Relações internacionais do Brasil: temas e agendas | Henrique Altemani de Oliveira e Antônio Carlos Lessa

Terreno antes ocupado quase que exclusivamente pela produção estrangeira, o campo editorial brasileiro das relações internacionais vem ganhando, nos últimos anos, adições importantes por parte dos próprios pesquisadores e professores brasileiros dessa área. Ademais da nova edição livro coordenado pelo professor do Irel-UnB, José Flávio Sombra Saraiva, História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade global do século XIX à era da globalização (publicado pela primeira vez em 1997, uma segunda vez pelo IBRI, em 2001, e revista pela Saraiva, em 2007, em edição), estes dois volumes sobre os temas e agendas das relações internacionais do Brasil, organizado pelos professores Henrique Altemani e Antonio Carlos Lessa, coordenadores de cursos na PUC-SP e na UnB, constituem o mais recente exemplo de como a produção nacional tem avançado na última década e meia, aproximadamente. Eles constituem, sem dúvida alguma, um complemento importante à bibliografia disponível e parecem destinados a figurar, provavelmente de modo compulsório, nas leituras exigidas nos cursos de relações internacionais e nos concursos de ingresso à carreira diplomática (e talvez tenham sido concebidos expressamente com essa intenção).

O press-release da editora confirma, aliás, esse objetivo: “Os dois volumes (…) foram pensados para o leitor interessado em política externa brasileira – sejam estudantes de graduação e de pós-graduação, candidatos a concursos públicos, e profissionais que se dedicam à formulação e à implementação de políticas públicas e privadas com repercussão internacional – mas também para o cidadão comum, que se inquieta diante das transformações pungentes da política internacional contemporânea e que quer se informar sobre as respostas que o Brasil tem dado a essas mudanças.” O mesmo press-release afirma, à maneira de alerta não desprovido de fundamentação, que a obra “foi organizada para suprir uma grave lacuna verificada na literatura especializada publicada no Brasil, que é a análise acurada e circunstanciada da política externa brasileira, desde o início dos anos noventa.” De fato, desde a organização pioneira por José Augusto Guilhon de Albuquerque e Ricardo Seitenfus dos quatro volumes da obra Sessenta Anos de Política Externa Brasileira, 1930-1990 (primeira edição entre 1996 e 2000, atualmente em curso de republicação), cuja preparação tinha sido feita, justamente, no início da última década do século XX, não se tinha tido outra iniciativa, acadêmica ou diplomática, no sentido de reunir numa única obra um número tão importante e tão diversificado tematicamente de contribuições originais ao estudo das relações internacionais do Brasil.

O primeiro volume está dividido em três partes: “Linhas e Forças”, de cunho generalista e conceitual; “Antigas e Novas Parcerias”, voltada para as relações bilaterais ou regionais: Estados Unidos, Europa, Ásia, África e mundo árabe; e “O Brasil e o seu Entorno”, sobre Mercosul, América do Sul e Alca. O segundo volume também comporta três partes, respectivamente sobre o multilateralismo político e econômico, os grandes temas da agenda internacional contemporânea, do ponto de vista do Brasil, e o debate porventura existente na sociedade sobre as opções de política internacional do Brasil (congresso, empresariado, e academia, ademais do problema federativo).

A atualidade cronológica e a abrangência dos dois novos volumes organizados pelos professores da PUC-SP e da UnB são, portanto, meritórias, mas a primeira observação que pode ser feita à publicação em pauta é, precisamente, a que se refere ao espectro de especialistas recrutados numa e noutra coleção: se os Sessenta Anos de Política Externa Brasileira tinham sido preparados e contaram com a colaboração ativa de diversos representantes da própria diplomacia brasileira – alguns aposentados, mas a maior parte da ativa e com forte presença na formulação e na implementação da política externa –, esta nova edição conta exclusivamente com representantes da academia. Uma iniciativa anterior, do próprio Itamaraty – Gelson Fonseca Jr. e Sérgio Henrique Nabuco de Castro (orgs.), Temas de Política Externa Brasileira, 2 vols., em duas edições nos anos 1990 –, talvez não possa ser considerada como totalmente objetiva, uma vez que contou exclusivamente com a participação de diplomatas da ativa. Os organizadores desta obra admitem que “a falta da visão do Estado, especialmente a dos diplomatas”, foi um risco, mas sua intenção era a de “demonstrar a existência de um pensamento social dinâmico, especialmente configurado na academia brasileira especializada”, que seria assim capaz de construir, “criticamente e sem vieses”, um painel atualizado das relações internacionais do Brasil. A aposta pode ter sido razoável, mas o risco calculado apresenta algum custo em matéria de perfeita compreensão dos problemas enfocados.

