Regras de bem viver para todos: a “Bibliotheca Popular de Hygiene” do Dr. Sebastião Barroso | Heloísa Helena Pimenta Rocha

Resenhar o livro Regras de Bem Viver para todos: a Bibliotheca Popular de Hygiene do Dr. Sebastião Barroso consiste em um grande desafio. Trata-se de pesquisa realizada para a escrita da Tese de Livre-Docência da Profa. Dra. Heloísa Helena Pimenta Rocha, apresentada à Faculdade de Educação da Unicamp, e publicado em 2017 pela editora Mercado de Letras.

Heloísa Rocha possui Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão (1985), Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1995), Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2001), com estágios de Pós-Doutorado na PUC/SP (2017) e na Universidad de Buenos Aires (2008). Atualmente, é Livre-Docente na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.

Além do livro Regras de bem viver para todos: A Bibliotheca Popular de Hygiene do Dr. Sebastião Barroso, a autora possui entre outras produções Educando os filhos das famílias de “poucos haveres e menor instrução”: renovação educacional, higienismo e escolarização da infância (2016), Cultura escolar e práticas de higienização da infância na escola primária paulista (2011), A higienização da infância no século da criança (2009), A escola e a produção de sujeitos higienizados (2002). A produção mais recente na área que pôde ser localizada foi Livros para instruir, persuadir e formar bons hábitos: circulação de modelos pedagógicos em uma coleção de higiene (2018), o que demonstra o investimento na temática da Educação e Higiene.

A organização do livro, esquadrinhada pelas 384 páginas que o constituem, é composta por uma apresentação e outras duas partes, subdivididas; a primeira em quatro capítulos e a segunda em seis capítulos. Nele, a autora se dedica a áreas de estudo referentes a História da Educação, História dos Livros e do Impresso, e Higiene Escolar, apoiada em uma vasta e consistente pesquisa.

O livro narra a vida do Dr. Sebastião Barroso, autoridade pública propagadora dos preceitos da higiene, e analisa a coleção escrita por ele que visava instruir, convencer, modificar os hábitos e guiar as condutas. Destaca também o papel do editor, o educador Lourenço Filho, um dos nomes mais representativos do movimento de renovação educacional conhecido como Escola Nova, na produção e destinação da coleção. Foi ele o responsável por escrever um apêndice com base nos princípios escolanovistas, por intermédio do qual buscava orientar o trabalho do professor, que passou a ser um dos destinatários da coleção.

Os exemplares da coleção estudada para a escrita de sua tese foram, de acordo com a autora, adquiridos através de buscas na internet, ou pesquisados em acervos como a Biblioteca Nacional, a Biblioteca Monteiro Lobato e a Escola Normal de Minas Gerais. O Acervo Histórico da Editora Melhoramentos também foi consultado e permitiu acesso a informações sobre ano de publicação, tiragem e preço dos livros, dados privilegiados para pesquisadores da área de História do Impresso, da Leitura e da Educação.

A obra traz na Parte 1, intitulada Um grande propagandista de preceitos de hygiene, um consumado vulgarizador de conhecimentos scientificos, e habilíssimo educador, uma caracterização do Dr. Sebastião Barroso, um médico com uma extensa folha de serviços nos órgãos de saúde pública de diferentes estados brasileiros e experiência em distintas iniciativas de divulgação dos preceitos de higiene.

Os primeiros quatro capítulos apresentam o ainda jovem médico em seus primeiros anos de trabalho. Incluem fragmentos da formação iniciada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e do exercício profissional no interior do Rio de Janeiro e de São Paulo. Dr. Sebastião Barroso foi também inspetor sanitário na época da reurbanização promovida por Pereira Passos, prefeito da cidade do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906, na então capital da República, além de ter integrado a programação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Sua passagem pelo Nordeste brasileiro e o programa de rádio integram ainda essa análise primeira.

A autora opta por trabalhar, não somente com a coleção de livros estudada, mas com documentos diversos, entre eles jornais e periódicos da Revista História da época, notas fúnebres publicadas por ocasião da morte do médico, e o livro publicado em 1934 e intitulado Recordações da vida médica, sustentando sua pesquisa nas relações estabelecidas entre eles, tornando seu texto original e interessante.

Já na segunda parte do livro, intitulada Livros para instruir, convencer, modificar os hábitos e guiar as condutas, a coleção de 27 volumes, publicada à época pela Editora Melhoramentos e inicialmente voltada para o público em geral, é apresentada e analisada a partir de criterioso questionamento às fontes. Destinada, no início, a um público amplo, a coleção sobre higiene e saúde se converte em obra didática ao receber um apêndice contendo orientações aos professores, além de indicações de outros títulos publicados pela editora e relacionados às temáticas abordadas, demonstrando assim um empenho desta em alcançar leitores diversos.

