós-Guerra Fria com uma marcante mobilização dos foros multilaterais em que se traçou a agenda social da ONU. Com efeito, há que se constatar que, ainda que a ONU se tenha mostrado pouco eficiente nos mais diversos aspectos, os mecanismos institucionais ali oferecidos nunca deixaram de ser utilizados pelos Estados na busca de sua inserção no sistema internacional.

Relações internacionais e temas sociais analisa sete importantes conferências internacionais, passando pelo momento de sua organização, sua realização propriamente dita, suas principais discussões, seus avanços e considerações explicativas sobre o conteúdo dos documentos que delas resultaram: a “Cúpula Mundial sobre a Criança”, realizada na própria sede da ONU em Nova Iorque, em setembro de 1990; a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92); a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993; a Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento (1994), a Cúpula de Copenhague sobre o Desenvolvimento Social (1995), a Conferência de Beijing sobre a Mulher (1995) e a Conferência sobre Assentamentos Humanos (Habitat II, 1996), realizada em Istambul. Em conclusão geral, Lindgren Alves faz um balanço sistemático sobre o que representou o ciclo de conferências que se encerrou em 1996, os conceitos e princípios que foram agregados à agenda internacional e, principalmente, “com o distanciamento do ano 2000 … uma visão à vol d´oiseau dos desenvolvimentos (…) mais significativos para o conjunto das matérias tratadas.” A obra completa-se com um útil anexo, em que podem ser encontrados os textos das declarações resultantes das conferências estudadas.

Finalmente, ainda que não fazendo parte do escopo de seu estudo, voltado principalmente para a descrição da evolução conceitual no âmbito da discussão de temas importantes da agenda internacional, o estudo de Lindgren Alves teria se enriquecido substancialmente expondo ao leitor os diversos posicionamentos nacionais defendidos nas conferências, esclarecendo como os grupos de interesses se articularam e, particularmente, as idéias defendidas pela diplomacia brasileira nesses debates. Esperamos que, em breve, o autor venha a brindar seus leitores com esse estudo.

O quarto título lançado pelo IBRI é de autoria do historiador Amado Luiz Cervo, dos mais renomados especialistas em história da política externa brasileira. “Relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas” está longe de ser a primeira incursão do autor no campo das relações entre os países latino-americanos. A obra tem os anos 1930 como marco cronológico inicial, momento em que os países latino-americanos abandonam o paradigma liberal-conservador e esboçam o Estado desenvolvimentista, indo até os anos 1990, quando se observa a emergência do paradigma neoliberal, cuja aceitação passiva pelas elites latino-americanas é fortemente criticada pelo autor.

O livro está dividido em três partes principais. Na primeira busca compreender a origem do desenvolvimentismo latino-americano (1930-1947) – quando o continente toma o rumo do processo de modernização econômica ainda que com intensidades nacionais variadas -, até seu apogeu nos anos 70. Afirma o autor que o desenvolvimentismo latino-americano não inventou o modelo de substituição de importações, “conceito equivocadamente aplicado nos anos 50 às relações econômicas internacionais da América Latina pelos economistas da Cepal”, e o modelo não se converteu em projetos nacionais, mas tão-somente em variável dependente da promoção do desenvolvimento econômico, argumento que certamente suscita o debate. A segunda parte do livro de Amado Luiz Cervo trata da política externa da Argentina, do Brasil e da Venezuela de 1947 até 1986, em que as relações entre esses países passam por tendências obstrucionistas e, alternativamente, por períodos de profícua cooperação. Analisa, igualmente, a conjuntura da construção dos eixos bilaterais entre Brasil e Venezuela e Brasil e Argentina a partir de 1980 que, segundo Cervo, resultaria tristemente em uma integração com um perfil meramente comercialista ao sul ou em simples abandono ao norte. Na terceira e última parte da obra, o autor faz um balanço dos primeiros impactos das experiências vividas pelos países latino-americanos, entre 1889-90 e 2001, ao optarem pelo paradigma neoliberal de relações internacionais.

Os dois mais recentes lançamentos da coleção “Relação Internacionais”, publicados em abril último, são “Relações internacionais: cultura e poder” e “Cooperação, integração e processo negociador: a construção do Mercosul”.

Relações internacionais: cultura e poder” é de autoria de Estevão Chaves de Rezende Martins, que tem se afirmado como dos mais expressivos estudiosos brasileiros da dimensão cultural das relações internacionais contemporâneas. Como assinala Jörn Rüsen no prefácio à obra, Martins é também “um dos poucos pensadores que buscam elaborar uma síntese entre reflexão filosófica e ciência histórica e cuja obra efetivamente produz uma tal síntese.” Essa difícil síntese expressa-se em uma obra densa que se endereça, sobretudo, aos iniciados. Ao leitor menos familiarizado com a análise filosófica do pensamento histórico: vale a pena, certamente, o esforço de tentar compreender o quadro interpretativo proposto pelo autor, que coloca ênfase em dois elementos fundamentais da evolução histórica – cultura e poder.

O primeiro capítulo trata do poder das idéias que, em conjunto, são formadoras de uma cultura. A cultura, por sua vez, fornece um quadro de referências em que indivíduos e comunidades se encontram e definem seus objetivos e fins. O autor busca no conjunto das idéias partilhadas pela sociedade o fator dinâmico que a move e a transforma. No capítulo seguinte, é analisado mais especificamente o binômio que dá título ao livro. Entende-se cultura como fator de transformação, posta está, portanto, sua necessária articulação com o exercício do poder. A proposta central do capítulo está voltada para a “contraposição entre o poder formal das instituições ao poder informal da cultura”.