O prefaciador, Flávio Saraiva, diz que a obra foi “escrita primordialmente por acadêmicos”, quando na verdade o termo correto seria “exclusivamente”, ainda que um ou outro dos que assinam os 26 capítulos ostente dupla militância ou uma experiência ocasional em funções governamentais ou no setor privado. O prefaciador prossegue dizendo, que a obra “tem rigor acadêmico, mas não circunscreve seu discurso ao teoricismo estéril nem às visões desprovidas de senso prático ou aplicado”, o que talvez seja uma admissão inconsciente de que iniciativas exclusivamente universitárias ou feitas por acadêmicos em tempo integral podem eventualmente exibir algum teoricismo ingênuo ou até falta de senso prático. Ele também acha que a “generosa contribuição” dos autores reforça a “necessidade de rever aspectos da política exterior do Brasil”, talvez porque eles fizeram “uma reflexão menos animada sobre as noções românticas do internacionalismo liberal que perdurou no pensamento de relações internacionais no Brasil e na América Latina na década passada”. Ficamos sabendo, assim, que o País, antes de 2003, mantinha “ilusionismos gerados pela onda de adaptação pouco crítica aos paradigmas do imediato pós-guerra fria”, mas que agora “retomou certa racionalidade no cálculo estratégico externo” (p. viii-ix).

Essa mesma visão, sobre um “antes” e um “depois” na política externa brasileira do período recente, isto é, antes e depois do governo Lula, comparece no primeiro texto da coletânea, da autoria do professor Amado Luiz Cervo, que escreve sobre “A ação internacional do Brasil em um mundo em transformação: conceitos, objetivos e resultados (1990-2005)”. Ele afirma, por exemplo, que: “o neoliberalismo impregnou a inteligência dos dirigentes brasileiros nos anos 1990” (p. 14); que a diplomacia brasileira desses anos aceitou que “o desenvolvimento passasse à dependência dos países ricos, por meio de instruções ou decisões da OMC” (sic); que essa nova doutrina “aceitou limites para a soberania, fez concessões” e “encaminhou o País para o desenvolvimento associado promotor de dependências estruturais” (p. 19). Ele também considera que os “desenvolvimentistas”, que eram “vistos com repugnância pelos dirigentes, que os qualificavam de retrógrados e saudosistas”, conseguiram antever os “resultados do neoliberalismo que desejavam evitar” (p. 14). Frente a tantas certezas dicotômicas, em face desse tipo de visão que distingue entre um mundo “associado” (e necessariamente “neoliberal”) e um outro “autônomo” (obviamente desenvolvimentista e heterodoxo em matérias econômicas), fica difícil reconhecer rupturas e continuidades na vertente diplomática, um universo pleno de matizes e de interesses contraditórios, mas que não costuma separar o mundo entre “gregos” e “troianos”.

O governo Itamar Franco, a despeito de inserido na mesma onda liberalizante e de ter continuado as privatizações e o programa de redução tarifária iniciado por Collor, é visto como “fundamental”, uma vez que ele “tomou precauções diante da onda de redução tarifária, acelerando a integração no Mercosul, propondo a Alcsa [Área de livre comércio sul-americana] e negociando com firmeza nos foros multilaterais globais” (p. 21). Depois do “neoliberalismo subserviente e destrutivo em relação ao patrimônio da nação, a promoção do desenvolvimento associado às forças do capitalismo e a competição internacional perante a égide do livre mercado” – tudo isso supostamente conduzido de forma consciente pelo governo Cardoso –, ocorreu a “correção de modelo em 2003”. Os novos rumos da política externa são dominados por quatro orientações: “tirar o País da ilusão kantiana do ordenamento harmonioso e jogar o jogo duro das relações internacionais que as grandes potência mantêm”; “atenuar a vulnerabilidade externa herdada da fase anterior”, o que implicou, supostamente “pela primeira vez”, “a internacionalização da economia brasileira como movimento de expansão de empresas no exterior, com apoio logístico do Estado”; intensificar a atuação na América do Sul; reforçar o “poder nacional” e a “conquista de reciprocidade real” (p. 26-28).