A partir de reflexões acerca do universo das coleções, como um gênero editorial com diferentes leitores, com repercussão na imprensa e composição de novo público leitor a partir de variados projetos, a pesquisadora busca indicar a ideia de que a leitura dos 27 livros da Bibliotheca Popular de Hygiene: A Saude para Todos era considerada instrutiva e muito útil. Por meio dela, o médico falava sobre educação sanitária para um público constituído por pessoas comuns, por meio de uma propaganda visual, com ilustrações e alegorias científicas.

Tal debate ressalta o não ineditismo da iniciativa, uma vez que a própria Editora Melhoramentos publicava, no período, a Coleção Biblioteca Infantil, organizada por Arnaldo de Oliveira Barreto, e a Biblioteca de Educação, organizada por Lourenço Filho. O projeto inseria-se, então, em um cenário no qual várias iniciativas semelhantes eram organizadas, demonstrando o investimento de importantes editoras na educação de amplas parcelas da população, cujas competências de leitura eram diferenciadas, levando a seleção, adaptação e ordenação dos textos sob sua rubrica e, dessa forma, permitindo trabalhar com diferentes públicos. Nesse contexto, a higiene e a saúde figuravam entre os assuntos mais abordados pelas coleções.

Ao realizar uma reflexão sobre a figura do editor e a mediação editorial, a autora indica que esta ação permitiu tornar os livros da Biblioteca Popular de Hygiene: A Saude para Todos passíveis de usos escolares. De acordo com a pesquisadora, as coleções de livros, e em particular, as coleções populares, permitiram que os editores da época assumissem o controle da produção de livros, assumindo papel de grande relevância, uma vez que, conforme assinala Chartier (1994), a compreensão dos textos depende também das formas por meio das quais eles chegam aos leitores.

A organização de coleções era, no período, uma tendência do mercado editorial que procurava baratear o preço de produção dos livros, de acordo com estudos de Hallewell (2005). Nela, a figura do editor se afirmava como moderna e central no estabelecimento de normas do mercado, já que era ele quem assumia a coordenação das seleções que regiam a transformação dos textos e livros em mercadoria intelectual, de acordo com pesquisas empreendidas por Roger Chartier (2001). Ao assumir o controle da publicação de coleções, o editor assumiu o controle da produção de livros, já que não mais comprava os manuscritos, mas encomendava os textos.

Apoiada em pesquisas realizadas por Venâncio (2004), a autora repensa a criação das coleções populares e o lugar das bibliotecas, enquanto consagradoras do papel do editor e da estratégia editorial por trás desse projeto. O termo bibliotecas passa a ser empregado com o intuito de designar o resultado de uma intencionalidade de seleção de textos e de autores, bem como da organização, distribuição e venda desse material.

A pesquisadora, com o apoio de obras de referência sobre o tema, tece uma criteriosa análise sobre a Biblioteca do Dr. Barroso e sobre as estratégias encontradas por seu editor. Considerando o fato de a coleção, inicialmente voltada ao público em geral, ter sua destinação alterada para atender também ao público escolar, mudança coincidente com a redução da tiragem quase à metade, é sugestiva de que a decisão visava ampliar o número de leitores de um empreendimento editorial.

Com a alteração empreendida pela Editora objetivando que a coleção fosse utilizada nas escolas, os livros passaram a contar com um apêndice, contendo orientações aos professores, além de indicações de outras obras relacionadas às temáticas abordadas. Na visão de Heloísa Rocha, a pesquisa evidenciou que, entre outras características, a composição das capas e o amplo emprego das imagens buscavam conferir um caráter popular aos livros, como parte das estratégias editoriais acionadas com vistas a atingir a um público maior.

O livro Regras de Bem Viver para todos: a Bibliotheca Popular de Hygiene do Dr. Sebastião Barroso apresenta imagens utilizadas pelo médico para explicar à população sobre as doenças e seus agentes causadores. A utilização de diferentes tipos de imagens pode ser entendida como um investimento para tornar a mensagem da higiene acessível, mesmo para aqueles que não dominavam os códigos da escrita, demonstrando uma preocupação dos responsáveis pela edição em fazê-la chegar a toda a população.

Ao questionar as imagens utilizadas na coleção analisada, a autora se interroga sobre o papel delas para a apropriação pelos diferentes públicos. Cumpririam elas o papel de traduzir as verdades da ciência em uma linguagem acessível a todos? Por conseguinte, registra reflexões sobre questões envolvidas no uso das imagens como evidência histórica, buscando apoio no trabalho desenvolvido por Peter Burke, Testemunha ocular: história e imagem (2004), para pensar esse acervo. Ao operar com as imagens encontradas nos livros da Bibliotheca Popular de Hygiene, Heloísa Rocha considera a importância que ganham as imagens no projeto editorial, procurando registrar os possíveis sentidos de algumas dessas imagens localizadas, em conjunção com textos do Dr. Barroso. De acordo com a autora, as imagens ocuparam um lugar significativo na constituição de uma retórica que visava à conformação dos comportamentos dos leitores, caracterizando-se como um projeto de propaganda e educação sanitárias.

