Relações de força: história, retórica, prova | Carlo Ginzburg

Fazer História (de qualquer tipo, e especialmente a história cultural) nos idos atuais sem se render às incertezas, fraquezas e ambiguidades do paradigma dito pós-moderno é uma façanha que poucos conseguem levar adiante. Optar por este caminho e, para além disto, avançar no debate e na construção de uma história com procedimentos realistas (para não dizer científicos), ancorada solidamente na pesquisa documental e na busca da verdade, é tarefa ainda mais ingrata, a qual se impôs Carlo Ginzburg, com esmero e galhardia. São poucos os que fazem esta opção, e muitíssimo poucos os que a realizam a contento, como este italiano, autor – entre outros clássicos da historiografia contemporânea –, de Os andarilhos do bem, O queijo e os vermes, História Noturna, além de importantes ensaios para se discutir um novo paradigma para a história, ciência do homem.

Num de seus últimos livros, Relações de força: história, retórica, prova – coletânea de ensaios apresentados em diversos colóquios e encontros acadêmicos – Ginzburg exercita a arte de pensar historiograficamente, indicando caminhos para se refletir sobre o “inextirpável componente artesanal do trabalho do historiador”, que é comparado às “apalpadelas” do luthier sobre o violino (Nota à edição italiana, p. 12). Este atrelamento indissociável entre teoria e história é uma das grandes contribuições de Ginzburg à historiografia contemporânea, pois é cada vez mais difícil encontrar historiadores que escrevam Teoria e História propriamente, articulando as dimensões da prática historiográfica (pesquisa em arquivos, manuseio de fontes primárias) com a da reflexão sobre o ofício (a discussão dos métodos ou das abordagens, e mesmo a construção de teorias ou filosofias da História). Frequentemente vê-se autores defendendo este intercâmbio, ocupando-se, contudo, apenas de uma das duas partes.[1] Pois esta relação não pode ficar apenas enquanto carta de intenção, mas sim como procedimento intrínseco à construção dos argumentos e idéias defendidas.

Para exemplificar tal atitude, é digna de nota a maneira como Ginzburg consegue ser minucioso em suas construções de contexto e preciso em suas argumentações – sem cair na incomensurabilidade dos estudos de caso que não servem de parâmetro para nenhuma outra comparação -, articulando o ponto de vista defendido em cada um dos estudos com um quadro teórico de envergadura, a um só tempo preciso e denso, particular e amplo. A vasta erudição que possui e que é utilizada em proveito da sólida concepção teórica alia-se a esta forma singular de argumentação, utilizando-se de conjecturas plausíveis e bem definidas, e de elaborações conceituais que sirvam para ambientes mais amplos que aqueles aonde são utilizadas originalmente. Para ele, teorizar é vasculhar evidências históricas que corroborem as hipóteses com as quais trabalha. Assim, buscando um detalhe que pode ser definidor, ele reflete na oficina do historiador.

A discussão sobre a retórica e as implicações desta discussão sobre a narrativa e a escrita historiográfica compõe o eixo central do livro, articulando aspectos em comum aos quatro primeiros ensaios (publicados em inglês em 1999). O último artigo, sobre o Demoiselles d’Avignon de Picasso, acrescentado à edição italiana em 2000, já aponta para um conjunto de questões que aparecem subsidiariamente aqui, mas que serão centrais nas preocupações posteriores do autor: a saber, as relações de força entre as culturas, num mundo globalizado.[2] Neste breve texto, abordaremos alguns tópicos da discussão contida nos referidos quatro artigos originais, deixando de lado o ensaio sobre Picasso.

Para questionar a base teórica dos que aproximam ou identificam narrativa historiográfica e ficção literária, Ginzburg refaz o percurso acidentado da retórica no ocidente, remontando a origem grega desta discussão. Desta forma, afirma que a idéia de retórica que baseia boa parte da argumentação dos que identificam história e narrativa ficcional é uma ideia estranha a dos gregos, e em boa medida se escora na interpretação não referencial (denominada também de auto-referencial ou ainda de noção ornamental) da retórica, que ganha força no Ocidente a partir do orador romano Cícero. Como “até mesmo a fuga da história se enquadra historicamente”, o italiano localiza simbolicamente tal desvio no que concerne à historiografia contemporânea a partir de um congresso realizado em Baltimore, em 1966, em que se apresentavam os últimos desenvolvimentos do estruturalismo francês (pp. 35/6). Desde lá, ganhou força a articulação entre a história e esta interpretação da retórica, particularmente através das leituras de Nietzsche que realizaram seus epígonos, na segunda metade do século XX.