Amado Cervo acredita que o ambiente político na América do Sul “tornou-se favorável ao curso dessa idéia [a construção de uma unidade política, econômica e de segurança na região] na virada do milênio, com o triunfo de partidos de esquerda em países importantes como a Venezuela, o Chile, a Argentina e o Uruguai” (p. 27-28; ele certamente agregaria a Bolívia e o Equador, se seu texto chegasse ao período recente). Ele incorre em equívoco ao afirmar que “foi possível negociar a fusão dos dois blocos regionais, o Mercosul e Comunidade Andina” (p. 28), quando isso jamais ocorreu. Ele também acha que a ratificação de Tlatelolco e do TNP “foram feitos na ilusão de que o País receberia tecnologias em área sensíveis, o que não ocorreu” (p. 29), confundindo requerimentos habilitantes e direitos garantidos de acesso às tecnologias sensíveis.

Respondendo às queixas de empresários que reclamavam acordos de comércio com países avançados, Amado Cervo alinha-se à diplomacia de Lula: “ao sul movia-se o Brasil com mais efeito, usando parcerias bilaterais, coalizões de países ou os processos de integração na América do Sul, tendo em vista, precisamente, dobrar (sic) os países ricos pela negociação multilateral e levá-los à eliminação de subsídios agrícolas e entraves agrícolas e industriais à entrada de produtos do sul”. Ele vê uma frente de países emergentes como uma “versão atualizada e realista, em nada ideológica, do velho terceiro mundismo”, e acredita que a unidade da América do Sul avançou em 2005, “quando os governos da Argentina, do Brasil e da Venezuela negociaram uma aliança estratégica que ia além do simples comércio e se voltava aos setores produtivo e de infra-estrutura física” (p. 32).

O problema principal desse tipo de visão, para além de pequenos equívocos de interpretação na análise de processos concretos de negociação, é que ela parte de uma caracterização dicotômica da realidade entre, de um lado, um governo arbitrariamente classificado como “neoliberal” – que seria o equivalente moderno do “entreguista” dos velhos tempos – e, de outro lado, um governo pretensamente não ortodoxo em matérias econômicas (mas que pratica o “neoliberalismo” em sua política econômica) – que seria necessariamente “nacional” e “autônomo” no plano externo –, para construir toda uma linha de raciocínio que vê, em cada ação, postura ou atitude do governo FHC, na frente diplomática e internacional, uma demonstração cabal de docilidade ou mesmo de submissão a supostas exigências de reformas (liberais, obviamente) por parte do centro dominante. Esse tipo de visão diminui o sentido da atuação consciente de diplomatas que trabalharam de modo profissional em ambos os governos e distorce as condições sob as quais são tomadas decisões e implementadas linhas de ação na área da política externa, como se, num governo, só existissem concessões e adaptação e, no outro, apenas firmeza e liderança. Argumentos desse tipo podem servir para convencer os já convencidos, mas pode-se também dizer que a história da nossa diplomacia já foi escrita com menor grau de maniqueísmo do que o exibido por certos autores atualmente.

O segundo capítulo, por José Augusto Guilhon de Albuquerque, trata dos desafios de uma ordem internacional em transição e discute as características do novo sistema pós-guerra fria e suas implicações para o Brasil. O autor acredita que as “constrições” e ameaças desencadeadas pelos processos de despolarização e de transnacionalização “são de tal maneira sobrepostas que é impossível estabelecer parcerias, alianças e alinhamentos integralmente coerentes entre si” (p. 54), o que abre novos espaços para a formulação da política externa. Esta pode, a rigor, suportar o “improviso, a idealização, o doutrinarismo”, mas o custo pode ser alto.

No último capítulo da primeira parte, José Flávio Sombra Saraiva trata da teoria e da prática das relações internacionais no início do século XXI, quando a ordem internacional é mais difusa do que sob a guerra fria. Ele vê, não necessariamente uma única sociedade internacional integrada, mas diversas sociedades internacionais, um verdadeiro arquipélago de Estados e sociedades muito diversas, com objetivos por vezes conflitantes.

