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Refugiados | Joaquim Branco

Joaquim Branco | Foto: Divulgação

Há no sistema capitalista um uso constante, ideológico, da palavra, que procura convencer o usuário a transformar em mercadoria e a consumir toda mercadoria como bem supremo. Ora, nesse contexto particular, que nós estamos vivendo, que é uma sociedade de consumo, em que tudo passa a ter valor venal, a palavra lírica soa como uma mensagem estranha porque ela se subtrai a esse império da ideologia, nos remete a certos traços humanos, universais, a certos sentimentos comuns, à humanidade, como a angústia em face da morte, a indicação em face da opressão enfim, a palavra lírica está em tensão com a ideologia dominante (BOSI, 2003, s/p.).

Toda obra literária está essencialmente atrelada ao seu tempo e ao seu espaço. Entretanto, poucos escritores/poetas conseguem, de fato, um fazer poético que seja uma forma de denúncia e de resistência em favor do seu tempo e, principalmente, de seus contemporâneos. Nos versos finais do poema Mãos dados, de Carlos Drummond de Andrade, o eu-lírico diz: “o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente” (ANDRADE, 2012, p. 34). Para o autor, o seu objeto poético deveria ser o cotidiano humano em todas as suas múltiplas faces. Drummond escreveu o poema citado acima no contexto truculento e dilacerante fomentado pela Segunda Guerra Mundial. Por isso, ele não usou a sua obra para um escapismo frio e acovardado diante daquela situação, mas, antes, colocou a sua poesia a serviço das questões coletivas da época.

Como Drummond, que não se manteve alheio às dores da vida presente, o poeta contemporâneo, professor e crítico de literatura, Joaquim Branco [2], em seu livro Refugiados, lançado em 2017, edição do autor, impresso pela editora Letras e Artes, expõe poeticamente várias mazelas sociais, econômicas e políticas pelas quais passam o Brasil e o mundo. Assim, a obra de Branco apresenta um forte engajamento com o coletivo, como o outro, com aqueles que são mutados pelas ideologias dominantes. Nesse sentido, conforme afirma Faustino (1977),

a poesia que se mostra consciente do mundo ou de uma época, que age sobre uma e outra retratando-a, oferecendo-lhe nova escala de valores, criticando-os, etc. – uma poesia social-consciente, enfim – presta importante serviço à coletividade (FAUSTINO, 1977, p. 37).

O leitor é convidado a entrar no jogo poético já no título do livro – Refugiados – que, apesar de curto e áspero, descortina o drama da diáspora moderna, caracterizada por um sem número de pessoas que formam “exércitos sem armas, / esfomeados do século da bastança” (BRANCO, 2017, p. 51), em busca de um lugar que os acolha, uma vez que seus próprios lugares de origem lhes foram hostis.

Variadas são as razões para esses desenraizamentos: conflitos étnico-raciais, perseguições religiosas e políticas, fome, pobreza etc. Em virtude disso, essas multidões partem ao desconhecido e “esperam pacientemente receber / o que lhes devemos / em decência / simplesmente / em lugar da incoerência” (BRANCO, 2017, p. 52), como expressam esses versos do poema que dá título à obra.

O livro é composto por 41 poemas ao todo, nos quais o autor exibe com maestria toda sua criatividade, abordando temas atuais e complexos em versos livres, poemas visuais, concretos e multissemióticos – que, segundo Rojo (2012), é “a interação entre linguagens diferentes em um mesmo texto” (ROJO, 2012, p. 19). Ou seja, todos os recursos linguísticos e semióticos são usados livremente para a construção de sua arte poética, proporcionando ao leitor o que Santos (1983) chama de o revelar e o encobrir. Essa dicotomia “é um processo que atinge a imaginação do homem em sua raiz” (SANTOS, 1983, p.125).

Em relação à temática, emergem textos que expõem cruamente o contexto político-social brasileiro dos últimos anos, principalmente após as eleições de 2014 e, também, os problemas sociais de cunho universal. Além disso, a obra apresenta poemas que resvalam a cultura de Cataguases, Minas Gerais, cidade natal do poeta. Sobre esses três principais agrupamentos temáticos seguem algumas breves considerações.

No tocante à conjuntura nacional, encontramos os poemas Impedimento: as horas; Impedimento: o pós; Impedimento: os nós; e Impedimento: o jogo, que tratam da questão do impeachment sofrido pela ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016. Em um jogo entre imagens e palavras, o poeta (re)constrói esse período marcante da história recente do país. Somam-se a esses os poemas Caminhadas para golpes – um poema-imagem – e Associação de velhacos, que metaforicamente fazem alusão a ações que motivaram ou compactuaram com o referido impedimento.

Ainda no que tange ao cenário brasileiro, é possível citar o poema Reforma do fim do mundo, o qual aborda a reforma da previdência, posta em discussão pelo legislativo logo após o Governo Federal ser assumido por Michel Temer. Outro poema que versa sobre o quadro político nacional é Os indecisos que, segundo informação da nota de rodapé, foi produzido em 18/10/2014 – período entre o primeiro e o segundo turno das eleições daquele ano – e trata dos eleitores indecisos: brancos e nulos, “rentes parceiros do nada” (BRANCO, 2017, p. 41).

Não escapam também da contundente crítica do poeta algumas táticas de governo adotadas por Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos. Dentre elas, é possível citar a restrição da entrada de pessoas oriundas de determinados países nos EUA e o ataque Militar à Síria, como bem retratam os poemas multissemióticos intitulados Joguinhos de guerra: trumpolinagens e A trumpetização do mundo.

