Relações de gênero e escrita da história / Esboços / 2006
Em seu livro “A Nova História Cultural”, traduzido no Brasil em 1992, a historiadora Lynn Hunt afirmava que “Sem alguma discussão de gênero, nenhum relato de unidade e diferença culturais pode estar completo” [1] Este recurso nosso a uma autoridade acadêmica, como a da autora, talvez não seja mais necessário nos dias atuais, mas, no início dos anos noventa, no Brasil, certamente esta afirmação ajudou historiadoras/es em seu “combate pela história”, para que se incluísse o gênero como categoria de análise e que se aceitasse como “acadêmicos”, e portanto “sérios”, os estudos históricos que tinham este foco. Mesmo porque a desqualificação não era feita somente em relação ao gênero, outras pesquisas que discutiam raça/etnia, e mesmo classe, eram “acusadas” de serem “militantes” e, portanto, de não terem suficiente objetividade para serem tomadas como acadêmicas.
Por outro lado, dentro da militância a categoria gênero foi observada com desconfiança. Parecia “limpa” demais, não servia para identificar quem eram as/ os amigas/os e os que não eram. Ao contrário de “mulher” ou “mulheres”, gênero não designava um sujeito, e sim uma relação. Mesmo que reiteradas vezes tenha se afirmado que esta categoria tinha uma trajetória que começara com o movimento de mulheres e feministas, que remontava aos anos sessenta, ou seja, aquilo que se convencionou chamar de “Segunda Onda” do feminismo, para muitas feministas a categoria segue sendo uma maneira de despolitizar o debate.
Na escrita da história, no Brasil, o texto de Joan Scott tem sido considerado fundamental. A tradução do famoso artigo “Gênero: uma categoria de análise histórica”, pela revista Educação e Realidade, em 1990, em Porto Alegre [2], representou um marco nesta historiografia, dedicada, muitas vezes, a discutir a História das Mulheres.
A História das Mulheres, por sua vez, tem uma emergência em período anterior. Em 1984, o livro que se considera como marco dentro da historiografia brasileira foi o de Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX [3]. Torna-se interessante notar que este livro não traz, em seu título, a palavra mulher. Estratégias editoriais em um terreno difícil? Lembremos, ainda, que a editora que o publica, a Brasiliense, tornou-se conhecida, justamente por editar livros da esquerda, de resistência à ditadura e de cunho feminista. Este livro, inúmeras vezes citado, provocou o aparecimento de muitas pesquisas que trouxeram, estas sim, palavras como “Mulher”, “Mulheres”, “Condição feminina”, “Meninas”, em seu título. Assim, ainda em 1984, Miriam Moreira Leite organizou “A condição feminina no Rio de Janeiro: século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros”. [4] No ano de 1989, outra leva de livros tratavam do mesmo assunto: Rachel Soihet publicou “Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920”; Eni de Mesquita Samara publicou “As mulheres, o poder e a família: São Paulo século XIX”; Martha de Abreu Esteves publicou “Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Èpoque”. [5] Em 1993, Leila Mezan Algranti publicava “Honradas e devotas: mulheres da colônia, condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822”; Mary Del Priore publicava “Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Côlonia”; Luciano Figueiredo, “O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII”.[6] Em 1994, Joana Maria Pedro publicava “Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe”. [7]
Torna-se interessante observar que, por cerca de dez anos, os estudos históricos focalizaram o tema “mulher”, “Mulheres”, “feminina”, e o explicitaram nos títulos. Estavam, certamente, dialogando com um feminismo que, desde a segunda metade dos anos sessenta, vinha reafirmando a diferença e a identidade. O que se pretendia era mostrar que “havia uma forma “feminina” de fazer história, e que as mulheres constituíam-se como sujeitos, embora a História insistisse em deixá-las na invisibilidade Em sua obra, Maria Odila Dias alertava para as dificuldades de se escrever esta história, e de que, mais do que a falta de fontes, havia uma “invisibilidade ideológica”. Como ela, outras historiadoras/es buscaram apontar a presença das mulheres na história. Mostrou-se sua resistência às dificuldades da colonização e da escravidão. Apontavam as formas como burlavam as normas e como inventavam novos modos de agir. Tratava-se de encontrar estas personagens que, embora não tivessem ocupado qualquer cargo considerado importante na historiografia metódica, [8] tinham uma participação importante nos processos que a história social e a história cultural passavam a valorizar.