A segunda parte, dedicada às antigas e às novas parcerias, é mais uniforme em sua metodologia, uma vez que voltada para o exame das relações bilaterais do Brasil com grandes atores. Mônica Hirst, no capítulo 4, classifica em cinco “As” as fases sucessivas das relações Brasil-Estados Unidos: aliança (de fato, até os anos 1940), alinhamento (de 1942 a 1977), autonomia (mantida até os anos 1900), ajustamento (no governo FHC) e afirmação (a partir de Lula). A despeito do caráter em geral amigável dessas relações, sem confrontos maiores, frustrações se acumularam ao longo dos anos, seja por que os EUA não corresponderam ao desejo do Brasil de ter facilitado sua incorporação ao círculo de poder mundial, seja porque o nacionalismo econômico brasileiro decepcionou os interesses privados americanos. O ensaio termina pelo retrato dos contrastes e confrontos entre os dois grandes do hemisfério, inclusive em relação a terceiros países, na medida em que o Brasil pretende avançar no sentida da construção da liderança sul-americana, mas não chega, obviamente, aos novos entendimentos em torno das energias renováveis, realizados entre Lula e Bush na fase recente.

Miriam Gomes Saraiva trata, no capítulo 5, das relações entre o Brasil e a Europa de 1990 a 2004, “entre o inter-regionalismo e o bilateralismo”, segundo o seu subtítulo. Esses anos são marcados pela busca européia de uma nova presença mundial, ao mesmo tempo em que o Brasil também busca contrabalançar a presença americana na região e afirmar-se de modo autônomo no cenário internacional. O Mercosul é um elemento decisivo nesse jogo de barganhas e equilíbrios, da mesma forma como as políticas agrícolas dos dois grandes do comércio mundial condicionam em boa medida as demandas e concessões dos três lados. Henrique Altemani aborda as relações com a Ásia do Leste, à exclusão da Ásia Central e do Sul. O interesse brasileiro, ainda marcado por grande desconhecimento daquela região, é predominantemente econômico (comércio e investimentos) e deixou de estar focado no Japão para incorporar outros países, com destaque para a China, obviamente. Fernando Mourão, Fernando Cardoso e Henrique Altemani tratam, no capítulo 7, das relações Brasil-África entre 1990 e 2005: de uma perspectiva “culturalista”, essas relações evoluíram mais recentemente para uma dimensão presidencial, mas os impulsos dominaram sobre a continuidade. A CPLP e o IBAS são os dois foros mais importantes da atualidade, mas o envolvimento comercial do Mercosul e a formatação de um processo de reuniões de cúpula também foram introduzidos na equação, sempre na perspectiva de uma diplomacia ao sul e anti-hegemônica. Nizar Messari encerra a parte dois tratando das relações do Brasil com o mundo árabe, que ele reconhece ser uma das áreas “de baixa prioridade para a política externa brasileira” (talvez não mais, atualmente). Ocorreu breve fortalecimento no governo Geisel, por razões óbvias de dependência petrolífera, mas foi a exceção, não a regra. De resto, grande parte do relacionamento pode ser explicada pela presença de comunidades judaica e árabe no Brasil, o que introduz também o vetor dos conflitos regionais e a presença dos EUA no Oriente Médio como elementos definidores da atual política externa de busca de relações mais afirmadas. A criação da reunião de cúpula América do Sul-Países Árabes, por iniciativa brasileira, e a aproximação das posições da Liga Árabe tem introduzido alguns ruídos na relação com Israel, mas o autor acredita que ainda assim o Brasil possa ser um mediador nos conflitos no Oriente Médio.

A terceira parte é toda ela dedicada ao entorno geográfico brasileiro, com três capítulos bem delimitados. Luiz Alberto Moniz Bandeira se ocupa da América do Sul, num longo capítulo histórico que parte de Hegel para antecipar um conflito entre as partes norte e sul do hemisfério americano. Ele remonta o conceito de América do Sul ainda ao período imperial, quando havia relativa indiferença em relação ao México e os demais países da região, considerados como pertencentes à esfera de influência dos EUA. Em 1965, essa tradição foi rompida, com o apoio à intervenção americana na República Dominicana. Moniz Bandeira acredita que a questão Mercosul versus Alca constitui “o principal ponto das divergências entre o Brasil e os Estados Unidos” (p. 277), ratificando inteiramente as posições do atual Secretário-Geral do Itamaraty sobre o caráter nefasto da Alca para o Brasil e o Mercosul. Ele também acredita que os países da região aceitam “consensualmente” a liderança brasileira na região, uma vez que ela seria “sem pretensões de hegemonia, respeitando as particularidades de cada povo” (p. 281). A iniciativa brasileira de formar a Comunidade Sul-Americana de Nações é vista como um “objetivo estratégico”, com vistas a tornar a região “uma potência mundial, não só econômica, mas também política” (p. 295).