Dessa forma, Joaquim Branco mostra-se como “perigoso”, conforme afirma Faustino (1977): “O poeta contemporâneo tem de ser perigoso como Dante foi perigoso” (FAUSTINO, 1977, p. 37). Assim é Branco, um poeta que em face ao domínio exercido pelo capital não se intimida e não se cala. Mas, antes, arma-se com os artefatos de ataque que a linguagem lhe proporciona, pois, segundo Drummond, “um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos” (ANDRADE, 1973, p.16).

Faustino (1977) acrescenta ainda “que o poema viva em função do tempo, do espaço e do homem – contra ou a favor, nunca indiferente” (FAUSTINO, 1977, p. 38). Essa máxima também se aplica ao livro em questão, como se pode observar pelas temáticas poetizadas.

O poema Natal em Aleppo discorre sobre a devastadora guerra civil na Síria e suas consequências para milhares de pessoas que sequer conseguem fugir dessa situação. Os primeiros versos do poema são curtos, diretos e cirúrgicos: “tentem ser felizes / se puderem imaginar / o Natal em Aleppo” (BRANCO, 2017, p. 34). E termina com um imperativo categórico: “É preciso imaginar / o Natal em Aleppo / mesmo sem se procurar / os culpados, que estes estão/ felizes, ocupando seus cargos, / dirigindo seus carros, / pilotando seus barcos” (BRANCO, 2017, p. 35). Esse poema tem seu sentido ampliado pelo desenho de Alexandre Gaudereto feito exclusivamente para esse texto, estabelecendo, assim, uma relação profícua entre texto escrito e imagem.

Nesse mesmo tom crítico, o poema Refugiados expõe a cruel realidade daqueles desterrados que “morrem às dezenas, / vindo do país do nada / para o nada caminhando” (BRANCO, 2017, p. 51) a fim de encontrarem um refúgio. Porém “nem a ONU / lhes concede a graça / de um teto seguro” (BRANCO, 2017, p. 51).

Em nível regional, como é constante na poética de Joaquim Branco, encontramos três poemas que se referem, de alguma maneira, à cidade de Cataguases, Minas Gerais. São eles: Minha cidade, poema concreto e multissemiótico; Cataguases: a chegada, resumo poético da história desse município mineiro; e Versos Ascânicos, uma homenagem ao poeta Ascânio Lopes, importante esteio do movimento modernista Verde, iniciado em Cataguases, em 1927.

Joaquim Branco surpreende, mais uma vez, com a sua habilidade poética: conteúdo e forma realçam a liberdade de (re)criação através de múltiplas linguagens, formando uma proposta engajada e presa ao mundo presente, aos seus contemporâneos. É uma leitura aguda, que exige do leitor a participação no jogo proposto pelo poeta e pelo texto literário. Sobretudo, é necessário ter sensibilidade e empatia para fruir os textos, uma vez que, de acordo com Adorno (2003), “só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade” (ADORNO, 2003, p. 67).

O livro Refugiados é um convite à inquietude, ao desassossego. Somos chacoalhados em nossos mundos particulares para pensar o coletivo. Afinal, somos parte dessa diáspora que a jornada da vida nos impõe e, portanto, refugiados. Além disso, como o próprio poeta afirma na quarta capa do livro, “também certos poemas são, de certo modo, refugiados, pois tiveram que fugir da obscuridade, do medo, da insensibilidade de poderosos de sua época”. E ainda acrescenta que

o lugar desses poemas é nos livros, onde vão se resguardar para chegar ao público, mesmo que seja para um só leitor, pois sabe-se que, por meio deste um, eles se multiplicarão sucessivamente através dos tempos (BRANCO, 2017, quarta capa).

Nota

2. Joaquim Branco nasceu em Cataguases MG, em 25 de maio de 1940. Formado em Direito pela UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1966 e Letras pela FIC-Cataguases, 1975. Mestre em Literatura Brasileira pelo CES-Juiz de Fora MG, 2001 e Doutor em Literatura Comparada pela UERJ (Rio de Janeiro), 2006. É poeta, crítico e professor de literatura. Algumas obras: O município de Cataguases – Esboço Histórico (2021); Nos bastidores de O caça-palavras (2019); Refugiados (2017), Entrelinhas (2016); Textuagens (2014). Fonte: site do autor < http://www.joaquimbranco.com.br / >

Referências

ADORNO, Theodore W. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades, 2003.

ANDRADE, Carlos Drummond. Sentimento do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973.

BOSI, Alfredo. “Entrevista a Rinaldo Gama: Poesia como resposta à opressão”. In: Revista FAPESP, ed. 87. São Paulo, maio de 2003.

FAUSTINO, Mario. Poesia-experiência. São Paulo: Perspectiva. 1977.

ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo (Org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012.

SANTOS, Wendel. Crítica: uma ciência da literatura. Goiânia: UFG, 1983.


Resenhista

Lucas Neiva da Silva – Mestre em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pós-graduado em Linguística Aplicada na Educação (UCAM), Ensino de Língua Portuguesa (FIJ) e em Revisão de Texto (Faculdade, Cursos e Editora UnyLeya S/A). Professor efetivo de Língua Portuguesa da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais. E-mail: luckneiva@yahoo.com.br


Referências desta Resenha

BRANCO, Joaquim. Refugiados. Rio de Janeiro: Letras e Artes, 2017. Resenha de: SILVA, Lucas Neiva da. A diáspora moderna: resenha do livro Refugiados, de Joaquim Branco. Resenhando. Alfenas, v.3, n.3, 2021. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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