Reforma: O cristianismo e o mundo 1500-2000 | Felipe Fernandez-Armesto e Derek Wilson

Em todo âmbito acadêmico, os estudiosos da história sabem das dificuldades de se ser fiel aos acontecimentos sem perder, ou deixar de mencionar, os detalhes mais relevantes do recorte histórico que se pretende apresentar. Assim como nas demais áreas do saber humano, o estudo da história é repleto de nuanças que dificultam o trabalho, tornando a busca das fontes uma verdadeira aventura para o pesquisador que deseja apresentar um trabalho de sério. No que diz respeito à religião cristã, desde suas origens na tradição judaica até os dias atuais, geralmente nos são apresentados trabalhos que acentuam a importância da observação histórica e de todo o seu processo evolutivo.

Dentre todos os acontecimentos importantes na trajetória do cristianismo, a Reforma Protestante, do século XVI, merece atenção especial. Felipe Fernandez-Armesto e Derek Wilson – o primeiro de origem confessional católica, o segundo protestante – apresentam, numa demonstração de maturidade acadêmica, deixando de lado as diferenças que os separavam, a Reforma de maneira completa, detalhada e equilibrada, pondo de lado certas interpretações mais comuns, como a assepsia histórica, o catolicismo conservador e o protestantismo apaixonado.

Conforme a assepsia histórica, ignora-se que a Reforma foi também uma revolução social e cultural, originada num cisma que provocou grandes transformações políticas e econômicas a partir da Europa. Segundo o catolicismo conservador, predomina a visão de que a Reforma foi um ato de rebeldia, causada por um herege. Para a protestantismo apaixonado, a Reforma seria o rompimento dos grilhões imposto pelo despotismo dos papas.

A tarefa idealizada por Felipe Fernandez-Armesto e Derek Wilson foi, sem dúvida alguma, realizada com êxito no livro Reforma – o cristianismo e o mundo 1500-2000, conforme veremos a seguir.

Em “Os Fragmentos da Cruz”, os autores tratam das divisões modernas e dos prejuízos advindos dessas divisões no contexto da diversidade cristã, que vai desde os aspectos das igrejas orientais, ocidentais, passando pela cristandade latina medieval dos valdenses até a diversidade de doutrinas e emoções que não constituem apenas uma característica cumulativa, mas também original documentada a partir das escrituras sagradas. Os autores trazem assim à reflexão uma reforma que não introduziu as inovações comumente atribuídas a ela, isto é, a Reforma não rachou uma igreja monolítica; não introduziu heresias inéditas, as quais derivaram de tradições vindas de longa data.

Assim sendo, a Reforma deve ser pensada apenas como Mvndvs Transit, “um período de transição” ou como trânsito de situação. No entanto suas reverberações, por todas as mudanças e desafios, constituíram o grande tema unificador da história cristã nos tempos modernos, segundo os autores (p. 12).

Em “À Espera de uma Resposta”, Fernandez-Armesto e Wilson levantam os pressupostos do cristianismo como sistema baseado na questão da autoridade. O homem da época da Reforma, conforme os autores, estivesse ele do lado católico ou protestante, aceitava a existência de Deus e a idéia de que Ele era a origem de toda verdade – a qual era, portanto, objetiva.

Nesse período, as publicações anônimas foram consideradas ilegais por vários decretos promulgados por autoridades eclesiásticas e seculares. Listas de obras proibidas foram divulgadas, gerando o primeiro index librorum prohibitorum, em 1559. Contudo, havia espaço para especulação. A verdade era algo muito mais profundo do que um mero conjunto de proposições que podiam ser verificadas pela observação e pela experimentação.

Para Lutero, por exemplo, a verdade maior era a palavra de Deus. Ele estava bem longe de ser o primeiro ou o último a querer ver todo o seu intento ressoando de acordo com a dinâmica da palavra de Deus escrita.

Sem dúvida alguma foi a Bíblia que inspirou os grandes movimentos de reforma monástica dos séculos XI e XII, e todas as renovações, locais ou generalizadas, foram ligadas de alguma forma ao interesse de renovação gerado pelas Escrituras. Os autores apontam, neste período, três fontes da verdade – a Igreja, a Bíblia e a Revelação Direta (mística). Quanto aos místicos, os autores apresentam Santa Tereza D’Ávila e São João da Cruz – esses ensinavam que o misticismo era o caminho para Deus.

Quase todos estavam sujeitos a inquisições periódicas, porém o misticismo integrava o cristianismo ativo que os propagandistas voltados para o Evangelho tentavam promover entre as pessoas comuns. Os autores afirmam que há três tipos de misticismo: de contemplação, meditação e afetivo. Os protestantes, pelo menos no início da história de suas igrejas, não precisaram do misticismo como os católicos necessitaram: a Bíblia era a ligação direta com Deus; com o passar do tempo, porém, o protestantismo tornou-se muito rico, especialmente no misticismo afetivo.