Janina Onuki trata, no capítulo 10, do Brasil e a construção do Mercosul, que ela vê, corretamente, como “uma marca da política externa dos anos 1990” e uma das “prioridades da agenda externa do governo Lula” (p. 299), embora não seja uma prioridade na agenda dos demais países, e o “bloco convive mais com problemas do que com resultados positivos, o que dificulta traçar cenários otimistas” (p. 300). A crise brasileira de 1999 e a desvalorização do real podem ter precipitado a desconfiança dos sócios, estando na origem do atual pessimismo. Outros autores falam de várias crises simultâneas, inclusive de expectativas e de compromissos, ao lado da falta de efetividade, de eficácia e de transparência. Ela vê objetivos divergentes nas agendas de política externa dos governos Kirchner e Lula, sendo que este último parece disposto a assumir os custos de manter vivo o processo de integração, embora o ativismo possa ser visto pelos demais membros, justamente, como o elemento indesejável de uma busca de liderança não consentida. Sua avaliação é a de que a “crise do Mercosul”, em grande medida dependente dos altos e baixos do relacionamento Brasil-Argentina, “não é estritamente conjuntural, nem apenas delimitada por aspectos comerciais”, derivando de “divergências estruturais, sobretudo no que diz respeito aos modelos de política econômica doméstica e política externa” (p. 317). Hoje, “a limitação de resultados levou o Mercosul a decidir pelo meio rápido: expandir sem discutir o aprofundamento do acordo, a internalização das normas e a garantia do cumprimento das decisões” (p. 318).

Finalmente, Marcelo Passini Mariano e Tullo Vigevani abordam, no último capítulo do primeiro volume, a questão da Alca, vista como uma “integração assimétrica”, uma vez que os EUA enfatizam seus interesses comerciais, ao passo que o Brasil luta pela manutenção de políticas setoriais domésticas. As incertezas ligadas ao projeto americano alimentam duas tendências da política externa brasileira, que seriam a “busca da autonomia pelo distanciamento e a da autonomia pela participação”, atitudes não restritas à questão da Alca, mas presentes desde sempre na diplomacia brasileira (p. 335). A proposta brasileira de uma “Alca light”, feita em 2003, não prosperou, mas o processo foi de toda forma interrompido em 2005, quando os EUA já faziam o cerco ao Brasil, negociando acordos comerciais com todos os demais parceiros, à exceção do Mercosul. Segundo os autores, “o objetivo do jogo [brasileiro] se concentra mais em evitar perdas do que em obter ganhos reais” (p. 353)

O segundo volume, voltado para o multilateralismo e para a agenda diplomática internacional do Brasil, constituiria, segundo o prefaciador José Flávio Saraiva, “um exemplo marcante da renovação epistemológica e metodológica que está em curso na investigação das relações internacionais do Brasil” (p. ix), afirmação que pode parecer algo exagerada, tendo em vista que os textos integrantes abordam questões tradicionais da agenda internacional e da agenda externa do Brasil, esforçando-se seus autores por apresentar as questões e problemas da melhor forma possível, sem que se vislumbre, porém, alguma “ruptura epistemológica” ou metodológica com os padrões conhecidos na academia brasileira. Em todo caso, vale examiná-los um a um, ainda que maneira muito resumida.

Os próprios organizadores, em sua introdução, acreditam que “uma mudança extraordinária” (sic), “entre tantas mudanças radicais, processou-se no sistema de relações internacionais do Brasil desde o final da guerra fria”. Qual seria essa mudança excepcional?: “a desconfiança, ou melhor dizendo, a descrença com que o País via as organizações internacionais se converteu em um entusiasmado engajamento, manifestado como uma fé inabalável nas virtudes do multilateralismo político e econômico” (p. 1). Esse “entusiasmo” pode aparecer como novidade apenas para os outsiders, uma vez que a diplomacia brasileira sempre atribuiu importância primordial às instituições multilaterais, geralmente consideradas, junto com a defesa do direito internacional, como o recurso obrigatório daqueles que não possuem poder real no mundo da política internacional. Em todo caso, a novidade nesta obra é constituída pelos quatro capítulos finais, que abordam a participação de atores não tradicionais na política externa (Congresso e empresariado), o problema do federalismo e o debate acadêmico e social sobre as relações internacionais do Brasil.