No ensaio “Sobre Aristóteles e a história, mais uma vez.” (pp. 47/63) [3] desenvolve-se a idéia de que o núcleo da discussão historiográfica em Aristóteles não estaria na Poética – como pretendiam muitos – mas na Retórica. É nesta obra que o filósofo grego identifica “um núcleo racional”, que seria a prova, ou melhor, as provas: “O nexo entre a historiografia, assim como foi entendida pelos modernos, e a retórica, na acepção de Aristóteles, deve ser procurado aí.” (p. 49). Inclusive, para não deixar dúvidas do que diz, Ginzburg reconstrói o contexto da produção historiográfica grega, identificando duas posturas distintas em relação a esta atividade: de um lado os antiquários (ou arqueólogos) que se utilizavam de uma averiguação mínima para realizar induções, como Tucídides, [4] e de outro os narradores, à maneira de Heródoto (pp. 56/7). Ginzburg aponta que o vocábulo história, criticado por Aristóteles na Poética, é retirado do léxico de Heródoto, e não da tradição mais empírica, de confecção do trabalho historiográfico e de averiguação das fontes que esparsamente se iniciava entre os gregos. Assim, Aristóteles estaria criticando Heródoto e sua concepção de História, e não Tucídides, a quem considerava um historiador “diferente e menos exposto às críticas”, nas palavras de Ginzburg. Com esta análise, e percebendo-se o modo como pensadores dos anos 1960-90 se apropriam da retórica, nosso autor acusa o relativismo culturalista pela sua “irresponsável ubiquidade” (p. 39), e alfineta que a viragem linguística deveria ser chamada, na verdade, de viragem retórica (p. 68).

Não satisfeito à simplesmente seguir contestando os princípios de onde parte os estudos culturalistas, Ginzburg passa a enfrentar seus inimigos num terreno de batalha que eles elegem como um dos mais favoráveis á suas escaramuças: o da discussão sobre a narrativa. É o caso dos ensaios “As vozes do outro (uma revolta indígena nas ilhas marianas)” (pp. 80/99) e “Decifrar um espaço em branco” (pp. 100/17).[5] Num, aborda o modo como um determinado tipo de interferência literária arque-típica (modelo clássico) pode revelar-se como uma forma de introduzir a polifonia no texto historiográfico, abrindo espaço para críticas a sociedade contemporânea do historiador que, de outro modo, não poderiam ser formuladas. No outro, analisa-se um “espaço em branco” existente em Educação Sentimental, do romancista francês Gustave Flaubert, interpretando-o como uma remissão a visão de mundo que o escritor possuía da sociedade em que vivia. Obviamente, o princípio a partir do qual parte o autor – para não falar dos procedimentos seguidos para dar cabo à tarefa – é muito distinto do de seus contendores. Para ele, “uma maior consciência da dimensão literária de um texto pode reforçar as ambições referenciais que, no passado, eram compartilhadas tanto pelos historiadores quanto pelos antropólogos” (p. 80), afirma. Mais que analisar um texto pelo texto em si, Ginzburg ocupa-se em perceber todo o contexto produtivo dos autores envolvidos, as estratégias de criação do texto utilizadas e os constrangimentos que a realidade em volta impingia ao escritor.

Analisando um livro escrito pelo jesuíta francês Charles Le Gobien (1700) sobre a história das Ilhas Marianas (no Oceano Índico), Ginzburg indica que o texto possui remissões a modelos clássicos de discursos que foram incorporados à fala de personagens históricos retratados no livro. Tal maneira de construção do texto pode ser entendida facilmente como uma “prova” da descrença em relação ao texto historiográfico, que não possuiria nenhum vínculo com a realidade a qual pretende historiar, e que na verdade não passaria de um discurso sobre um outro discurso, o real sendo inatingível. Mas Ginzburg é um campeão no combate a este tipo de ceticismo. Para ele, ancorado em Mably – que dizia que um historiador pode “por na boca dos seus personagens, opiniões que, se fossem ditas por ele, produziriam um escândalo” – o historiador “pode criticar o poder legítimo até o ponto de fornecer razões para derrubá-los”, mesmo se utilizando de estratagemas sutis. Teria sido isto o que Le Gobien fizera ao colocar no índio Hurao – líder de uma das revoltas ocorrida nas Ilhas Marianas – uma crítica feroz ao processo de colonização que lhes estava sendo imposto.

