Reflexões sobre a hagiografia ibérica medieval: um estudo comparado do Líber Sancti Jacobi e das Vidas de santos de Gonzalo de Berceo | Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
O livro Reflexões sobre a hagiografia ibérica medieval: um estudo comparado do Líber Sancti Jacobi e das vidas de santos de Gonzalo de Berceo apresenta-se, em primeiro lugar, como a retomada de uma pesquisa de doutorado desenvolvida ao longo da primeira metade da década de 1990, pela professora Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, que culminou na defesa da tese intitulada: … Quiero fer una prosa en román paladino…: as vidas de santos de Gonzalo de Berceo, em 1996. Nesta ocasião, Andréia Frazão realizou o estudo sistemático de dois textos hagiográficos redigidos na primeira metade do século XIII pelo clérigo-poeta castelhano Gonzalo de Berceo, a Vida de San Millán de la Cogolla e a Vida de Santo Domingo de Silos.
Para fazer uma re-leitura deste trabalho e problematizar as reflexões realizadas ao longo do doutorado, a autora escolheu realizar um estudo comparativo de hagiografias, ampliando a base documental original com o acréscimo dos livros II (um tratado dos milagres atribuídos a São Tiago) e III (narrativa da transladação do corpo de São Tiago da Palestina para a Galiza, além de apresentar a festa dedicada ao santo) do Líber Sancti Jacobi, compilação anônima elaborada no século XII no âmbito da diocese de Compostela. Nesse sentido, as conclusões alcançadas na tese de doutorado foram confrontadas com a análise realizada a partir dos dois livros do Líber Sancti Jacobi.
O livro da professora Andréia Frazão divide-se em seis capítulos: I) Autoria e contexto social de produção das obras; II) O ambiente literário de produção do Líber Sancti Jacobi e das Vidas berceanas; III) Aspectos formais e difusão; IV) O espaço e o tempo; V) Os personagens; e VI) O cotidiano. Além dos capítulos mencionados, o livro dispõe também de uma introdução, em que a autora define os pressupostos teóricos de seu trabalho e expõe um estudo das principais tendências de pesquisa sobre as documentações utilizadas, e de uma conclusão, em que retoma as considerações parciais dispostas ao final de cada capítulo e delineia as principais constatações que foram tiradas a partir da análise comparativa das hagiografias mencionadas anteriormente.
Como objetivos principais do livro, a própria autora define claramente: debater o valor das hagiografias como monumento, visão e memória, atentando para as relações estabelecidas entre as obras e seus respectivos contextos de produção; identificar e analisar as correntes culturais que influenciaram a composição desses textos hagiográficos; discutir o papel social dos hagiógrafos na península Ibérica medieval como construtores de memória e divulgadores de uma determinada visão sobre o mundo social (p.28-29). Esses objetivos foram amplamente alcançados ao longo dos diferentes capítulos.
No tocante à delimitação teórico-metodológica, de acordo com as problemáticas e os objetivos estabelecidos ainda na introdução, fica claro que se trata de um trabalho inserido no campo da chamada História Cultural. Basta observar que a própria autora afirma concentrar seus esforços intelectuais nos processos de apropriação cultural, buscando identificar a pluralidade das práticas e representações culturais, atentando para os empréstimos e intercâmbios presentes no seio das sociedades, além de observar os espaços para “invenção criativa”, tudo isso a partir de uma análise pautada nos conceitos de apropriação e representação, tal como propostos por Roger Chartier (p.30).
Já em relação à metodologia empregada também não resta a menor dúvida: trata-se do método comparativo, segundo os pressupostos estabelecidos por Jürgen Kocka, transpondo aquela noção mais tradicional de que os fenômenos comparáveis possuem uma continuidade intrínseca ou que são mutuamente influenciados, para privilegiar a particularidade de cada caso (p.31). Contudo, há de se ressaltar que o livro aqui resenhado não figura meramente como mais um trabalho historiográfico, dentre tantos outros, que lança mão do método comparativo para sua análise. O livro Reflexões sobre a hagiografia ibérica medieval: um estudo comparado do Líber Sancti Jacobi e das vidas de santos de Gonzalo de Berceo pode perfeitamente ser classificado como um trabalho de História Comparada, à medida que a comparação norteia a própria organização do livro, além de estar presente em todos os seus capítulos, demonstrando que as noções comparativas perpassaram toda a elaboração do trabalho, desde a sua idealização.
No capítulo I, Andréia Frazão dedica-se mais diretamente à questão da autoria do Líber Sancti Jacobi, já que as demais hagiografias analisadas são identificadas unanimemente pelos especialistas como obras de Gonzalo de Berceo. Por isso, na primeira parte do capítulo, a autora expõe as principais discussões travadas pelos especialistas e conclui que se trata de uma compilação elaborada por diferentes pessoas em momentos diversos, resultado da junção de textos variados. Este trabalho de reunião e organização dos textos foi realizado ao longo do século XII, no âmbito do episcopado de Compostela, durante o governo de Diego Gelmírez (p.38). Além disso, ainda neste capítulo a autora apresenta uma biografia contextualizada de Gonzalo de Berceo, analisando o contexto social de produção de suas hagiografias.
No capítulo II, a autora realiza um estudo dos diferentes ambientes literários em que as hagiografias analisadas foram produzidas, com o intuito principal de verificar possíveis relações com a literatura contemporânea às respectivas obras, além de ressaltar as particularidades hagiográficas perante estas demais produções. Por outro lado, buscou-se também discutir o caráter hagiográfico dos materiais em análise, estabelecendo relações com as concepções de história que circulavam nos respectivos ambientes de produção destas obras. Nesse sentido, o objetivo traçado era debater a forma como tais hagiografias dialogaram com passado e presente, ao procederem à narrativa dos eventos relacionados aos santos biografados (p.67).
