Regime de Vargas / Em Tempo de Histórias / 2018
Investigar a respeito do governo de Getúlio Vargas é um grande desafio para os pesquisadores. Em apenas 18 anos, somados os dois períodos em que ele esteve no comando do país – de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954 –, o Brasil passou por um verdadeiro turbilhão de mudanças políticas, econômicas e culturais.
Nesse período, inferior a duas décadas, passamos por uma revolução que depôs um presidente e evitou a posse de um candidato eleito, assistimos a uma guerra civil, estivemos diante de tentativas de tomada do poder tanto pela extrema esquerda quanto pela extrema direita, participamos de uma guerra mundial, observamos o crescimento da música popular, vivemos a conquista de novos direitos trabalhistas e acompanhamos uma crise que culminaria no suicídio de Vargas. E estes são apenas alguns dos fatos mais significativos.
Getúlio Vargas, talvez o governante mais marcante da história do Brasil, até hoje desperta dúvidas, simpatias e críticas. Criou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), modernizou a economia brasileira, promoveu transformações urbanas e estabeleceu um novo modelo na relação entre político e trabalhador que conceitualmente recebeu o nome de populismo e, posteriormente, de trabalhismo. Além disso, perseguiu e prendeu milhares de brasileiros, implementou uma ditadura e não teve nenhuma pena de qualquer um que se mostrasse contrário ou representasse uma ameaça aos seus planos de permanecer no poder.
Ao longo de sua trajetória, Vargas fez muitos amigos e inimigos. E muitas vezes amigos que se tornaram inimigos e vice-versa. Pedro Ernesto Baptista, revolucionário de 1930, amigo e médico pessoal, acabou acusado de ser comunista e terminou preso por mais de um ano, sendo obrigado a encerrar seu mandato como prefeito da cidade do Rio de Janeiro. João Neves da Fontoura, companheiro de Vargas em 1930, passou a líder da oposição em 1934 e depois voltou a apoiá-lo na ocasião do golpe de 1937. Flores da Cunha, conterrâneo do presidente e também participante de 1930, passou a principal inimigo do presidente entre 1935 a 1937, fugindo do país poucas semanas antes do início da ditadura. Tais exemplos servem para demonstrar a fluidez das relações políticas e a enormidade de mudanças que ocorreram no cenário nacional de ano a ano, o que força o pesquisador a examinar com atenção, sensibilidade e de forma detalhista esse importante período de nossa história.
É necessário estudar a figura de Getúlio Vargas e todas as nuances nacionais e regionais dos vários momentos de seu governo com senso crítico e tomando o máximo de cuidado a fim de manter o distanciamento tão importante à pesquisa histórica. Algumas armadilhas devem ser evitadas como, por exemplo, a naturalização do uso da expressão “República Velha”, criada pelo governo Vargas para desvalorizar o passado, mas que lamentavelmente ainda é usada em alguns estudos historiográficos. Da mesma forma, a visão de Vargas como “doador” das leis trabalhistas é uma aceitação passiva do discurso criado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), apagando todo o passado de lutas históricas dos trabalhadores que culminou na pressão sobre o Estado para o atendimento das reivindicações das ruas.
Outro ponto interessante nos estudos sobre Vargas é o abrandamento que algumas vezes se faz da ditadura vivida entre 1937 e 1945, período tão violento e repressor quanto a Ditadura Civil-Militar de 1964. É imprescindível lembrar que muitas práticas de tortura e o arcabouço jurídico utilizado no tempo de Vargas foi aproveitado pelos militares na ditadura seguinte, inclusive com a participação de personagens em comum, como Francisco Campos, central na ditadura estadonovista e um dos redatores dos atos institucionais 1 e 2, respectivamente em 1964 e 1965.
Dentro desse vasto campo de investigações se insere este dossiê temático da Revista Em Tempo de Histórias, composto por artigos que tratam de diversos vieses do período Vargas e que, consequentemente, traz importante colaboração para a historiografia brasileira. Em Carnaval é política: a criação da Federação Carnavalesca de Pernambuco (1930-1950), Rosana Maria dos Santos mostra a interferência da elite no carnaval popular recifense de modo a transformá-lo de acordo com os interesses da alta sociedade pernambucana. A intervenção e regulação estatal da cultura popular é um traço marcante do governo Vargas, seja na esfera federal ou por meio da ação dos governadores estaduais, o que realça a pertinência do texto.
Já Mayra Coan Lago, em Conflitos e pedidos de terra nas cartas dos trabalhadores para Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón, analisa a correspondência enviada pelos trabalhadores para os líderes brasileiro e argentino pedindo doação de terras e a intermediação deles em conflitos pela posse das mesmas, mostrando muito sobre o imaginário político da época e a relação estabelecida entre líder político e população.