Certamente, a ausência delas em cargos de destaque também as deixou fora de muitas das fontes oficiais, mas não de todas. Abundantes em registros demográficos, em recenseamentos, são também numerosas em registros policiais e judiciários. Vem deste tipo de fonte a maioria das escritas da história. E, então, o que mais se encontra são trajetórias de mulheres pobres, lavadeiras, cozinheiras, prostitutas. No limite da pobreza, no limite das normas.
O uso da categoria “gênero” na escrita da história não significou o desaparecimento do uso de “Mulher”, “Mulheres” e até mesmo de “feminina”, embora esta última esteja sob severa crítica, uma vez que remete às diferenças biológicas, reforçando-as. O que se observa é que estas discussões continuam presentes e que neste dossiê, na revista Esboços, pode-se acompanhar como tanto o gênero quanto mulheres são referenciados.
Outra questão que merece destaque são os estudos sobre “masculinidade”. Novidade no interior da escrita da história, é bastante recente o surgimento de livros no Brasil que se atrevem a trazê-los no título. Na França, tem tido uma trajetória mais antiga [9]. Os estudos sobre masculinidades no Brasil, na historiografia são muito recentes. [10]
É, então, sobre relações de gênero, mulheres e masculinidades na escrita da história, que, neste dossiê da revista Esboços se fala. Está composto por 12 textos: 8 artigos, 3 textos referentes a um debate e uma entrevista.
Os oito artigos foram escritos por pesquisadoras oriundas de diferentes universidades do país e do exterior. Assim, Ângela Xavier de Brito e Ana Vasquez, em “Mulheres latino-americanas no exílio. Universalidade e especificidade de suas experiências”, lidam com “gênero”, embora a categoria “mulheres” apareça no título, pois as autoras percebem como estas relações interferem e dão significados diferenciados à experiência do exílio. Suely Gomes Costa, em “Silêncios, diálogos e ‘Os Monólogos da Vagina’: instantes dos feminismos (Brasil, 1970-1990)”, faz uma reavaliação do que se tem escrito sobre a história do feminismo no Brasil, através da peça “Os Monólogos da Vagina”, ela aponta para o “sexismo” da militância feminista dos anos setenta e oitenta, e a forma como esta peça, que fez parte da militância internacional, adquire novas abordagens, completamente descolada do que se pretendia em sua criação.
Lídia Maria Vianna Possas, no artigo “Revendo a história das cidades paulistas: uma (re)leitura do cotidiano”, busca nos inquéritos policiais os indícios do cotidiano da população urbana das cidades do Oeste paulista nas primeiras décadas do século XX. Assim, ela encontra as mulheres em seus espaços de trabalho, lazer e sociabilidade, mesmo em espaços considerados normalmente como masculinos, como é o caso dos bares e da estrada de ferro. Já Alcileide Cabral do Nascimento, no texto “Vida e esperança: o trabalho feminino na criação de bebês no Recife (1789-1831)”, apresenta uma pesquisa inédita e instigante, com reflexões importantes sobre o trabalho de mulheres pobres, principalmente negras e pardas, no Recife colonial e no início do Império. Evidencia as lidas e penas das amas de leite livres e escravas, que eram empregadas na criação de bebês nas casas particulares e nos abrigos de expostos e órfãos daquela cidade. Nestes artigos, a categoria “mulheres”, mesmo que constituída de forma relacional – ou seja, como relações de gênero -, é o foco da discussão e da escrita da história.
Continua sendo “mulheres” a força identificadora que organiza as mulheres em associações reivindicadoras de direitos, analisada por Maria do Socorro de Abreu e Lima no seu artigo “Pela efetivação dos direitos das mulheres: associações femininas no Recife dos anos 50”. A autora observa na pobreza e na luta pela sobrevivência o protagonismo das mulheres que atuam em diversas associações e organizações.
Cleci Eulalia Favaro, no artigo “Entre ‘lobos’ e ‘cordeirinhos’: dos discursos e das práticas nos relacionamentos familiares e conjugais entre descendentes de imigrantes”, apresenta uma análise instigante em torno dos discursos marcados pelo imaginário coletivo e a realidade vivida pelos homens e mulheres de origem étnica italiana. Um outro aspecto significativo é a utilização dos depoimentos orais e suas considerações sobre a metodologia de aproximação, e a aguçada percepção para perceber “detalhes significativos” no momento da entrevista. Maria Ângela de Faria Grillo, no artigo “Evas ou Marias? As mulheres na literatura de cordel: preconceitos e estereótipos”, apresenta as diversas maneiras como as mulheres aparecem no imaginário dos poetas de cordel nordestinos na primeira metade do século XX, e qual o papel que elas representavam para a sociedade da época. Os fragmentos dos folhetos da literatura de cordel mostram as imagens de mulheres malcriadas e falsas, como também de mulheres puras de boa conduta, identificadas como Eva ou Virgem Maria, respectivamente.