O segundo volume compõe-se de quinze capítulos, divididos em três partes. A primeira, sobre o multilateralismo, começa por examinar a questão da ONU, sob a pluma do professor da UnB Virgilio Arraes. A cobertura está circunscrita ao período posterior a 1990, década de grandes conferências internacionais já examinadas de modo competente pelo diplomata José Augusto Lindgren Alves, em seu livro Relações internacionais e temas sociais: a década das conferências (Brasília: IPRI-Funag, 2000). O autor registra a evolução da participação brasileira nessas instâncias internacionais, de uma adesão aos novos cânones da “democracia neoliberal” à frustração com a face menos risonha da “globalização assimétrica”, a partir das crises financeiras do final da década, até a busca pela sua incorporação no CSNU, mas conclui que o Brasil não tinha conseguido acumular “cabedal suficiente” para transpor o “fosso de poder” (p. 41) da ordem pós-guerra fria.

Alcides Costa Vaz trata, em seguida, do sistema interamericano, tanto do ponto de vista da integração e do comércio, como no plano da segurança regional. O hemisfério passou da era da guerra fria – quando a preocupação de Washington era prioritariamente securitária e focava quase exclusivamente a luta contra o comunismo e a influência soviética – para uma redefinição de agendas nos anos 1990, com a ascensão dos temas econômicos de modo amplo, em especial a dimensão comercial, manifestada no projeto americano de uma Área de Livre Comércio das Américas. Acadêmicos, seguidos por diplomatas, consideraram a Alca um “suicídio histórico”, posição de ampla receptividade nos mais diferentes meios políticos do Brasil, resultando inclusive na sua rejeição a termo. A dimensão da segurança e da cooperação militar foi tratada em conferências organizadas pela OEA e em encontros de ministros da defesa, com posições não consensuais quanto à natureza das novas ameaças – narcoguerrilha, terrorismo – e o emprego das forças armadas. O autor conclui que a agenda interamericana do Brasil padece de certa ambigüidade e da falta de instrumentos capazes de lhe conferir maior funcionalidade no quadro das relações externas (p. 72).

Antonio Jorge Ramalho da Rocha aborda a questão dos regimes internacionais, vistos pela diplomacia brasileira de uma ótica westfaliana, assentada em valores tradicionais: jurisdicismo, pacifismo (ou não-confrontacionismo), realismo e desenvolvimentismo. O autor destaca a “natureza contraditória” da adesão do Brasil ao TNP, uma vez que nada teria mudado, substancialmente, nas razões e condições que tinham determinado a recusa, durante três décadas, daquele tratado “discriminatório”; tal decisão do governo FHC teria representado “custos muito elevados e benefícios irrelevantes, senão inexistentes” (p. 118-119). Eiiti Sato, no capítulo 4, se ocupa do GATT-OMC e das questões de comércio internacional, ressaltando a posição atuante do Brasil em praticamente todas as rodadas de negociação e seu crescente papel nos processos de barganha.

Paulo Vizentini considera que as iniciativas de “geometria variável” do Itamaraty, como o G-3 (ou IBAS, com Índia e África do Sul) e o G-20 (para as negociações agrícolas da Rodada Doha), “resultam de uma leitura realista das mudanças em curso no sistema internacional” e a “contínua adaptação de uma estratégia voltada ao apoio, ao desenvolvimento e, mais discretamente, de ampliação do poder nacional” (p. 159). A estratégia faria parte de um projeto que pretende “rever o modelo de desenvolvimento de inspiração neoliberal”, que teria produzido uma “estagnação generalizada” (p. 166). Para ele, os governos de Collor a FHC “privilegiavam apenas as relações com os países ricos e, em menor medida, com o Mercosul” (p. 181), já que o ex-presidente FHC “não possuía os requisitos para uma mudança que ultrapassasse um tímido discurso crítico” e Lula “passou a desenvolver uma intensa agenda internacional (…) como porta-voz de um projeto que transcende objetivos de simples projeção pessoal e adesão subordinada à globalização”. Na linha de Amado Cervo, ele acha que “essa é a grande diferença: o desalinhamento da política externa em relação ao ‘consenso’ liberal norte-atlântico como forma de recuperar a capacidade de negociação” (p. 189). Otimista, ele acha que o G-3 pode “vir a se tornar um G-5, com uma virtual adesão da China e da Rússia” (p. 191).