A idéia de expressar o ponto de vista dos indígenas, por meio da pessoa de Hurao, pode ser vista como uma tentativa de introduzir uma dissonância deliberada, que insere uma dimensão dialógica numa narração substancialmente monológica (p. 89).

O vínculo referencial necessário na construção do texto historiográfico – mesmo em se utilizando de artifícios literários para dar verossimilhança ao estudo – pode ser capturado não apenas na remissão às fontes pesquisadas, mas inclusive às pressões políticas e ao contexto cultural do período de escrita final. Le Gobien criticava, na verdade, uma das vertentes do processo de colonização – tão dura como a dos embates da globalização envolvendo culturas e povos muito distintos ocorridos na atualidade –, que terminaria por acabar com a ordem dos jesuítas na região.

Na busca desta polifonia (heteroglossia) percebe-se também a ressonância de um dos velhos mestres de Ginzburg: Mikhail Bakhtin. Referência direta em suas primeiras obras, como é o caso de O Queijo e os Vermes (particularmente com o conceito de circulação cultural entre camadas subalternizadas e elites), cremos que este traço de sua formação revela uma relação com aspectos do marxismo que nunca foi totalmente ausente em sua produção.

No ensaio em que aborda o espaço em branco de Educação Sentimental, Ginzburg argumenta que, para além do texto, revela-se naquele lapso um tempo de maturação e consciência da sociedade francesa que acontece com Flaubert. Assim, através do discurso indireto, Flaubert se intromete enquanto autor no texto, dando opiniões sobre as coisas do mundo… Apontando elementos para se pensar o problema da narrativa literária de modo geral, Ginzburg critica os teóricos da narrativa histórica [6] não apenas em seus pressupostos, mas também em seus procedimentos:

A postura, hoje difundida, em relação às narrativas historiográficas me parece simplista porque examina, normalmente, só o produto literário final sem levar em conta as pesquisas (arquivísticas, filológicas, estatísticas etc.) que o tornaram possível. Deveríamos, pelo contrário, deslocar a atenção do produto literário final para as fases preparatórias, para investigar a interação recíproca, no interior do processo de pesquisa, dos dados empíricos com os vínculos narrativos (p. 114).

Este livro de Carlo Ginzburg, do qual destacamos apenas alguns pontos para esta resenha, é um belo exemplo do que deve ser feito para defender a história do assalto que a desrazão do mundo atual lhe impõe. Aprendamos a lição.

Notas

1 Ver o caso de José Carlos Reis, que defende tal união, mas não consegue realizar o intento em seus livros. Cf. REIS, José Carlos. A história, entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1999. E História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003

2 Cf. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução de Eduardo Brandão – São Paulo: Cia. das Letras, 2001., além do artigo Latitude, Slaves, and the Bible: an experiment in Microhistory. In: www.helsinki.fi/collegium/events/-urry.pdf – capturado em 09 de agosto de 2006. Talvez tais preocupações reflitam um pouco do novo ambiente acadêmico onde Ginzburg trabalha, a UCLA, nos EUA.

3 A primeira edição do texto saiu no Quaderni Istorici nº 85, em abril de 1994.

4 O próprio Aristóteles aventurou-se com seus discípulos neste campo.

5 O primeiro destes é uma das conferências realizadas em Jerusalém, na primeira metade da década de 1990, o segundo permaneceu inédito até a publicação do livro.

6 Para ele, “termo pouco feliz”. A este, o italiano prefere um outro, “narrativa historiográfica”

Referências

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução de Eduardo Brandão – São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

______. Relações de força: história, retórica, prova. Tradução de Jonatas Batista Neto – São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

______. Latitude, Slaves, and the Bible: an experiment in Microhistory. In: www.helsinki.fi/collegium/events/-urry.pdf – capturado em 09 de agosto de 2006.

REIS, José Carlos. A história, entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1999.

______. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

Osvaldo B. Acioly Maciel – UFAL/UNEAL.

GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Trad. Jonatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de: MACIEL, Osvaldo B. Acioly. Aproximações a Ginzburg: Comentários sobre Relações de Força Crítica Histórica. Maceió, v.2, n.3, p.261-265, jul., 2011. Acessar publicação original [DR]

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