Nos quatro capítulos seguintes, Martins articula os conceitos de idéia, cultura e poder com a experiência histórica. O capítulo 3 estuda a ideologia como fator cultural de poder, ou seja, em seu conteúdo operacional. O capítulo 4 debruça-se sobre a evolução intranacional e internacional da Europa no século XX. Essa que é uma verdadeira referência das transformações mais características do século XX é colocada em perspectiva pelo autor com o intuito de refletir sobre experiências que se dão em outras regiões do globo. Finalmente, os capítulos 5 e 6 tratam das alterações e deslocamentos ocorridos nos conceitos-chave da organização política e cultural da sociedade nas últimas duas décadas, como nação, democracia e identidade. A experiência da integração européia é referida primeiramente. À luz dessa experiência, o autor refletirá, em seguida, sobre o processo identitário latino-americano.

Cooperação, integração e processo negociador: a construção do Mercosul” trata do Mercado Comum do Sul (Mercosul), processo de integração econômica que se junta a vários outros, formando uma dimensão fundamental das relações internacionais. Compreender o processo de criação do Mercosul significa, assim, poder entender e refletir sobre um dos elementos definidores do sistema internacional contemporâneo. Nesse sentido, lembra o autor na introdução ao livro que na Organização Mundial do Comércio (OMC) estão registradas cerca de duzentos acordos regionais, sub-regionais e bilaterais que tem por objetivo o estabelecimento de áreas de livre comércio, uniões aduaneiras e mercados comuns. Voilà, portanto, um tema que não pode ser ignorado mesmo pelo leitor não especialista.

O livro de Alcides Costa Vaz busca integrar o campo teórico com a história da formação do Mercosul, dando ênfase ao período que vai da assinatura do Tratado de Assunção, em 1991, até 1994 – fase de transição em que são definidos e implementados os mecanismos fundamentais no campo comercial do Mercosul, bem como seu arcabouço institucional. No primeiro dos 6 capítulos que compõem o livro, estuda-se a evolução das teorias de cooperação, integração e negociação internacional, cujo aparecimento tem a ver com o impacto da criação da Comunidade Econômica Européia, nos anos 50. A difusão do regionalismo desde então resultou no aprofundamento dos estudos sobre suas oportunidades e riscos.

Nos três capítulos seguintes o autor estuda os condicionamentos do processo negociador inicial do Mercosul, que teve como protagonistas os governos do Brasil e da Argentina, a transformação dessas negociações bilaterais em um arranjo multilateral quadripartite (incluindo Paraguai e Uruguai) e os atributos e recursos de poder que foram empregados no contexto dessa negociação que o autor caracteriza como predominantemente integrativa, e não distributiva. Tratava-se, segundo Alcides Costa Vaz, de “um processo em que o poder comparecia não como meio de realização de interesses preponderantemente unilaterais e divergentes e no qual a capacidade de contraposição e de afirmação fosse requerida de modo intenso (…) mas antes como instrumento de promoção de interesses convergentes e consubstanciados em um projeto comum.” Os últimos capítulos – 5, 6 e 7 – tratam da evolução do processo negociador, das disciplinas e instituições do Mercosul e dos condicionamentos domésticos presentes no processo negociador.

Além de tratar de tema extremamente relevante, que interessa ao público em geral, o estudo de Alcides Costa Vaz se torna ponto de passagem obrigatório ao especialista das relações internacionais pelo exercício exemplar de unir considerações teóricas à realidade às quais dizem respeito, juntar teoria e empírico. Por fim, uma observação crítica que não diz respeito ao essencial do livro: sua redação ganharia em leveza e dinâmica se o autor tivesse evitado repetições, assim como frases e parágrafos às vezes muito longos.

Enfim, é mais do que bem-vinda a coleção “Relação Internacionais”, com sua preocupação de trazer ao leitor informações atualizadas e reflexões críticas sobre as relações internacionais, desde uma perspectiva do analista situado no Brasil. Sua leitura será certamente apreciada pelos especialistas e pelo público em geral.


Resenhista

Norma Breda dos Santos


Referências desta Resenha

SOMBRA SARAIVA, José Flávio (Org.). Relações internacionais: dois séculos de história. Vol. 1. Entre a preponderância européia e a emergência americano-soviética. Vol. 2. Entre a ordem bipolar e o policentrismo (1947 a nossos dias). Brasília: Funag; IBRI, 2001. LINDGREN ALVES, José Augusto. Relações internacionais e temas sociais: a década das conferências. Brasília: Funag; IBRI, 2001. CERVO, Amado Luiz. Relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas. Brasília: Funag; IBRI, 2001. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. Relações internacionais: cultura e poder. Brasília: Funag; IBRI, 2002. VAZ, Alcides Costa. Cooperação, integração e processo negociador: a construção do Mercosul. Brasília: Funag; IBRI, 2002. Resenha de: SANTOS, Norma Breda dos. Novos estudos brasileiros de relações internacionais. Revista Brasileira de Política Internacional, v.45, n.1, 2002. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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