Renato Baumann focaliza as relações do Brasil com o FMI, o BIRD e o BID nos anos 1990 e nota que nenhum outro país conseguiu, junto ao FMI, recursos equivalentes a 900% da sua cota, como ocorreu em 2002, com a utilização de 63% do valor global de 30 bilhões de dólares, inédito para operações exclusivas do FMI. Em contrapartida, o Brasil aceitou condicionalidades que se traduziram em reformas como as da previdência social e a adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal (p. 215). Outro traço dos anos 1990 é uma opção das três instituições por “tornar os investimentos cada vez mais dependentes das decisões do setor privado e cada vez menos uma iniciativa do Estado”, mas segundo Baumann “essa lógica tende a penalizar (ou adiar) os investimentos em atividades socialmente desejáveis, mas de baixo retorno privado” (p. 216).

A segunda parte, o Brasil e os temas da agenda internacional contemporânea, é aberta por um texto de Antonio Augusto Cançado Trindade sobre os direitos humanos, de 1985 a 2005. Ele já tinha assinado a magnífica obra A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil (1948-1997): as primeiras cinco décadas (Brasília: Editora da UnB, 2000), período marcado pela adesão do Brasil aos dois pactos da ONU e à Convenção Americana sobre direitos humanos, decisão da qual foi responsável direto, como consultor jurídico do Itamaraty no período pós-redemocratização. Ainda mais significativa e decisiva foi sua contribuição, depois de 13 anos de luta, para a aceitação obrigatória pelo Brasil da competência contenciosa da Corte Interamericana, efetuada em 1998. Ele está, porém, plenamente consciente de que o futuro da proteção dos direitos humanos no Brasil, em especial no que se tange à tortura, depende basicamente de “medidas nacionais de implementação” (p. 247).

A política externa ambiental está coberta em coerente capítulo assinado por Ana Flávia Barros Platiau, que ressalta certas ambigüidades da política ambiental brasileira, em função de sua inevitável conexão com as áreas comercial e industrial. As premissas de atuação do Brasil nos foros internacionais mantêm-se os mesmos desde 1992, mas a novidade no atual governo é a “maior participação de atores não estatais na construção da política externa ambiental”, ainda que eles não tenham sido capazes de moldar o conteúdo dessa política (p. 253). Durante todo o período, o Brasil manteve-se coerente com seu princípio de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas” na gestão dos recursos naturais, mas demonstra – segundo ela, uma “infundada” – resistência ao conceito de “patrimônio comum da humanidade”, em virtude de conhecido temor em relação à Amazônia. O Brasil exerceria, nesses foros, uma “liderança sem hegemonia”, com parceiros diferenciados em função de temas específicos (os “megadiversos” seriam um exemplo). Em síntese, o Brasil não mais considera, como em 1972, as questões ambientais como uma “ameaça internacional à sua soberania”, mas como uma “oportunidade para se garantir o desenvolvimento nacional” (p. 276).

Thomaz Guedes da Costa, conhecido especialista em questões de segurança, trata dessa temática em um capítulo intitulado, simbolicamente, “Em busca da relevância”. Ele considera que o processo decisório brasileiro é em geral introspectivo e pouco propenso a integrar os temas de segurança internacional na sua agenda, mas fica mais alerta quando o foco se aproxima da Amazônia. Afirma, também, que a pretensão brasileira de ser um rule-maker no sistema internacional produziu um “projeto anacrônico, particularmente na ambição de tomar lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas” (p. 285). Para ele, a proposta brasileira é “incompleta”, uma vez que o Brasil “não é reconhecido como um ator fundamental na segurança internacional, merecedor de um assento, nem pelas potências atuais, nem pelos vizinhos das esquinas americanas ou africanas” (p. 297). Eugenio Diniz continua no mesmo terreno, ao tratar das operações de paz da ONU e a participação do Brasil. Ele deixa, porém, de mencionar a importante contribuição do diplomata Paulo Roberto Campos Tarrisse da Fontoura para o estudo dessa questão no livro O Brasil e as operações de manutenção da paz das Nações Unidas (Brasília: Funag, 1999). Diniz considera que a participação ativa do Brasil e a sua liderança da missão de paz no Haiti “podem abrir um importante e significativo precedente para a diplomacia brasileira”, em vista da reconhecida resistência brasileira em participara de missões de “imposição de paz”, em contraste com as missões de “manutenção da paz”. Para ele, pode ser que “se esteja diante de uma inflexão adicional da política externa brasileira” (p. 334).