Para Felipe Fernandez-Armesto e Derek Wilson, o individualismo/subjetivismo são como parentes próximos do pietismo. Spener criou um sistema de educação proporcionada pelo Estado que girava em torno do ensinamento pietista sobre conversão e do cultivo da vida interior. Cornelius Jansen (1585-1638), holandês católico que se indignou diante da restauração do escolasticismo e da nova dialética jesuíta que alimentava certo conflito religioso, propôs que a experiência, não o intelecto, era a chave para a fé salvadora. Blaise Pascal dizia que o intelectualismo era positivamente perigoso, pois havia enorme distância entre conhecer Deus e amá-lo.

Da mesma forma que nos capítulos anteriores, em “Heresia: e daí?” os autores levantam os pressupostos do cristianismo como sistema baseado na fé. Não se esquecendo das artes, como pintura e música, não nos são apresentadas as peculiaridades da tradição católica, codificadas na decoração e nos projetos arquitetônicos, nos quais, dentre muitos exemplos, encontra-se a capela do Hospital dela Caridad, em Sevilha. O santuário da capela é dominado por um retábulo melancólico e glorioso do sepultamento de Cristo, e a nave é decorada com santos que prefiguravam os deveres dos irmãos. Depois do escândalo de numerosas secessões na Igreja no século XVI, protestantes e católicos definiram suas respectivas posições com relação uns aos outros e em distinção uns dos outros.

Conforme os autores, as questões doutrinárias amenizaram-se, em parte, porque são difíceis de entender. O jesuíta Louis Coudret foi a Genebra, em missão, no ano de 1559, surpreendeu-se ao constatar que

cada artesão de Genebra atreve-se a falar sobre predestinação e ficou impressionado com o nível razoável de debate que os cidadãos conseguiam manter com ele nas ruas.

Desde a mais antiga época documentada de celebração de cultos cristãos, o rito eucarístico é o seu ponto central. A antiguidade da eucaristia, portanto, não está em questão, mas sim o seu significado. Durante a Idade Média, o foco do debate foi colocado na curiosa transformação química divina, pela qual o pão se transformava em carne e o vinho em sangue – a “famosa” transubstanciação.

Os autores dessa obra, no entanto, nos chamam a atenção para a atualidade em que tantos assuntos teológicos antes interessantes agora são definhados pela dissecação acadêmica ou pelo fundamentalismo. Tornaram-se sem brilho e perderam seu encanto popular, dessa forma os debates teológicos só conseguem causar impacto agredindo o público com o malho da apostasia ou com a proposta de um monasticismo psicológico. Para os autores de Reforma – O Cristianismo e o Mundo 1500-2000, esses artifícios grosseiros são facilmente reconhecidos como formas de chamar a atenção, e o debate popular acerca deles raramente ultrapassa os limites da intransigência.

No capítulo “Um Presente Embrulhado”, Felipe Fernandez-Armesto e Derek Wilson indicam o movimento do século XVIII que, pelo renascimento da religião, reuniu as diferentes linhas de composição de hinos na Inglaterra. Em 1819, o reverendo Thomas Cotterel, novo vigário de St. Paul´s Sheffield, apresentou sua própria compilação (uma seleção de salmos e hinos) à sua congregação, que posteriormente foi rejeitada. Assim, essa obra retrata, de maneira especial e cuidadosamente sintetizada, o desenvolvimento dos acontecimentos pré-reformistas, da Reforma propriamente dita e da Contra-Reforma.

Os conteúdos de cada capítulo são autoconvergentes e fluem para a corrente central do livro, que visa conduzir o leitor a enxergar a história cristã de uma forma não convencional.

De leitura fácil, agradável e empolgante, Reforma – O Cristianismo e o Mundo 1500-2000 é indispensável tanto para os que buscam entender um pouco mais sobre o tema como para os que desejam apenas um bom entretenimento.

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Resenhista

Wilson Reginaldo Cardoso – Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia, Universidade Presbiteriana Mackenzie; doutorando em Protestantismo e Laicismo na Sorbonne.

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Referências desta Resenha

FERNANDEZ-ARMESTO, Felipe; WILSON, Derek. Reforma: O cristianismo e o mundo 1500-2000. Trad. Celina Cavalcante Falck. Rio de Janeiro: Record, 1997. Resenha de: CARDOSO, Wilson Reginaldo. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v.2, n.2, p. 212-217, 2004. Acessar publicação original [DR]