Em O Distrito Federal e a Guerra de 1932: a construção de um front interno pelo Governo Provisório, Felipe Castanho Ribeiro procura analisar a mobilização do Governo Provisório durante a Guerra de 1932. Para isso, o autor recorreu ao conceito de front interno conforme o entendimento do historiador Roney Cytrynowicz. Neste sentido, o historiador apresenta a hipótese de que o Governo Provisório precisou mobilizar diferentes setores da sociedade com o intuito de assegurar a sua vitória diante do movimento militar irrompido no estado de São Paulo. Cabe ressaltar que a cidade do Rio de Janeiro, enquanto sede administrativa e política do país, serviu como uma vitrine para o resto da nação e que por isso o Governo de Getúlio Vargas precisou garantir a manutenção da ordem, conquistar o apoio da população carioca e consequentemente auferir a sua legitimação. A imprensa, censurada durante a guerra, foi um importante meio de comunicação do governo durante o conflito e foi amplamente utilizada para alcançar os seus objetivos.
No artigo A criação de uma Diplomacia Anticomunista no governo Vargas, em 1937, Maria Nepomuceno estuda a formação de uma agência anticomunista, no momento que precedeu à implantação do Estado Novo, envolvendo um serviço de inteligência na América Latina que objetivava a cooperação supranacional para monitoramento das conexões dos comunistas brasileiros além das fronteiras do país. O anticomunismo, essencial para o fortalecimento do Poder Executivo em dezembro de 1935 e, depois, para o golpe de 10 de novembro de 1937, foi um aspecto importante e que se manteve vivo durante todo o primeiro governo Vargas.
Daniela Teles da Silva, no texto Eugenia, saúde e trabalho durante a Era Vargas, traz dois aspectos centrais do período: a questão sanitária, que ia além do cuidado com a saúde a partir da construção de hospitais e casas de saúde, se expandindo para a discussão eugênica, que suscitou acalorado debate entre especialistas desde finais do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Além da eugenia, os ideais sanitaristas e higienistas também tiveram a atenção do Estado durante o governo Vargas, a fim de atingir a meta de uma sociedade saudável, apta ao trabalho e que levaria o país ao desenvolvimento.
Em A aproximação luso-brasileira nos tempos do Estado Novo e a Revista Atlântico (1942-1945), Guilherme Nercolini Miranda estuda as relações internacionais entre Brasil e Portugal a partir da Revista Luso-brasileira, criada no contexto da Segunda Guerra Mundial. Miranda analisa os discursos que permeavam as relações entre os dois países e mostra a participação dos intelectuais brasileiros e portugueses no estabelecimento dessa diplomacia.
O Estado Novo por Getúlio Vargas: a verdadeira democracia é a democracia social?, de Claudio Alcantara Meireles Junior, traz a importante questão de como Getúlio Vargas, em seus discursos, conseguiu justificar a aparente contradição de querer estabelecer uma democracia social e, ao mesmo tempo, manter um governo ditatorial. A ideia de democracia social, representada pelo ganho de direitos trabalhistas, foi colocada como mais importante do que a democracia liberal, que não se adequaria à realidade do país e que seria improdutiva no que tange aos avanços sociais e econômicos, segundo o presidente.
André Barbosa Fraga, em O segredo das asas: a colaboração fílmica do INCE para a construção de uma mentalidade aeronáutica durante o governo Vargas, analisa o filme O segredo das asas, produzido em 1944 pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). No contexto da criação do Ministério da Aeronáutica, a película fez parte de um projeto governamental de construção de uma mentalidade aeronáutica, de modo a incentivar o engajamento de pilotos comerciais e militares e o consequente desenvolvimento da aviação no Brasil.
Encerrando o dossiê, Thiago Fidélis escreve Samuel Wainer: entre Diretrizes e Ultima Hora, que discute parte da trajetória do importante jornalista, que tivera fechada sua revista Diretrizes durante a ditadura, mas que a partir de uma entrevista realizada com Vargas, em 1949, cada vez mais se aproximou do político gaúcho. Wainer fundou, em 1951, o famoso jornal A Última hora, que seria o principal periódico de apoio a Getúlio Vargas durante seu governo democrático, de 1951 a 1954, rivalizando com jornais de oposição como o Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda.
Agradeço à equipe da Revista Em Tempo de Histórias pelo convite para organizar esse importante dossiê e os parabenizo por todo o esforço em prol do desenvolvimento desse valioso periódico científico, o que demanda muita dedicação e trabalho árduo diário. Desejo a todos uma boa leitura e que os textos que aqui estão sejam objeto de reflexão e possam fomentar novos debates, assim como contribuir para a difusão do conhecimento científico sobre esse que é um dos mais importantes períodos da história do Brasil, o governo de Getúlio Vargas.
Thiago Cavaliere Mourelle – Doutor em História Social (UFF). Supervisor da Equipe de Pesquisa do Arquivo Nacional. Editor-científico da Revista Acervo – Arquivo Nacional. Professor associado do Núcleo de História Contemporânea (NEC/UFF). Coordenador e Professor de História – Educafro. E-mails para contato: thiagocavaliere@an.gov.brthiagocmourelle@gmail.com; .