Pio Penna Filho aborda, no capítulo 11, as “estratégias de desenvolvimento social e combate à pobreza”, do ponto de vista da agenda internacional do Brasil. Ele também acha que ocorreu uma “imposição do modelo econômico neoliberal”, doutrina que seria hegemônica e que “prevê a redução drástica da intervenção do Estado na economia, até mesmo do Estado de Bem-Estar Social” (p. 340). Ele trata dos esforços do governo Lula para incorporar a dimensão do combate à pobreza e à fome na agenda internacional, mas dedica igual atenção à agenda interna nessa vertente.

A terceira parte, finalmente, está voltada para o debate social sobre as escolhas internacionais do Brasil, começando por um estudo de João Augusto de Castro Neves sobre o papel do Congresso na política externa. Desprovido de bibliografia, a despeito de mencionar autores no texto, o capítulo cobre a estrutura constitucional e política das relações exteriores no Brasil e trata de forma detalhada das atitudes dos congressistas em relação à integração regional e seu interesse nas negociações hemisféricas da Alca, certamente os temas que mais chamaram a atenção no período recente.

Amâncio de Oliveira e Alberto Pfeifer, ao abordar o papel dos empresários na política externa, reconhecem que esta se tornou, desde os anos 1990, mais transparente e permeável à sociedade brasileira. Sua participação foi, no entanto, bem mais intensa na promoção comercial do que nas negociações de política comercial, muito embora o Mercosul tenha representado um novo marco inclusivo. O governo Lula é caracterizado como um “ativismo nacionalista”: os autores lembram que os dirigentes do PT viam a Alca mais como um projeto de “anexação” do que de integração, que as opções “Sul-Sul” já estavam pré-determinadas e que o agronegócio foi beneficiado mais pela sua capacidade de gerar dólares de exportação do que por simpatia congênita. Eles dizem que, em função da opção ideológica do governo, “a burocracia diplomática teria abandonado posturas mais pragmáticas nas arenas do comércio internacional” (p. 401). Um interessante quadro analítico sumaria as relações entre o empresariado e o Estado no campo da política externa desde os governos Collor e Itamar até Lula. A fase recente é caracterizada pela internacionalização de grandes empresas brasileiras. Eles concluem pelo estudo da Coalizão Empresarial Brasileira e seu envolvimento nas negociações da Alca, algo inédito para os padrões “retraídos” do empresariado brasileiro.

José Flávio Sombra Saraiva trata do federalismo nas relações exteriores, também chamado de “paradiplomacia”. A participação de estados e municípios na política externa pode se dar de forma “atabalhoada”, daí os esforços do Itamaraty em enquadrar as iniciativas das assessorias de relações internacionais das unidades federadas. Por fim, no último capítulo, Antonio Carlos Lessa conclui, a partir do crescimento da produção acadêmica e da expansão da formação de quadros especializados, que estaria havendo um “adensamento do pensamento brasileiro em relações internacionais”, sendo que o primeiro exemplo seria a própria UnB, onde milita boa parte dos autores citados. Não obstante aderir o autor aos paradigmas esquemáticos e simplificadores propostos por Amado Cervo para enquadrar as relações internacionais do Brasil a partir do século XIX – liberal-conservador, até 1930; desenvolvimentista, até 1989; normal e logístico, desde então –, trata-se de excelente conclusão, em forma de balanço, para uma obra muito bem-vinda, que passa a representar uma referência doravante indispensável para os estudos da e na área. Um índice remissivo e uma bibliografia consolidada dos títulos mais importantes para cada seção temática seriam muito úteis numa segunda edição da obra, que provavelmente não tardará demasiado.


Resenhista

Paulo Roberto de Almeida – Diplomata de carreira e Doutor em Ciências Sociais. As opiniões expressas no presente texto são exclusivamente as de seu autor. E-mail: pralmeida@mac.com


Referências desta Resenha

OLIVEIRA, Henrique Altemani de; LESSA, Antônio Carlos (Orgs.). Relações internacionais do Brasil: temas e agendas. São Paulo: Saraiva, 2006. 2 volumes. Resenha de: ALMEIDA, Paulo Roberto de. Relações Internacionais do Brasil: versão academia. Meridiano 47, v.8, n.85, p.14-22, ago. 2007. Acessar publicação original [DR]

 

 

 

 

 

 

 

 

Itamar Freitas

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