O capítulo III apresenta ampla discussão sobre os processos de composição e transmissão das hagiografias analisadas, privilegiando aspectos como: datação, organização, forma, fontes, técnicas de redação e difusão, língua, público alvo, narrativa e narrador, entre outros. Portanto, este capítulo figura como uma síntese crítica e explicativa dos elementos formais presentes nas obras em questão, sendo de grande interesse para aqueles que pretendem desenvolver pesquisa específica sobre as hagiografias mencionadas.
Os três últimos capítulos possuem grande semelhança entre si, do ponto de vista da organização, já que a autora apresenta reflexões e considerações pautadas no estudo comparativo das diferentes representações presentes nas hagiografias enfocadas, a partir de uma análise organizada em eixos temáticos, previamente estabelecidos na tese de doutorado mencionada anteriormente: o espaço, o tempo, os personagens e o cotidiano. No capítulo IV, Andréia Frazão aborda as concepções de espaço e tempo presentes nas diferentes hagiografias. Primeiro a autora define estes conceitos, depois observa como eles aparecem representados nas obras em questão e, por fim, estabelece reflexões e considerações fundamentadas em um procedimento comparativo.
O capítulo V, dedicado ao estudo dos personagens presentes nas hagiografias, possui organização e procedimento diferentes do capítulo anterior. Diante da variedade e complexidade dos personagens identificados nas obras, a autora optou primeiramente por uma classificação mais ampla, dividindo-os em seres espirituais e humanos. Mas estas duas categorias mais amplas acabam sendo subdivididas em diferentes tipos: no primeiro caso, Deus, os anjos, os santos, o diabo e seus demônios; e no segundo em piedosos, pecadores, reis, pobres, mulheres e “outros” (referindo-se a judeus, pagãos e muçulmanos). Neste capítulo, Andréia Frazão opta por uma análise comparativa desde o princípio, ao invés de observar primeiramente como os tipos aparecem representados separadamente nas obras em questão, para depois comparar os resultados.
O capítulo VI apresenta uma sistemática semelhante ao capítulo anterior, sendo que o eixo norteador da análise passa a ser o cotidiano, entendido como um conjunto de ações e práticas que se repetiam no dia-a-dia das sociedades em que foram compostas as hagiografias estudadas. Entretanto, a autora faz questão de ressaltar que não teve o objetivo de reconstruir a totalidade dos atos cotidianos do medievo e sim discutir as significações que foram conferidas a algumas destas ações nos materiais analisados. De acordo com a leitura prévia das hagiografias e dos elementos observados, a autora definiu os aspectos do cotidiano a serem analisados comparativamente: o nascimento e a morte, a vida familiar, o casamento e o sexo, a aparência e os cuidados pessoais, a doença, a educação, a vida religiosa e as crenças e práticas da religiosidade, as atividades produtivas, a alimentação, as viagens e os viajantes, as guerras e, por fim, o cotidiano como cultura.
Na conclusão, observa-se a diversidade de considerações e constatações realizadas ao longo dos diferentes capítulos, que são retomadas e aprofundadas, buscando responder às questões estabelecidas desde o início. Dentre as conclusões apresentadas, destacam-se: as hagiografias analisadas foram compostas em diálogo com seus respectivos contextos históricos e manifestam os interesses dos grupos específicos que as promoveram, sendo, por isso, singulares (p.229); tais textos hagiográficos figuram como monumentos que foram preservados ao longo dos séculos, apresentando visões sobre o mundo social relacionadas ao ambiente cultural e aos interesses de poder dos grupos que as patrocinaram, além de constituir e divulgar a memória dos santos biografados (p.230); apesar de serem textos hagiográficos, tornam-se, por suas motivações particulares, testemunhos históricos da época em que foram produzidas, visto que, a despeito do cunho modelar e propagandístico dessas obras, são representados conflitos, visões sobre o “outro”, crenças e valores, característicos de um determinado espaço e período (p.235).
Por tudo o que foi tratado até aqui, o livro Reflexões sobre a hagiografia ibérica medieval: um estudo comparado do Líber Sancti Jacobi e das vidas de santos de Gonzalo de Berceo trata-se de um empreendimento intelectual de grande fôlego da professora Andréia Frazão, que retoma o trabalho realizado ao longo do doutorado acrescentando-lhe novas informações, análises, reflexões e considerações, através de um estudo comparativo que engloba um novo corpus documental, que não tinha sido considerado ao longo daquela pesquisa.
Pelo amplo e aprofundado tratamento dispensado aos aspectos formais das hagiografias analisadas, pelas sínteses realizadas a respeito das diferentes pesquisas produzidas nesta área de estudo, bem como pela diversidade das bibliografias referenciadas ao longo dos capítulos, o livro aqui resenhado é amplamente indicado àqueles pesquisadores interessados em estudos hagiográficos de uma forma geral. E pela variedade dos temas abordados e profundidade das análises comparativas realizadas, impõe-se como uma referência para os interessados em hagiografia ibérica medieval, mais especificamente na obra de Gonzalo de Berceo e no Liber Sancti Jacobi, até mesmo por se tratar de um empreendimento historiográfico não realizado até então.
Resenhista
Thiago de Azevedo Porto – Mestre em História Comparada (PPGHC/UFRJ). Professor Substituto de História Antiga e Medieval na UFRRJ.
Referências desta Resenha
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões sobre a hagiografia ibérica medieval: um estudo comparado do Líber Sancti Jacobi e das Vidas de santos de Gonzalo de Berceo. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008. (Coleção Estante Medieval, v.3). Resenha de: PORTO, Thiago de Azevedo. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v.3, n.1, 2009. Acessar publicação original [DR]