São, também, as mulheres, que Vera Lúcia Puga investiga em suas relações matrimoniais, no seu artigo “Casar e separar: dilema social histórico”. Aponta como, apesar das dificuldades na legislação, os casamentos eram desfeitos, mesmo nas classes mais abastadas. Entre as famílias mais pobres, uniões consensuais eram feitas e desfeitas. Lembra, entretanto, a força normativa da Igreja e do Estado, exigindo a manutenção de laços há muito já desfeitos.
Além dos artigos, deste dossiê consta um debate. Em junho de 2006, esteve presente no Encontro Estadual de História a professora e pesquisadora francesa Gabrielle Houbre. Esta fez uma conferência que se seguiu de um debate, com as professoras Cristina Scheibe Wolff e Janice Gonçalves. Gabrielle Houbre discutiu “A prostituição clandestina através dos arquivos da polícia de costumes (1865-1875)”, focalizando, portanto, fontes judiciais para o estudo da história das mulheres. No debate, as professoras focalizaram, respectivamente, as fontes policiais para a escrita da história das mulheres e das relações de gênero, e a relação de quem faz pesquisa com os arquivos e os documentos.
Fechando este dossiê, temos ainda a entrevista de Cristina Scheibe Wolff com Gil Mihaely. Este pesquisador esteve na Universidade Federal de Santa Catarina em 2006, e fez algumas conferências apresentando suas pesquisas sobre masculinidades e corpo masculino na França do século XIX. Na entrevista, ele discute sua trajetória acadêmica, as leituras que fez, pesquisas, estudos, e a importância da categoria gênero na sua escrita da história.
Este dossiê, centrado nas categorias “gênero” e “mulheres” dentro de uma perspectiva relacional numa revista como a Esboços, do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, permite refletir acerca de um campo de estudos que vem se desenvolvendo, nesta Universidade, desde o início dos anos noventa. Esta Universidade vem sendo reconhecida como um dos centros de excelência dos estudos sobre “Relações de Gênero”, “Feminismo”, “Mulheres”, “Masculinidades”. O diálogo que este dossiê realiza, com a escrita da História, permite marcar um acontecimento historiográfico e, também, mostrar um panorama do que se faz neste campo em outros lugares do Brasil.
Queremos agradecer a todas as pessoas que colaboraram com artigos; o esforço em fazer as revisões sugeridas, e, finalmente, a expectativa de que possa contribuir para o reforço da troca de experiências de pesquisa.
Notas
1. HUNT, Lynn. A nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.24.
2. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, 16(2): 5-22, jul/dez. 1990.
3. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo o século XIX. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.
4. LEITE, Miriam Moreira. (ORG). A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: Ed. HUCITEC & Fundação Nacional Pró-Memória, 1984.
5. SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890- 1920. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1989; SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo século XIX. São Paulo: Ed. Marco Zero & Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989; ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Èpoque. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1989.
6. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia, condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio & Edunb, 1993, DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Côlonia. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio & Edunb, 1993; FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio & Edunb, 1993.
7. PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. UFSC/SC, 1994.
8. Este termo “historiografia metódica” refere-se à escrita da história que baseada em métodos de crítica pretendia narrar a trajetória política das nações. Ver a este respeito GRESPAN, Jorge. Considerações sobre o método. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p.291-300.
9. MOSSE, George L. L’image de l’homme. L’invention de la virilité moderne. Paris: Éditions Abbeville, 1997. WELZER-LANG, Daniel (org) Nouvelles approches des hommes et du masculin. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1998. DELUMEAU, Jean et ROCHE, Daniel. Histoire des pères et de la paternité. Paris: Larousse, 2000. 2º édition.
10. MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001. MENDES, Juliana Cavilha. Histórias de quartel: um estudo de masculinidades com oficiais fora da ativa. Florianópolis: NIGS, 2004. OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004. SCHPUN, Mônica Raisa. (org.) Masculinidades. São Paulo: Boitempo Editorial; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino- uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920-1940). Maceió: Edições Catavento, 2003.
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