Refletir sobre como um determinado objeto cultural se converte em obra didática é objetivo da pesquisadora. Poderia a coleção ser considerada um manual escolar? Ao escrever sua Tese de Livre-Docência, mais tarde publicada com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp, a autora examina tais questionamentos. Aqui, o possível manual escolar torna-se um documento histórico, de grande relevância para a pesquisa em História da Educação.

Heloísa Helena Pimenta Rocha apresenta sua pesquisa sobre uma coleção de livros sobre saúde e higiene que foi repensada e reconfigurada para atender às intenções de alcance pedagógico de uma sociedade que se tornou foco de interesse de políticas de higiene, e de uma cidade que passava por transformações estruturais para atender tais intenções. Ao refletir sobre como um objeto impresso se torna escolar, a autora ponderou sobre até que ponto as intervenções do editor participaram da configuração da coleção para essa destinação. Dessa forma, procurou demonstrar o ato de mediação de um intelectual em busca de contornar problemas de que padeciam os livros escritos para toda a população, ao serem transformados em livros para uso por professores nas escolas do país. A inadequação da composição para a leitura dos alunos já havia sido notada por ele.

Sua argumentação é embasada em diferentes fontes, tais como material iconográfico, notas fúnebres, livros e relatórios escritos pelo médico Sebastião Barroso, além de periódicos e jornais. Dessa forma, a autora conclui sua consistente análise acerca do processo pelo qual passou a biblioteca do Dr. Sebastião Barroso até ser introduzida nas escolas do país, indicando e analisando as alterações empreendidas por Lourenço Filho a fim de que os professores pudessem utilizar os livros com segurança em suas aulas. A leitura de Regras de Bem Viver para todos: a Bibliotheca Popular de Hygiene do Dr. Sebastião Barroso é recomendada para interessados e pesquisadores que tratem de questões atinentes às áreas de educação e saúde.

Referências

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: Edusc, 2004.

CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1994.

CHARTIER, Roger. Formas e sentidos. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Campinas: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil, 2003.

HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Edusp, 2005. ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. A higienização da infância no século da criança. In: FARIA, Ana Lucia Goulart; MELLO, Suely Amaral (Org.). Linguagens infantis: outras formas de leitura. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2009, v. 1. p. 49-69.

ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. Cultura escolar e práticas de higienização da infância na escola primária paulista. In: VIDAL, Diana Gonçalves; SCHWARTZ, Cleonara Maria (Org.). História das culturas escolares no Brasil. 1. ed. Vitória: Edufes, 2011, v. 1. p. 159-195.

ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. Educando os filhos das famílias de “poucos haveres e menor instrução”: renovação educacional, higienismo e escolarização da infância. In: VECHIA, Ariclê; FERREIRA, António Gomes (Org.). A criança e a escolarização: igualdade e desigualdade no espaço latino-americano nos séculos XIX e XX. 1. ed. Curitiba: Editora Universidade Tuiuti do Paraná, 2016, v. 1. p. 91-116.

ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. Livros para instruir, persuadir e formar bons hábitos: circulação de modelos pedagógicos em uma coleção de higiene. In: CASTRO, Cesar Augusto; CASTELLANOS, Samuel Luis Vellázquez (Org.). História da educação: métodos, disciplinas, currículos e espaços de leitura. 1. ed. São Luís: Edufma; Café & Lápis, 2018, v. 1. p. 409-432.

ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. O que todos precisam saber e como se deve ensinar: a constituição da coleção Bibliotheca Popular de Hygiene. 2015. Tese (Livre Docência) – Universidade Estadual de Campinas/Unicamp, Campinas, 2015.

ROCHA, Heloísa Helena Pimenta; GONDRA, José Gonçalves. A escola e a produção de sujeitos higienizados. Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 493-512, 2002.

VENÂNCIO, Giselle Martins. Lisboa – Rio de Janeiro – Fortaleza: os caminhos da coleção Biblioteca do Povo e das Escolas traçados por David Corazzi, Francisco Alves e Gualter Rodrigues. In: SEMINÁRIO BRASILEIRO SOBRE LIVRO E HISTÓRIA EDITORIAL, 1, Rio de Janeiro, 2004. Anais… FCRB – UFF/PPGCOM – UFF/LIHED, 2004. Disponível em: http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/gisellemartins.pdf. Acesso: 25 maio 2012.


Resenhista

Michele Ribeiro de Carvalho – Possui Graduação (licenciatura e bacharelado) em Pedagogia (2008) e Mestrado (2016) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Atualmente é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd/UERJ). E-mail: mmichelerj@oi.com.br  http://orcid.org/0000-0003-4880-8773


Referências desta Resenha

ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. Regras de bem viver para todos: a “Bibliotheca Popular de Hygiene” do Dr. Sebastião Barroso. Campinas: Mercado de Letras, 2017. Resenha de: CARVALHO, Michele Ribeiro de. História da Educação. Santa Maria, v.23, 2019. Acessar publicação original [DR]

 

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